24 janeiro 2010

Deus & Cia Ltda [dois]


“EU DETERMINO EM NOME DE JESUS, QUERO SAÚDE PARA MIM, ESPOSA E FILHOS L.C., M.H. E L.H..
PRECISO QUE O SENHOR HONRE A MINHA FÉ, POIS SOU DIZIMISTA E OFERTANTE DA CASA DO SENHOR JESUS.
NECESSITO DA PROSPERIDADE DE DEUS, POIS É NA ÁREA QUE SOU MAIS PROVADO.
QUERO TER MEU PRÓPRIO NEGÓCIO, QUERO CONQUISTAR OS DONS DO SENHOR, SABEDORIA, AUTORIDADE DA PALAVRA, ADORAÇÃO, DOM DE TOCAR VIOLÃO. QUE SEJA TUDO PARA HONRA E GLÓRIA DO SENHOR DOS EXÉRCITOS.
AMÉM!...”

Este texto não é uma oração, nem mesmo um pedido. É a determinação de uma pessoa que parece cobrar seus direitos de consumidor, a imposição da satisfação dos seus desejos, a exigência do cumprimento de itens contratuais, pois afinal de contas ele é dizimista...

Manuscrito em maiúsculas e ocupando metade de uma folha de caderno universitário, foi ofertado a Igreja (...) junto com a quantia de R$ 400,00 em dinheiro;

Posso estar enganado, mas pelos dons que ele quer ter, aposto que seu objetivo é tornar-se pastor da Igreja, ou fundar a sua própria...

21 janeiro 2010

Deus & Cia Ltda

“A empresa Deus & Cia Ltda - Comércio de Secos e Molhados é especializada no aviamento de receitas de lucro fácil como prosperidade material e sucesso empresarial, de concessão de dons divinos e mundanos, de promessas de cura de qualquer mal físico ou mental, de aquisição de cadeiras numeradas e lotes celestiais, e presta serviço garantido no exorcismo de satanismos em qualquer nível de bestialidade.

A administração comercial e financeira está a cargo de seus sócios minoritários, mas não menos importantes e com larga experiência no ramo, Seu filho Jesus e Seu fiel faz tudo Espírito Santo, para possibilitar ao Sócio majoritário ocupar-se tão somente da administração da mega-super-hiper-premium-plus-master-blaster holding Universo & Eternidade, da qual Ele é o único proprietário e onde acumula as funções de presidente, tesoureiro, secretário, encarregado da limpeza e do cafezinho, gerente de recursos humanos, de marketing, e office boy.

Oferecemos a líderes pastorais estabilidade no emprego e polpudas comissões pela venda de produtos, e atendimento preferencial e descontos especiais a dizimistas e ofertantes da casa do Senhor, seja ela qual for.

Sua satisfação e seu dinheiro são a nossa satisfação!”

Gravura: http://www.saskschools.ca/~gregory/settlers4.html

27 dezembro 2009

Orquestra Sapofônica do Cajuru

Noite quente de um sábado de primavera, no mágico estio após um aguaceiro no fim da tarde. A poucos metros à direita, uma lagoa rasa formada pelas águas da chuva e de um banhado no terreno vizinho, do outro lado da taipa de pedras meio submersa que corta a lagoa ao longo da divisa do campo. A mesma lagoa onde o Rosilho atolava até os joelhos para pastar o capim aflorando à superfície, e onde hoje pasta sozinha a Alazana.

O nome mais apropriado para a orquestra seria grilofônica, ou talvez cigarrafônica, mas ao vivo, pisando o capim molhado lá pertinho da lagoa, o coaxar se sobressaía aos cricrilos que, nesta gravação, porém, destacaram-se sobremaneira. Então, aumente o volume e saboreie um som que quase não se ouve mais na cidade, a barulheira de bichos na natureza. O som do mato.

Com vocês, a Orquestra Sapofônica do Cajuru!

19 dezembro 2009

Sebastião Salgado, o Fotógrafo Social, um Brasileiro

Aos 65 anos, Sebastião Salgado, que é hoje um dos fotógrafos mais famosos do mundo, tem sua obra permeada pela preocupação com as mazelas sociais. Seus principais trabalhos são verdadeiras crônicas sobre a vida das pessoas excluídas. Sua preocupação social fez com que, em 2001, fosse nomeado representante especial do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

De origem mineira, nasceu em Aimorés no dia 8 de fevereiro de 1944. Deixou a cidade aos 16 anos para estudar em Vitória, no Espírito Santo, e depois foi para São Paulo, onde se formou em Economia. Um dia depois de sua formatura, casou-se com Lélia Deluiz Wanick, com quem vive até hoje e tem dois filhos, Juliano e Rodrigo, que tem síndrome de Down. “Acho que muita coisa que faço hoje, próxima do social, de cunho humanitário, foi Rodrigo quem me trouxe. Ele me deu outra compreensão da vida, outra maneira de eu ver a humanidade, de me situar”, disse o fotógrafo, em entrevista à BBC Brasil.

A carreira de Salgado começou em 1969, quando ele foi para Paris fazer doutorado em Economia. Durante suas férias acadêmicas, visitou a África e encantou-se pela fotografia a tal ponto que mudou de profissão. Em 1973, resolveu ficar de vez na Europa, onde iniciou sua nova carreira. Os trabalhos de Sebastião Salgado ficaram marcados por mostrar, com sensibilidade, o cotidiano das pessoas, tanto da Europa como dos países por onde viajava. Entre 1979 e 1993, dedicou-se a vários projetos desafiadores, como a cobertura da guerra de Angola, o sequestro de israelenses, em Entebe, na Uganda, e a publicação do livro Outras Américas, no qual retratou os pobres da América Latina.

Para muitos, sua consagração se deu, definitivamente, com as fotos do atentado ao presidente dos EUA, Ronald Reagan, em 1981, trabalho que lhe rendeu bastante fama. Ele foi o único a conseguir retratar o presidente ferido.

Um de seus projetos de maior destaque é Êxodos, que mostra imagens captadas em 41 países, onde documentou populações marginalizadas, na sua maioria crianças e mulheres sem-teto. A exposição teve estréia mundial em Nova Iorque. O jornal Le Monde publicou artigo sobre Êxodos, em que descreveu Salgado como “...um fotojornalista que vai além da estética da imagem. Suas fotos trazem reflexão, onde a maioria das pessoas se identifica, dando um ar universal à obra”. Atualmente, Salgado se dedica ao projeto de campanha mundial para erradicação da poliomielite, em parceria com o Unicef e a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Fonte: Revista Funcef, ed 38, ago09
                                                  



Em cima, a partir da esquerda:
Os pobres trabalhadores da terra, Ceará – Brasil, 1983
Refugiados de Gourma-Rharous – Mali, 1985

Em baixo, a partir da esquerda:
Refugiados de Gondan – Mali, 1985
Serra Pelada, Pará – Brasil, 1986
Rio Bonito do Iguaçu, Paraná – Brasil, 1996

13 dezembro 2009

Uma Tirinha no Pedaço [nove]

FAGUNDES & ANACLETO

Clênio Souza, artista plástico, escultor, cartunista, poeta e desenhista, originalmente publicado em O Momento.

11 dezembro 2009

Fazer a Diferença, Fazendo Diferente

Posso mudar a minha vida fazendo diferente. Fazendo diferente, mudaremos o mundo nós todos.




12 novembro 2009

De Cavalheirismo e Guerra Fria

Às 10 horas da manhã do dia 12 de fevereiro de 1908, em New York, seis carros  alinham-se na rua 43 entre a Broadway e a Sétima Avenida. Três franceses, um italiano, um alemão e um norte-americano, todos abertos, com seus tripulantes expostos ao tempo frio e nevoso daquele dia de inverno. Aguardam o sinal de partida para uma corrida  que os levará à Paris. De New York até São Francisco, de lá por mar até Vladivostock, com pequeno trecho em estrada no Alaska, e prosseguindo através da Rússia até Moscou, depois Berlim e, finalmente, Paris

À época, fora dos limites urbanos as estradas eram apenas “... caminhos carroçáveis que quebravam os rins, arrancavam dentes, sacudiam os ossos, mesmo em pleno verão – e estávamos num mês de fevereiro cheio de neve, com temperatura em torno de 0°C.” [Revista Esso – 1956, nº 4]. Contrariando até mesmo as previsões mais otimistas, apenas dois carros não superaram os desafios da aventura que entraria para a história como A Grande Corrida .


A gravura de Peter Helck  ilustra o momento em que a equipe americana, pilotando o Thomas Flyer, socorre o Protos, da equipe alemã, atolado na lama nas cercanias de Vladivostok. Depois de dividirem uma garrafa de vinho, as equipes tornaram a se acomodar em seus carros e recomeçaram a corrida, rumo à distante Paris.

A lembrança que tenho desta gravura remonta aos primeiros anos da década de 60, e no seu transcorrer, durante minha infância e pré-adolescência, a esta lembrança foram se somando as histórias sobre os conflitos da época, principalmente uma dita guerra fria  entre russos e americanos. Na minha cabeça infantil, a gravura então passou a ter outros significados, como o exemplo de altruísmo e – também, e principalmente – cavalheirismo entre os competidores. No auge da guerra fria, na minha imaginação, custava a acreditar que pudesse haver tamanho desprendimento entre aqueles homens cujos governos estavam em permanente e perigosa disputa. Este sentimento de incredulidade e admiração aflorava cada vez que folheava a Revista Esso, que ainda guardo, ou mesmo à simples lembrança da gravura quando o assunto surgia nas conversas em família, ou com amigos.

Passaram-se alguns anos até que a razão colocasse ordem nos sentimentos relacionados à gravura. Foi quando, entrando na fase adulta, me dei conta que, em primeiro lugar, o Protos era um carro alemão e pilotado por alemães, não russos. Em segundo, este encontro aconteceu em 1908, muito antes dos conflitos envolvendo americanos e alemães, e naquela época a guerra fria entre russos e americanos não existia nem em sonho. Mas de nada adiantou o ordenamento, aqueles significados confusos estavam por demais entranhados na memória, gravados desde a infância e permaneceram vivos por toda minha vida adulta. E é por ainda hoje despertarem tão boas lembranças que decidi publicá-las. A gravura, e as lembranças. Estou satisfeito por isso!

Quem ganhou a corrida ? Quase seis meses depois da largada, completaram a prova o Thomas Flyer  americano com 26 dias de vantagem sobre o Protos  alemão, 35 dias sobre o Zust  italiano e 56 dias sobre o De Dion  francês. Dos outros carros franceses, o Sizaire-Naudin  abandonou a prova logo após a largada e o Moto-Bloc  desistiu antes de chegar a São Francisco. Deles todos, o Thomas Flyer é o único ainda existente, exposto  no National Automobile Museum, em Reno, Nevada, USA.

02 novembro 2009

Uma Tirinha no Pedaço [oito]

FAGUNDES & ANACLETO

Clênio Souza, artista plástico, escultor, cartunista, poeta e desenhista, originalmente publicado em O Momento.

16 outubro 2009

Manuel Bandeira, um Brasileiro (1886 - 1968)

Manuel Bandeira afirmou um dia que “a poesia está em tudo, tanto nos amores quanto nos chinelos, tanto nas coisas lógicas quanto nas disparatadas”. Para dar conta dessa diversidade de temas, Bandeira revolucionou a poesia, aproveitando em seus versos a fala coloquial e os fatos do cotidiano. Sua visão do mundo não se expressava em reflexões sociais ou filosóficas, mas na observação dos detalhes mais corriqueiros da vida, sempre com um sentimento de humildade diante das coisas. A influência de Bandeira sobre os jovens modernistas foi tão grande que Mário de Andrade o chamava de São João Batista do modernismo brasileiro.

Em 1922, o poeta não participou da Semana de Arte Moderna, mas seu poema Os Sapos , lido por Ronald de Carvalho, provocou reações radicais. A trajetória poética de Manuel Bandeira  foi pautada pela busca permanente de novas formas de expressão. Em seu livro de estréia, A cinza das horas, (1917), usou formas fixas em seus versos parnasiano-simbolistas. Já em Carnaval (1919) e O ritmo dissoluto (1924) optou pela liberdade formal, que se tornaria uma das marcas registradas de sua poesia, e se aproximou dos ideais modernistas, que assumiria integralmente nos versos livres de Libertinagem (1930). Nesse livro estão seus poemas mais conhecidos, como Vou-me embora pra Pasárgada  e Evocação do Recife. Ali se fixam os grandes temas do poeta: a família, a solidão, o medo da morte, a infância no Recife.

Mal saído da adolescência, Bandeira apresentou os primeiros sintomas da tuberculose, doença então fatal, que o obrigou a interromper os estudos. O jovem que até ali fazia versos por brincadeira passou a escrevê-los por necessidade, diante da fatalidade do destino. A perspectiva da morte foi uma constante em sua poesia e motivou um de seus poemas mais famosos: Pneumotórax.

Entre 1916 e 1920, enquanto lutava contra a doença, Bandeira perdeu a mãe, a irmã e o pai, passando a viver solitariamente, apesar dos amigos e, mais tarde, das reuniões na Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleito em 1940.

Apesar de apaixonado por mulheres, nunca se casou, e costumava dizer que “perdeu a vez”. Durante toda a vida, fez críticas de artes plásticas, crítica literária e musical para jornais e revistas, além de ter organizado antologias de poetas brasileiros e de ter publicado o estudo Apresentação da Poesia Brasileira (1946). Em 1954 publicou Itinerário de Pasárgada, onde, além de suas memórias, expõe todo o seu conhecimento sobre formas e técnicas de poesia, o processo da sua aprendizagem literária e as sutilezas da criação poética.

Em 1968, Bandeira faleceu no Rio de Janeiro, vítima de parada cardíaca, e não da tuberculose que o acompanhou durante quase toda a vida.

Fonte: Revista Funcef, ed 21, set/out07.


Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
— Respire.

O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.



Vou-me Embora pra Pasárgada


Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Ilustrações
acima à esquerda: Fraga
abaixo à direita: Novaes

16 setembro 2009

9. O Coronel e o U.T.I. Futebol Clube

(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto desabou enviesado na cama já roncando, quase sete da manhã, sem nem ao menos tirar os sapatos. A Tetê os arrancou, jogou a ponta da colcha sobre o marido esparramado e foi cambaleando para o quarto de visitas. As janelas vibravam com o ronco do Arrudão. Estavam chegando de uma agitada noite de dança e muita bebida numa casa noturna conhecida por sua concorrida freqüência GLB&S. Ele jura, e a Tetê solidariamente confirma, que a primeira vez que foram não sabiam da peculiaridade da casa, só perceberam lá dentro, depois de muitas cervejas e alguns sustos! A segunda foi só para confirmar a coisa. Sobre as outras dezessete vezes, ele ajeita o galho de arruda na orelha, passa o palito mascado para o outro canto da boca e diz que foram porque a música é boa e o ambiente é familiar! Então desconversa e encerra o assunto. Nessa noite, o Arrudão sozinho deu conta da metade do estoque de cerveja do bar, e a outra metade a Tetê traçou com uma avidez e uma desenvoltura jamais vistas! Mulher de valor, a Tetê! Acompanha o marido, rente e firme! Não deu outra, tomaram um porraço os dois como nunca antes havia acontecido.
A Tetê pulou da cama, assustada, quando o telefone tocou. Atendeu meio dormindo, não era nem oito e meia, na linha o bostinha colafina perguntando se precisava pegar o Arrudão pro jogo.
— Que jogo? – resmungou. Desistiu de tentar abrir os olhos.
— O campeonato do asilo, ora. Lembra, o Arrudão confirmou com os festeiros lá do asilo uma partida beneficente...
— Não lembro...
— ...
— Que dia é hoje?... [um bocejo] – não lembro como chegamos em casa...
— Onde é que andavam? Vai dizer que lá no... lá no... de novo?
— É... – assoprou a Tetê num bocejo, se segurando prá não deitar no tapete.
— Ai, meu Deus!
— [Outro bocejo] Quê ‘ce disse?
— Que hoje o dia promete.
O bostinha colafina não soube se o que ouviu foi só um resmungo ou foi um palavrão, no meio de outro bocejo, antes da ligação ser cortada.

A Tetê era presidente da ARDIDAS, a Associação Rural da Derradeira Idade e Simpatizantes, entidade atuante em toda região da grande Cajuru que fora convidada, meio em cima da hora, para uma confraternização como parte do tradicional festejo anual para angariar fundos para o Asilo Olheicentino da cidade. Em razão da idade dos jogadores envolvidos, seria disputada uma única partida de futebol suíço, em quadra coberta. Como não encontrou nenhum associado em condições, e nem disposto a jogar, Tetê apelou para o Arrudão, que quase nunca a deixa na mão. E esqueceu o assunto.
O Arrudão então convocou o time, literalmente falando. Não adiantaram desculpas, compromissos assumidos, doenças e tratamentos, nada comoveu o coronel:
— Gente, vocês não podem dizer não, nós vamos representar a ARDIDAS. De duas uma, jogamos ou jogamos! Já assumi o compromisso, e o meu prestígio não pode ser abalado por uma bobagem dessas, por causa de um joguinho mixuruca com velhinho de asilo!
— Pois é, Arrudão, é o seu compromisso, é o seu prestígio, entã...
— Não interessa! – atropelou o coronel – Domingo todo mundo lá na quadra, sem falta! Peguem aqui o uniforme, mas olha, hein! É da ARDIDAS, depois tem que devolver. Lavado e passado!

Naquele momento o bostinha colafina teve a certeza de duas coisas. A primeira, que o Arrudão esquecera o compromisso, e a segunda, que a encrenca sobrara para ele. E depois dos festejos terminados, ao ser perguntado como conseguiu reunir o time em quadra, suspirou:
— Deixa prá lá... prefiro não comentar! Não vale a pena... [suspiro profundo] – Quero esquecer este dia...

O jogo estava marcado para as 10 horas, e o ginásio estava lotado. Parecia que a cidade inteira tinha marcado encontro lá. De um lado, os atletas do Asilo. O mais novo com oitenta e dois anos e meio, zagueiro, e o mais velho, o atacante, com quase noventa e quatro. De outro, os pacientes... quer dizer, os atletas do Arrudão representando a ARDIDAS.
O quadro era deprimente.
O arrumadinho de olho azul segurava um rolo de papel higiênico que ia desenrolando enquanto assoava o nariz e tossia catarrento, tremendo descontroladamente numa febre de 39,5°C, por causa da maior gripe que já batera no seu costado. Pendurada num dos cotovelos, uma sacola de supermercado lotada de remédios chacoalhava no ritmo do tremelique. Em pé, estaqueado ao seu lado e soçobrando sob o efeito inebriante da água de privada matinal, o Vassourinha resmungava que os joelhos estavam duros, imagine só, e as canelas doíam até para caminhar, e suspeitava que aquela garrafada pra ativar a circulação que comprou do pai Angola Abre & Tranca não estava funcionando, imagine só.

Sentado na ponta do banco comprido de madeira, o esquentadinho da cidade, com os cotovelos apoiados nos joelhos, segurava uma toalha de banho cor-de-rosa enfeitada com bichinhos coloridos, usada como lenço aparando a coriza que vertia feito bica d’água em beira de estrada do nariz já esfolado, conseqüência da mais violenta crise alérgica que jamais tivera. Nos raros intervalos entre os intermináveis acessos de espirro, pingava colírio nos olhos flamejantes e remelentos, tentando inutilmente mantê-los abertos. No mesmo banco, circunspecto e sentado a uma distância segura dos perdigotos que voavam da criatura esvaindo-se ao seu lado, o doutorzinho casca grossa amargurava sua desventura com os olhos parados mirando o nada. O sentido da sua existência, em suas próprias palavras, acabara na semana anterior quando um japonês abriu um consultório dentário, no outro lado da rua onde mantinha o seu consultório, quase porta com porta. E na mesma especialidade sua! Com tanto lugar para abrir um consultório, por que logo ali, na sua frente? Sentindo ameaçada sua exclusividade no bairro, desde então penava num estado tal de prostração que sua aparência era de alguém saindo de um beco escuro em noite de trovoada. Naquela manhã morna de um domingo de primavera envergava um sobretudo preto que ia até os joelhos, fechado até o pescoço, e um pesado óculos escuro disfarçava o olhar mortiço. Ou seja, veio jogar futebol vestido de agente funerário trazendo sua própria cumulus nimbus relampejante sobre sua cabeça!

Na outra ponta do banco, arfando no auge da pior crise asmática da sua vida e debatendo-se com o nariz enfiado na máscara de um nebulizador, olhos arregalados pelo pavor de não conseguir respirar, o enrugadinho transcendental parecia estar à beira de um colapso. No seu colo o nebulizador, ao seu lado um carrinho de fazer compras na feira, daqueles com duas rodinhas e desmontáveis, trazendo um tubo de oxigênio, uma dúzia de frascos de soro para abastecer o nebulizador e uma extensão com o fio ligando o nebulizador à tomada elétrica onde antes estava ligado o aparelho de som do ginásio. Enquanto os organizadores do evento tentavam em vão achar o defeito do microfone mudo, duas animadas, rebolantes e oitentonas velhinhas, vestidas com saiotes de animadoras da torcida do time do Asilo, usavam blocos de rifa para abaná-lo, rindo e salivando maliciosas – Hummmm... ele é uma graciiinha!

E o Arrudão... bem, o Arrudão estava sentado no chão da quadra, encostado na grade, cabeça para trás, suando frio e trocando de cor feito um camaleão. De transparente, passava a roxo, depois branco, transparente de novo... quando ficava verde, corria para o banheiro do vestiário com uma mão na boca e outra no barrigão, e revirava do avesso em espasmos estomacais e intestinais escutados e sentidos em todo o ginásio. Ressaca braba e desarranjo tão violento assim, nem daquela vez que bebeu água de privada do Vassourinha pensando que era água tônica com steinhaeger.

Depois de meia hora de atraso por conta da cagança do coronel, os organizadores deram um ultimato: ou a ARDIDAS entrava em campo, ou o Asilo seria considerado vitorioso por WO. O Arrudão, mesmo ainda tonto e fraco pela desidratação, troteou de onde estava e convocou o time para o jogo. Antes, para não comprometer a reputação, ou o que ainda restava dela, decidiram registrar-se na súmula com apelidos escolhidos na hora, unicamente para aquela partida. Nuve, 9, para o doutorzinho casca grossa. Ele mesmo soturnamente escolheu o apelido, dizendo que era pela sua conhecida habilidade no drible. Zé do Ronco, 8, por unanimidade, para o esquentadinho da cidade, por motivos óbvios. Socadinho, 14, a contragosto, para o Arrudão, pelo seu marcante porte atlético.
— Do que adianta esta porcaria de apelido, se todo mundo sabe quem sou eu?
— Porque se este jogo dá merda, o seu nome não fica registrado! – profetizou o bostinha colafina que apenas reduziu seu nome próprio para Colafina, 19. Justificou a decisão dizendo que sua incompetência futebolística era de conhecimento público, nada tinha a esconder, pois, mas prometeu fechar o gol.
O Vassourinha ouriçou os bigodes e não aceitou ser registrado como Palanquinho, 11.
— Bem, Vassourinha, pela sua vertiginosa e impressionante mobilidade em campo, pode ser também... ãh... Raízes! Que tal? Pode escolher...
O peão do coronel cofiou seu bigodão, e resmungou baixinho:
— Tá, tá, tá, que fique Palanquinho, então...
O arrumadinho de olho azul foi registrado como Coró, 6, pela incrível semelhança do bronzeado da sua pele com o subterrâneo bichinho. Da mesma forma que o esquentadinho da cidade, as suas condições de saúde não permitiram que discordasse. O enrugadinho transcendental foi registrado, também à sua revelia, como Carquejinha, 13, pela sua intimidade com chás, infusões e outras ervas. O sabidinho que fala javanês, o técnico, foi registrado como Tiúspe, the coach. Não apareceu porque atrasou a conexão do seu vôo em Timbuktu, e acabou embarcando para a Groenlândia atrás da bagagem extraviada.

O time da ARDIDAS, devidamente registrado, ficou assim: Colafina no gol; Nuve e Zé do Ronco no ataque; a dupla Palanquinho e Carquejinha na zaga; no meio de campo Coró e Socadinho, que acumulou a função de técnico. As instruções eram simples: O Colafina fecha o gol, o Palanquinho barra o avanço inimigo pelo meio e o Carquejinha anula o ataque pelas pontas. Os outros fazem o que puderem...

Em função do estado de saúde deplorável e da idade avançada dos jogadores, de um time e de outro, permitiram que o jogo começasse com os jogadores já em suas posições. O público estava impaciente com a demora da ARDIDAS, e então, para agilizar a entrada do time em campo, o Palanquinho foi carregado pelo juiz e pelo Colafina, o único são, e plantado na entrada da área. O Nuve colocou-se lá na área adversária, lúgubre, dizendo que era para passarem a bola que ele faria o resto, sem entrar em detalhes sobre o que isso significava. Zé do Ronco arrastou-se escorregando no rastro da coriza em direção ao lugubrento, que discretamente afastou-se uns passos para o lado. Coró foi conduzido tremelicando, pelo bandeirinha, até o outro lado do campo. O Carquejinha teve que largar do nebulizador, e entrou em campo apenas um passo além da linha lateral, por garantia. O Socadinho, tonto e transparente, bambeou até a linha central. O time do Asilo postou-se vagarosamente, mas sem ajuda.

O apito do juiz deu início ao jogo e... à tragédia!

O meio de campo do Asilo deu a saída rolando a bola vagarosamente para o atacante, um metro à frente, que aninhou a bola entre as pantufas e os pés de alumínio com ponteiras de borracha do andador que o sustentava, e iniciou a vertiginosa subida em direção ao gol adversário. O andador dez centímetros à frente, um toquinho na bola, um breve descanso, novamente o andador dez centímetros à frente... Arrudão, ou melhor, o Socadinho, como sói acontecer, tentou protestar, mas ao levantar o braço e dar um passo em direção ao juiz esverdeou, levou uma mão à boca e outra já nos fundilhos, e desembestou rumo ao banheiro deixando um rastro da caganeira fedorenta no gramado artificial! Gargalhada geral na torcida, o juiz, os mesários, os bandeirinhas, os gandulas, os adversários, as velhinhas de saiote e o time da ARDIDAS, todos caíram na gargalhada! Todos, menos o agente funerário e o atacante do Asilo, que era surdo e estava sem o aparelho de surdez. Alheio à balbúrdia, seguia impassível e concentrado rumo ao gol da ARDIDAS. O andador dez centímetros à frente, um toquinho na bola, um breve descanso, novamente o andador dez centímetros à frente...
— Ô, pessoal, atenção aí, olha o velhinho! – gritou lá da trave o Colafina, ainda rindo.
Por causa do riso recomeçou a crise de asma no Carquejinha, que precisou sentar e aplicar a máscara do nebulizador que as velhinhas assanhadas trouxeram até a beira da quadra. Também o Coró e o Zé do Ronco, em coro, recomeçaram a tossir e espirrar incontrolavelmente, enquanto o Nuve, de sobretudo preto e óculos escuros olhava a cena, cinzento e inerte.
— Gente, olha o velhinho! Ele tá vindo pro gol! – gritou de novo o Colafina.
O atacante do Asilo continuava sua fulminante subida, já um pouco ofegante.
Palanquinho, faça alguma coisa!
— ‘Xá comigo! – tranqüilizou o Vassourinha.
O atacante desviou alguns centímetros do Palanquinho, que plantado estava e plantado ficou, passou roçando ao seu lado e mirou novamente o gol da ARDIDAS.
Palanquinho, você não fez nada! – bronqueou o Colafina.
— ‘Ce queria que eu fizesse o quê? Como é que eu ia tirar a bola de dentro do cercadinho? Queria que desse um tranco no véinho? Ou um tóche nas zoreia? – estrilou o Palanquinho, indignado.

O velhinho entrou perigosamente na área, o andador dez centímetros à frente, um toquinho na bola, um breve descanso, novamente o andador dez centímetros à frente, olha o velhinho, gente, olha o velhinho, do meio da área olhou ameaçadoramente para o goleiro, ele vai chutar, gente, façam alguma coisa, levantou o andador, preparou o chute e... desequilibrou, geeeeente, o velhinho vai cair, foi caindo em câmera lenta tentando se apoiar no andador, que tocou na bola, que rolou em direção ao gol. O Colafina chegou a titubear por um momento, mas como era o goleiro e prometeu fechar o gol, fez a única coisa que esperavam dele naquele momento: correu prá segurar o velhinho!

O tempo parou no ginásio. A torcida se calou, olhos fixos no velhinho... no Colafina... na bola... Tudo em câmera lenta. Ninguém respirava. Ninguém tossia. Ninguém espirrava. Ninguém sufocava. Só o Arrudão estrebuchava no banheiro. O Colafina aparou o velhinho antes que estatelasse no gramado. Há quem jure, e um ginásio lotado confirma, que naquele momento o velhinho tinha um olho fechado esperando o baque e o outro meio aberto cuidando da bola, que continuou rolando devagarzinho, tocou de leve na trave esquerda, e parou, caprichosa e bamboleante, no fundo da rede do gol da ARDIDAS!

O ginásio veio abaixo, e o mundo desabou sobre o Colafina!

A festa da torcida virou carnaval. Em meio à gritaria, assovios e batucada, o Zé do Ronco, o Coró e o Carquejinha, quase morrendo e gesticulando obscenidades ao Colafina, eram recolhidos de maca pelos paramédicos do SAMU, que foram chamados por alguém na arquibancada incomodado com aquela fedentina nauseabunda que empestava o ginásio e o bairro. O Socadinho, murcho e assustado, foi retirado carregado do banheiro com os olhos arregalados e enrolado em papel higiênico. Enquanto isso, um vulto sombrio esgueirava-se furtivamente porta afora debaixo dum aguaceiro que desabava de uma nuvenzinha negra e trovejante. Em quadra, o Palanquinho, que se estatelou tentando acertar um tabefe nos beiços do goleiro, era arrastado com as pernas petrificadas em direção aos paramédicos enquanto aos berros desancava aquele estrupício que prometeu fechar o gol. Sob o peso de toda a desgraça do universo, o Colafina, qual a estátua da Pietá, amparava em seus braços um velhinho com a maior cara de safado exibindo de orelha a orelha um sorriso triunfante... e desdentado!

Este fato sucedeu-se faz alguns anos, mas a vitória do Asilo Olheicentino sobre a ARDIDAS até hoje é motivo de chacota na cidade e em todo o Cajuru, a Coxilha Rica e os campos da Vacaria. Lembrada e recontada incontáveis vezes sem trégua nem piedade, mantém aberta e sangrando uma ferida mortal no prestígio do coronel Arrudão, prestígio aliás que há tempos não anda lá essas coisas! Quanto ao bostinha colafina, desde o acontecido afortunadamente já se livrou de três tocaias e uns oito linchamentos, perpetrados de caso pensado pelos outros jogadores da ARDIDAS naquele dia fatídico, que são unânimes ao justificar suas nefastas atitudes:
— O Colafina, como goleiro, já foi um bom amigo!