(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)
O coronel Gumercindo Neto deu um pulo para trás tamanho o susto que levou. Não fosse a parede de tábuas do galpão teria se estatelado na mangueira. Engasgou com o baque.
— Que foi que você disse? – gaguejou, com o queixo tremelicando e as pernas frouxas.
— Du bist zu dick, schmerzt mein Rücken, Rufen sie die roan!1 – repetiu, impaciente, a Cheirosa.
— Ai, minha Nossa Senhora do Bom Parto! Você está falando?!?! – o coronel estava com falta de ar.
— Und wer noch?2 – bufou, olhando para os lados.
— Tetê! Tetê! Me acuda, mulher!
— Ela disse que você precisa emagrecer. Vai ter que encilhar o Rosilho. – disse o Traíra lá de dentro do galpão.
— Ah! É? E como é que você sabe, seu espertinho? Por acaso você fala esta língua esquisita?
O coronel nem se deu conta que estava falando com um cachorro.
— Esta língua esquisita é alemão, coronel. E sim, eu falo alemão.
— Ah! É? E posso saber onde foi que você aprendeu alemão?
— Na escola, coronel. Onde mais?
O coronel baqueou de vez, e desabou num banquinho com os olhos arregalados, arritmia e tremelique, balbuciando:
— Mas... mas... mas você também fala? Tetê! Tetê! Corra, mulher, acuda aqui! Ai, minha Santa Bárbara Manjerona, é o fim do mundo!
— É São Gerônimo...
— Uquêêê? – esganiçou o coronel, escorregando de lado no banquinho.
— São Gerônimo! Santa Bárbara e São Gerônimo! – corrigiu o Traíra.
O coronel desabou, e ficaram os dois com os pés pra cima. Ele e o banquinho.
Acordou com o Traíra e a Cheirosa decidindo quem ia chamar o primo Ptolomeu, vizinho do Arrudão e veterinário afamado.
— Eu tô bem, não precisa chamar veterinário... – levantou-se com as mãos nos quartos, gemendo – e vamos esclarecer direito essa história. Que raio de escola é essa? Onde é que fica?
A cor já estava voltando, e quase nem tremelicava.
— Ah! Fica logo ali, no caminho para a cachoeira, não tem como errar!
— Pois quero ver com meus próprios olhos. Traíra, traz o Rosilho aqui para eu encilhar!
— Olha, coronel, talvez não seja uma boa hora prá...
— Não é boa hora prá que, cão?
— É que o Rosilho está na lagoa agora, e não gosta de ser incomodado... – disse o Traíra, se afastando de lado.
— Rosiiilho! – berrou o coronel — Mas credo, era só o que faltava agora, bicho ter hora prá ser montado! Rosilho! Vem já aqui, animal!
— Calm down, scream is bad for your health, and to my ears!3 – já veio dizendo de longe o Rosilho.
— E agora, o que é isso? O que ele disse? – perguntou ao Traíra, como se o cão tivesse a obrigação de traduzir tudo o que os outros bichos diziam.
— É inglês, coronel, e ele disse que gritar não é legal.
— Inglês? Você sabe inglês também? Ai, meu Santo Onofre, vou ter um troço!
— And then, my tasty filly! Are you fine?4 – o Rosilho fungou no pescoço da Cheirosa, que retribuiu o dengo rindo baixinho, maliciosa.
— Ich bin besser, meine Hengst schamlose!5
— E agora? – perguntou, jogando o baixeiro no costado do Rosilho.
— Ãh... melhor não saber, coronel.
Descendo a trilha em direção ao mato, encontraram a Quilemeio subindo.
— Via libera Im ascensus!6
— E aí, Traíra... vai esperar que eu pergunte?
— É latim, coronel. Quer que a gente saia da frente para ela poder subir.
— Latim? Mas... mas ela é uma vaca! Uma vaca, falando latim! – explodiu o coronel – Ah! Nãão! E você também fala latim?!?! E aprendeu na mesma escola! Ai, minha Santa Gertrudes, proteja as minhas coronárias!
— Longum erit?7 – perguntou a Quilemeio, plantada no meio da trilha.
— Ela está com pressa, coronel.
— Pois ela que saia do caminho, ou dê a volta!
— Primatus est ascendere!8
— Ela invocou uma lei de trânsito. E nem é estudante de direito...
O coronel Arrudão desistiu de discutir com a Quilemeio, afinal, era só uma vaca... Saiu da trilha para ela passar, e depois continuou a descida calado. Aquilo não podia estar acontecendo, vaca não fala latim, deve até ser pecado, já imaginou o que o padre vai dizer quando ele contar a história?
— Vou ser excomungado! – suspirou.
סגור9—
O coronel se assustou, e retesou a rédea, fazendo o Rosilho escorregar as patas no barro da trilha estreita. Só olhou para o Traíra, que entendeu o recado.
— É hebraico, coronel. Ele é o porteiro, e disse que a escola está fechada!
— Porco, falando hebraico? Justo um porco? Não falta mais nada... ai, minha úlcera duodenal, valei-me meu São Policarpo! Que estrovenga é essa aí na frente? E cadê o morro que tinha aqui? O que é que...
אם אתה רוצה לדבר עם המנהל שוב בשבוע הבא. אחר הצהריים.10—
Foi interrompido pelo porco com voz de locutor constipado.
— É para o senhor voltar na semana que vem para falar com o diretor. É que ele viaja muito, sabe como é...
— Não, Traíra, eu não sei como é... E quem disse que eu quero falar com o diretor? Nem sei quem é esse cara! Aliás... quem é esse cara?
— Amigo seu, coronel, o sabidinho q...
— O sabidinho que fala javanês?!?! – atropelou o coronel. – Foi ele que fez isso aí? – e apontou com o queixo e o beiço esticado a muralha cinzenta de salpico grosso de três metros e meio de altura e ornada com uma espiral de arame farpado em toda a extensão, com um portão de ferro de duas folhas, fechadas à solda com chapa metálica antimíssil, com três dobradiças em cada lado e cinco trancas reforçadas, cada uma com um cadeado maior que o outro, encimado por uma câmera de segurança mirando o narigão do Arrudão, na frente de onde o porco se postava qual guarda da rainha britânica, com o queixo levantado e um molho de chaves imensas pendurado num cinto militar que quase cortava em dois seu barrigão pelado cor-de-rosa.
— “Isso aí”, coronel, é a escola.
— Mas como pode ser? Aqui tinha um morro, agora tá achatado feito um campo de futebol! E quem plantou aqueles eucaliptos lá fechando a trilha da cachoeira? Falando nisso... como é que eu vou para a cachoeira agora?
הבמאי צריך לחכות שוב. בשבוע הבא. אחר הצהריים.11—
— Tem que passar pela escola, coronel, é só pagar uma taxinha prá ir, outra prá voltar. Mas o porco só libera depois de falar com o diretor. Semana que vem.
O Arrudão entrou em parafuso, bufou e corcoveou, enquanto despejava impropérios dirigidos ao mundo inteiro, incluindo o porco, o Traíra e o sabidinho, e esbravejava espalhando perdigotos:
— Como assim pagar para usar a trilha da cachoeira? É a minha cachoeira!! Com que autorização o sabidinho acabou com o morro? É o meu morro!! Quem mandou ele erguer este muro horroroso? É o meu terreno!! O que que ele...
— O senhor vendeu o morro pro sabidinho, coronel. Não lembra mais? – interrompeu o Traíra, enquanto tentava desviar da baba do Arrudão.
— Como assim vendi o morro? Como assim vendi o morro? Não vendi o morro coisa nenhuma!! – estava quase em pé na sela – É bem capaz mesmo que eu vou vender o morro, seu... seu... mas nem que a vaca tussa em latim vou me desfazer de um palmo que seja das minhas terras!! Nunca, nunca, eu prefiro a morte, prefiro a mor...
— Marido, acorda! Acooorda!! Que gritaria é essa? – assustou-se a Tetê com os gritos e chutes do Arrudão, embolado no tapete – Quié que tá fazendo aí no chão, homem? Eu te avisei que torresmo na janta só pode dar em pesadelo! – ralhou enquanto se protegia com as mãos dos perdigotos que voavam em sua direção.
— O morro... a vaca... – o coronel suava de esguichar, sentado no chão piscando os olhos estralados no pretume do quarto enquanto gaguejava e babava com os beiços tremendo.
— O quié que tem a vaca? – perguntou a Tetê.
— O morro... o morro tá achatado... eu vendi o morro pro sabidinho?? Me diga, vendi, vendi?? Ele achatou o morro... tem uma escola de bicho... o Traíra dá aula... tem eucalipto na trilha... tem muro farpado... não passa nem formiga... tem que pagar prá ir na cachoeira... prá voltar também... os bichos tudo falam que nem a gente... e a vaca... a vaca...
— O quié que tem a vaca, homem? – insistiu a Tetê.
— A vaca fala latim!
A dentadura acertou bem no meio da testa do Arrudão, que quase se afogou com a água do copo que a Tetê juntou da mesinha de cabeceira e jogou no seu rosto prá ver se ele acordava do pesadelo.
— Fale coisa com coisa, homem, não estou entendendo nada!
E o coronel Arrudão descreveu, no atropelo, ainda soluçando e tentando controlar a respiração depois da dentadurada, o sonho que teve com os bichos da estância.
— Vendi ou não vendi Tetê? Já não sei mais o que eu fiz, tô muito confuso, Tetê, me ajude... – implorou, com os olhos arregalados.
Então a Tetê puxou o coronel de
volta para a cama e o aninhou em seu colo, como uma mãe a um filho carente.
— O seu primo Ptolomeu gosta
muito das terras dele, não é mesmo?
— Quê? – soluçou.
— Seu primo. Tem um amor muito
grande pela terra, não tem?
— Nossa... demais, Tetê. Ele nem
me deixa ajeitar a estrada com máquina porque pode estragar o campo! Mas o que
tem a ver o meu primo com...
— Você acha que algum dia ele
plantaria pinnus nos campos onde as vacas dele engordam?
— Jamais, mulher, jamais. Ele
morre antes que isso aconteça.
— Pois o seu amor pela sua terra
é muito maior, marido! Eu sei, e todo mundo também sabe, que você não venderia
sua terra a ninguém, um pedacinho que fosse por dinheiro nenhum no mundo.
— Um pedacinho que fosse... –
repetiu o coronel, já ressonando.
— Então, marido, sossegue. Os
campos do seu primo já estariam cobertos de pinnus antes que você sequer
pensasse em vender um palmo desta terra que você ama tanto – e o coronel aninhou-se no colo da Tetê. – Sossegue,
marido, sossegue, foi só um pesadelo.
A Tetê acordou assustada com a
campainha estridente do telefone quase no seu ouvido, e derrubou o fone dentro
do penico ainda vazio.
— Alô! – grunhiu.
— Quem? – rosnou.
— Não, é claro que eu não estou
bem! Isso são horas prá assustar os outros? Você sabe que horas são? Você não
dorme aí onde voc... – Aqui ainda é madrugada. O
marido teve um pesadelo... e você estava nele!
— Quem é? – bocejou o Arrudão.
— É o sabidinho, lá de não sei
onde – e passou o fone.
— Fala, sabidinho... Quê? Não,
não apareceu ning... Trator de esteira? Vai fazer o que no morro? Hmmm... Vai
ladrilhar até onde? Unhum... Não, não, tudo bem, agora é teu mesmo... Caçamba
do quê? Ahh... Sei...
— Puis... Olha, sabidinho, não
sei se a caçamba chega... Se bem que... Dá pra gente usar o trator de esteira
pra arrumar o morro? Sabe como é, tão cortando os pinnus do Ptolomeu, e os caminhões
acabaram com a estrada!
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