28 abril 2008

7. O Coronel e o Picolé de Dentadura

(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto acordou tarde naquele domingo de inverno. Como era o dia da folga anual do Vassourinha, não foi acordado pelo burburinho da lida que todos os dias começava cedo, com o trato dos animais e o mugir dos bezerros durante a ordenha das vacas no galpão, com o alvoroço das galinhas acordando e disputando o milho jogado no terreiro, e com os latidos do Traíra que desviava dos coices do rosilho, que bufava pedindo a ração e implorando “...alguém prenda este sarna!”— Tetê de Deus! Acorda, mulher! Estamos atrasados! Vamos, Tuinha, acorda, abra os olhos! Temos que correr, não podemos ser os últimos a chegar...
O coronel se referia à festa de posse da nova diretoria da Associação dos Criadores de Animais de Corte e Leite de Grande e Médio Porte e Produtores Agrícolas e de Derivados Animais da Macro Região do Cajuru e da Grande Bacia do Rio Guará e Seus Afluentes, ou simplesmente a ACACLGMPPADAMRCGBRGSA, que previa, após o churrasco oferecido pelo novo presidente, um inédito concurso de mentiras! Segundo o idealizador do concurso, o diretor do departamento cultural da ACACLGMPPADAMRCGBRGSA, “— Vale qualquer mentira, grande ou pequena, pode ser estória de pescador, de fazendeiro, de administrador, até de diretor teatral, não importa, o objetivo é tornar público e premiar as estórias fantasiosas que, via de regra, são contadas apenas no aconchego dos galpões!”Puis, não por acaso, o coronel era candidato ao primeiro prêmio! Não que ele fosse mentiroso, ca-paz, claro que não! Mas era um contador de causo de mão cheia... quer dizer, de boca cheia! Ele conseguia juntar a sua característica habilidade de jundiá ensaboado com a tagarelice de um papagaio hiperativo disfarçado de alto-falante! E na opinião dele, sua estória era muito boa. Era um causo antigo, que de tanto ele contar já pensava até que fosse verdade. Confiante na vitória, passou as últimas semanas retocando os detalhes e decorando, na frente do espelho, até os gestos que faria na apresentação.
Foram os últimos a chegar, e quase perderam o churrasco. Como o coronel era muito conhecido em toda a região, sua fama o precedia, e a sua estória era de longe a mais esperada. Não pode enturmar-se nem beber com os mais faladores, por isso não houve quem não notasse a cara emburrada do coronel por ter chegado atrasado. Foi o último a se apresentar, pois os organizadores queriam que sua mentira servisse como apoteose do evento, um gran finale! Pigarreou, e após um breve momento de suspense, no qual ninguém sequer respirava, começou seu relato:
— Este fato sucedeu-se há muitos anos, mas é como se tivesse acontecido ontem. Tudo está muito vivo em minha memória. Sei que não será necessário provar o que contarei a seguir, mas antes que algum dos senhores sequer pense em duvidar de minhas palavras, digo que não estava sozinho na ocasião, e para garantir a veracidade, trouxe comigo e está presente entre nós o Sr. arrumadinho de olho azul que, juntamente com seus filhos pequenos e com um sobrinho meu, foi co-protagonista do episódio. É pessoa da maior integridade, e estará à disposição dos senhores para confirmar, tintin por tintin tudo o que se sucedeu. Seu arrumadinho, por favor, levante-se para que todos o vejam!
Sim, senhor, era o arrumadinho! De novo, envolvido em outra aventura do coronel! Foi ovacionado pela multidão, e sentou-se rapidamente, constrangido. O coronel continuou:
Era uma noite quente de um sábado, no verão de 93, e estávamos cansados pelo trabalho pesado de reconstruir o galpão da minha estância durante o dia todo, sem descanso. Ali pelas nove fui deitar, meu sobrinho e os dois filhos do arrumadinho já dormiam noutro quarto, e o arrumadinho resolveu dormir numa rede, pendurada no galpão inacabado entre as pilhas de tábuas. Passava um pouco das duas quando acordei de sobressalto com o estouro de um tiro! Pulei da cama num pé, e no outro já estava no galpão, com o lampião numa mão e a minha 22 de repetição na outra, engatilhada e destravada! A rede estava vazia e balançando, e já imaginei o pior. Procurei pelo galpão e encontrei o arrumadinho agachado atrás de uma pilha de caibros de eucalipto, apontando o dedo e gaguejando:
— Veio dali o tiro, Arrudão, veio dali o tiro...
— Te acalma, homem! Dou uns tiros de espingarda, só pra assustar, e quem atirou vai-se embora.
E foi o que fiz. Saí uns dois passos do galpão, mirei pro alto, pois afinal sou homem cuidadoso e não vou querer ferir ninguém, não é mesmo? Dei três tiros, apurei o ouvido e nada.
— Viu só? Eu não disse? Nessa hora a gente tem que manter a calma, ser sensato, usar a cabeça... nada de desespero!
Dei um passo de volta em direção ao galpão, e um barulho ensurdecedor, daqueles de fazer pular as telhas das ripas, ribombou nas nossas orelhas! Pois eram armas atirando contra nós! Muitas armas, muitas armas, olha, pelas minhas contas no mínimo umas duzentas e cinqüenta! Era tiro e bala pra todo lado, passavam assobiando e explodiam nas tábuas do galpão e... as tábuas!... as tábuas do galpão!!
— Ah! não, ah! não, as tábuas, não!! Um homem pode suportar muita coisa, mas furar de bala as tábuas quase novas, recém pregadas e ainda nem pintadas, aí já é demais!
De pronto me agachei, virei pro lado que vinham as balas e esvaziei o carregador. Saíram as dez balas, pá, pá, pá, e corri pro galpão já chamando o arrumadinho:
— Pega os guris e leva pro Fusca, vou pegar a caixa de balas e te encontro lá...
— Mas Arrudão, as crianças? No Fusca? É mais seguro ficar dentro de casa, onde elas estão!
— Não discuta, preciso de vocês prá encher os carregadores enquanto encho de chumbo essa ladroagem...
— Ladroagem? E desde quando ladrões atiram deste jeito?
— Só pode ser! Vai ver eles querem me tomar a estância, faz tempo que tenho pesadelos com isso... mas eles não sabem com quem se meteram!


Nestas alturas, a platéia já estava inquieta. O dia estava muito frio, a estória estava muito comprida, o coronel dava muitos detalhes, e ainda por cima representava o que estava contando. No seu entusiasmo, não percebeu a impaciência dos ouvintes, e continuou a narrativa:
Fui voando prá dentro da casa, e num instante saí com a caixa de balas e o meu sobrinho num braço, e os dois piás do arrumadinho no outro, em direção ao Fusca. Joguei tudo no banco de trás, e quando o arrumadinho entrou, determinei:
— O piá atrás de mim pega o carregador, o do meio e o da outra ponta carregam as balas, o arrumadinho substitui o carregador na espingarda e passa ela engatilhada prá mim, enquanto eu dirijo e encho de chumbo esses bandidos...
Nem dei tempo pro arrumadinho discutir, acendi os faróis, arranquei patinando, e desembestei arrancando capim em volta da sede, e antes de terminar a primeira volta já tinha esvaziado três carregadores. Era igual linha de produção, carregador vazio prá trás, a espingarda pro arrumadinho municiar, logo recebia ela de volta e com o braço esquerdo prá fora do carro metralhava acompanhando a luz dos faróis em direção aos matos e morros em volta da sede. Ali pela décima sétima volta comecei a ficar preocupado, porque só tinha mais umas três mil balas na caixa, mas não me abati. Manobrei e comecei a dar as voltas em sentido contrário. Isto deve ter confundido os bandidos, porque na quadragésima volta eles pararam de atirar!
Parei o Fusca, mas deixei o motor ligado e os faróis acesos, afinal, sou um homem prevenido e cuidadoso. O cano da espingarda estava em brasa, e demorou um tempo prá gente conseguir enxergar a casa e o galpão por causa da fumaceira do tiroteio. Nenhum pio, nem fora, nem dentro do Fusca. No banco de trás, os piás estavam com os olhos arregalados, e continuaram assim por mais de uma semana. Quando amanheceu, desliguei o motor, apaguei os faróis, e saímos para ver o estrago. O galpão virou uma peneira, dava prá ver do outro lado pelos furos de bala nas tábuas. Os matos em volta da sede estavam desgalhados, e onde tinha galho, não tinha folha. Por quinze dias, nem passarinho apareceu nas redondezas. Os bandidos? Nunca mais vi, nem ouvi. E foi tanto tiro que até hoje, em cada galinha que preparamos pro almoço, ainda encontramos cartuchos de 22 na moela!

Disse a frase final com o braço levantado, dedo em riste, com a voz firme para dar efeito, e esperando a reação do público, que não aconteceu. Só depois que o diretor do departamento cultural da ACACLGMPPADAMRCGBRGSA pegou o microfone e pediu “...uma salva de palmas para o coronel, gente!” é que o público percebeu que a estória tinha acabado, alguns até esboçaram um arremedo de risada, e pipocou uma e outra palma. Constrangido, o coronel tentou sair de mansinho, mas solicitaram a presença de todos os “mentirosos” no palco para a escolha da mentira vencedora. O público decidiu na base das palmas e ovação, e a mentira do coronel não deu nem pro cheiro. Foi uma situação constrangedora, pois o coronel tinha chegado como favorito, e estava saindo acabrunhado pelo vexame de não merecer nem as palmas do público.
Depois da entrega do prêmio ao vencedor, uma terneira de ano, o diretor do departamento cultural da ACACLGMPPADAMRCGBRGSA deixou o microfone à disposição dos mentirosos que quisessem dirigir algumas palavras de agradecimento ao público e à nova diretoria. O coronel se sentiu na obrigação de se justificar, pois afinal de contas ele tinha um nome a zelar, e para ele, nome e prestígio não se deve descuidar!
— Quero agradecer a oportunidade, e dizer que, infelizmente, não estava no meu melhor dia. Acordamos muito tarde, e tivemos que sair apressados. O pior é que quando fui pegar minha dentadura, que eu deixo de noite ao lado da cama num copo com água e uma colher, a água estava congelada! Como estávamos atrasados não deu tempo de acender o fogão prá esquentar a água pro café, então tive que descongelar a dentadura chupando o gelo, feito um picolé, da estância até aqui!
Fez-se um silêncio gelado depois destas palavras do coronel, que devolveu o microfone e foi indo devagar, meio de lado, para fora do palco. De repente, o público explodiu em gargalhadas, ovacionou e bateu palmas por cinco minutos sem parar, gritando em uníssono “—Já ganhou! Já ganhou!”. O coronel foi carregado pela multidão, que exigia o primeiro prêmio para ele. Para não causar problemas com o vencedor já eleito, a diretoria resolveu instituir ali, na hora, um prêmio hors-concours, e deu ao coronel, ao som da multidão em delírio, duas terneiras de ano – nas palavras do novo presidente – “... pela maior mentira jamais ouvida na região do Cajurú”.

Pois é. E o coronel então voltou para casa com duas terneiras de ano, o nome e o prestígio intactos, e a fama de ser um contador de estórias como nenhum outro apareceu por aquelas redondezas! Competência é competência, e não se discute!

21 fevereiro 2008

Insônia dá nisso...

Sonho que se sonha só
É só um sonho que se sonha só,
Mas sonho que se sonha junto
É realidade!

Raul Seixas  in "Prelúdio"

24 dezembro 2007

Viagem no Tempo

O exemplar nº 0 (zero) da revista Superinteressante foi publicado em setembro de 1987 com poucas páginas e apenas 3 matérias, pois era uma apresentação da revista propriamente dita que seria publicada no mês seguinte. Em meados de 1988 eu fiz a assinatura da revista, que mantenho até hoje, apesar de ter à minha disposição uma coleção de CD’s com todas as edições desde o início até junho de 2005, lançados em comemoração aos 18 anos da revista. Do lançamento à assinatura, adquiria os exemplares na banca.
No ano de 2000, com a intenção de organizar e proteger as revistas resolvi acondicioná-las em pastas do tipo Polionda, e neste trabalho descobri que faltavam seis edições na coleção. Em poucos meses, encontrei cinco delas em sebos da cidade. Hoje, dia 21 de dezembro de 2007, após quase sete anos de busca, encontrei a única edição que ainda me faltava, a nrº 3, coincidentemente publicada em dezembro de 1987, há exatos 20 anos! Como acontece todo mês ao receber o exemplar da revista, mas com o sabor especial de ter em mãos uma raridade e a satisfação de tê-la encontrado, devorei a edição em pouco mais de uma hora.
Na seção Grandes Idéias, a matéria ‘O computador’ conta resumidamente em duas páginas a história da máquina que começava a se tornar conhecida do grande público, do usuário leigo, e a entrar em suas casas nas suas versões mais primitivas, e na seção Cartas dos Leitores depoimentos da adida de imprensa do Consulado Geral dos EUA em São Paulo e do ministro da Ciência e Tecnologia elogiavam a iniciativa da Editora Abril e a qualidade da revista.
Mas em uma matéria de tecnologia, ‘O Computador Levanta Vôo’, experimentei a sensação ímpar de comprovar o acerto – e também o desacerto – de algumas afirmativas e previsões. O texto fala de um supercomputador instalado na NASA que simula testes de aviões, o Cray-2, com 8 processadores, clock de 2 GHertz e memória de 256 MB, que esquentava tanto para realizar seus cálculos que a refrigeração era feita com fluido de Fluorcarbono (ou fluourinert), o mesmo utilizado em transplantes de coração, escolhido por ser incolor, inodoro, atóxico, não inflamável e ter alta estabilidade térmica e capacidade de transferência de calor. Este fluido circulava entre os circuitos para captar o calor e depois de resfriado em uma unidade externa retornava ao equipamento, mantendo assim a temperatura em níveis aceitáveis, exatamente como é feita a refrigeração dos motores dos nossos carros. Na época existiam uns trezentos supercomputadores, dos quais apenas 27 Cray-2, concentrados nos Estados Unidos, Canadá, Japão e países da Europa, que não vendiam para ninguém, e quem não tinha, esperava a vez para poder comprar. No Brasil havia pelo menos 6 empresas e instituições de pesquisa interessadas, da Petrobrás ao CTA – Centro Técnico Aeroespacial. O interessante é que este supercomputador, que custou quase 20 milhões de dólares à NASA, era 16 vezes mais lento e tinha 8 vezes menos memória que o micro com o qual escrevo este texto.

Supercomputador Cray-2 e módulo de resfriamento expostos no Computer History Museum, em Mountain View, Califórnia, USA.

Sobre a simulação dos testes de aviões, a matéria cita o projeto do Expresso do Oriente, inspirado num velho sonho americano, o X-30, que voaria a 30 mil quilômetros por hora e que, além de avião comercial, substituiria os ônibus espaciais do tipo Challenger. O Expresso do Oriente foi projetado para transportar 500 passageiros, voar a 17.000 Km/h, ou 14 vezes a velocidade do som (match 14) e ligar Washington a Tóquio em três horas, treze a menos que os jatos atuais, até o ano 2000!

Ilustração: Revista Superinteressante, pág. 30, edição nr. 3, dez 87

A realidade mostrou-se bem menos audaciosa, pois o maior avião comercial voando atualmente, vinte e sete anos após a previsão, é o A380, que transporta mais de 800 passageiros, mas com velocidade muito inferior à match 14 do Expresso! Os dois maiores limitadores da imaginação dos projetistas de aeronaves, além do custo, são o barulho gerado pelos motores e o alto consumo de combustível. O maior exemplo que temos é o fracasso comercial do Concorde, cujo último exemplar em operação encerrou as atividades em outubro de 2003, e hoje é visto apenas em museu. Ele era autorizado a voar acima de match 1 apenas sobre oceanos e grandes áreas desabitadas, como os desertos, por causa do barulho, e consumia 20.000 quilos de querosene por hora de vôo transportando apenas 100 passageiros, contra os 350 passageiros que o Boeing 747 transporta consumindo bem menos combustível.
As grandes realizações do homem nascem com um sonho, e não custa sonhar. Mas custa realizar, e por isso um sonho pode ser adiado por muito, muito tempo, até tornar-se realidade. Quem viver, verá!

16 dezembro 2007

Verborragia é isso...

Que o bimbalhar dos sinos
e o tresloucar dos gargalhões
imantem os eflúvios cumulativos peremptórios
para os perpassares antológicos
das excelsas veredas pinaculares!
Ora, se.
Adesivo colado no vidro traseiro de uma Caravan estacionada em rua central de Florianópolis em janeiro de 1978. A tradução conservadora do texto é "Feliz Natal". Há quem queira acrescentar "...e Próspero Ano Novo", mas assim também já é demais...

04 dezembro 2007

Questionar é Preciso


Sidney Harris (ScienceCartoonsPlus.com), em "A Ciência Ri" - editora Unesp

Nós Merecemos o que Queremos?

Crítica a respeito da decisão dos empregados da Caixa, agência Lages/SC, durante a greve de 2005, de interromper a paralisação iniciada apenas um dia antes. Lages, SC, outubro 2005.

Em abril deste ano recebemos pelo CaixaM@il uma mensagem do nosso colega Nelson Guimarães na qual transcrevia o texto de Aldo Novak, sobre frase de James Allen: “Por que? Por que não? Por que não eu? Por que não agora?". Naquela época, chamou-me a atenção pela sua simplicidade e pela lógica do raciocínio.
No curso de computação somos sistematicamente orientados a pensar logicamente. As coisas na nossa cabeça com o tempo tendem a se resumir em [uns e zeros], [se isto então aquilo], [falso ou verdadeiro]. Mas, claro, nem tudo é lógico. Aliás, pouca coisa o é. Gente é ilógica! Talvez isso explique o estigma que persegue e rotula como fora da casinha os que se dedicam em tempo integral à ciência informática. Para estas pessoas, é tão difícil entender e aceitar a imponderabilidade das coisas e das pessoas, que estes malucos preferem o isolamento das linhas de código e dos compiladores ao convívio pernicioso do pensamento não lógico. Ainda se fosse não pensamento lógico, vá lá...
Lembrei daquele texto hoje, ao sair da nossa assembleia que decidiu pela interrupção da greve.
Mesmo sem a preocupação com a sistemática, e sem nem nos darmos conta, na semana passada acabamos seguindo o roteiro sugerido: — Por quê? Por que estamos reunidos? Para questionar nosso presente, e discutir nosso futuro, com certeza. O que temos hoje é suficiente? É o que precisamos? É só o que a Caixa pode nos oferecer? Pior: será que é só o que merecemos? E o que queremos para nós amanhã? Sobrevivermos, simplesmente? Queremos mais dignidade, pelo menos. Mais respeito. Queremos ser ouvidos, e ser valorizados. Nada de extraordinário, só o básico. Tipo assim, pagar as contas em dia, entende? — Por que não? Por que não dizer à Caixa da nossa insatisfação, da nossa discordância? Se a Caixa mexe há tanto tempo no nosso bolso, por que não podemos mexer no bolso da Caixa? Assim seremos ouvidos, com certeza. Por que a Caixa ofende nossa inteligência ao negar um reajuste mínimo, ao mesmo tempo em que alardeia um lucro bilionário no primeiro semestre do ano? Por que temos que acreditar que quatro por cento é tudo que pode ser dado? Por que não usarmos do recurso mais radical ao nosso alcance? Por que não entrarmos em greve? — Por que não nós? Se a adesão à greve ainda não é consistente, por que não fazermos a nossa parte, mesmo que para isso tenhamos que dar o primeiro passo? Por que não podemos ser a primeira agência a fechar no interior? Por que temos que esperar pela iniciativa de Florianópolis, Chapecó, Santo Antônio da Boa Vista, Icó, Brasília ou Santana do Parnaíba? Se é o que queremos, e no que acreditamos, por que não podemos fazer? — Por que não agora? Se não fizermos nossa parte porque outro ainda não fez a sua, corremos o risco de ficarmos esperando uns pelos outros, e nada ser feito. Por que não fazemos nossa parte agora? Estaremos dando exemplo para quem espera por um, e ao mesmo tempo estaremos dizendo estamos com vocês àqueles que tomaram a iniciativa antes de nós. A força do todo é a soma do esforço de suas partes. Por menores que elas sejam.
Tomamos uma decisão madura. Cumprimos os compromissos assumidos com as gerências. Negociamos as situações imprevistas. Paralisamos a agência na segunda-feira, dez de outubro, como nunca havia sido feito, e sem tropeços, sem tumulto e sem um desgaste significativo. Fomos conscientes e responsáveis na execução daquilo que responsável e conscientemente decidimos. Mas no final da tarde...
Na minha opinião, fizemos tudo certo. Tomamos a decisão de parar, paramos, demos o nosso recado com competência. Com certeza encorajamos a parar muitos que esperavam pela iniciativa de alguém. Demos o exemplo. Chamamos para que nos acompanhassem, da mesma forma que nós abraçamos os pioneiros das capitais, parados desde a semana passada. Só que agora, mesmo sabendo da possibilidade de paralisação de várias unidades do estado, a decisão tomada em nossa assembleia do final da tarde foi de interromper a greve!
Agora passam alguns minutos das duas horas da manhã de terça-feira. Não sei o que vai acontecer hoje nas outras agências, nas outras cidades, nos outros estados. Pelo menos para mim, não importa se vão parar ou não. Independente do que aconteça em âmbito nacional, sinto que o que fizemos não passou de fogo de palha. Faltou-nos a coragem, não acreditamos o suficiente, talvez. Não cabe a mim – nem a ninguém – questionar a decisão de nenhum dos colegas presentes na assembleia. Não tenho este direito, cada um sabe os motivos da decisão que tomou – a de manter a greve, a de interrompê-la, a de abster-se também, e esta decisão deve ser respeitada por cada um de nós. O problema é que não conseguiria dormir sem externar o sentimento de frustração que me assolou, por não conseguir entender por que paramos no nosso melhor momento. Apelei para a lógica, e mesmo assim não encontrei uma resposta. Provavelmente porque não haja apenas uma resposta. Talvez ainda precisemos do exemplo e da iniciativa dos outros para apoiar nossas decisões. Talvez não sejamos maduros e conscientes o suficiente para saber o que queremos. Talvez mereçamos mesmo só o que a Caixa nos oferece.
Acenamos com um caminho, e nos contentamos com um atalho.
Alexandro Reis.
(11out2005)

6. Aventuras do Coronel

(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto olhou-se no espelho por cima do ombro, depois de frente, de lado, de frente de novo. A Tetê segurava o riso enquanto olhava lá da sala com o canto do olho. Não é que o seu Arrudão estivesse ridículo, imagina, claro que não, mas é que aquele calção vermelho, curto e bem apertado não combinava com o estilo socadinho e meio bruto do coronel. Juntando a camiseta branca, modelo regata uns três números menor que a barriga já saliente, e completando o quadro, meia social curta marrom e tênis Kichute, ficava ridículo uma bar-ba-ri-da-de!
O coronel ainda não tinha falado nada. Fazia quase hora que andava do quarto pra sala, da sala pra cozinha, voltava pro quarto. Parava em frente ao espelho, sério, desconfiado, depois saía, voltava e se olhava no espelho de novo.
— Tá preocupado com alguma coisa, amor?
— Não sei... estou me sentindo esquisito vestido assim. Não estou parecendo ridículo?
— Ca-paz, amor. Este uniforme ficou muito bem em você!
Virou o rosto e fez de conta que fazia alguma coisa, estava difícil ficar séria olhando prá ele.
O coronel se preparava para um campeonato de peteca nas terras do doutorzinho casca grossa, lá pros lados do Capão Alto. Já não tinha mais idade para atividades violentas deste tipo, mas neste caso estava abrindo uma exceção porque outros conhecidos seus também participariam. Eram todos homens calejados como ele pela dura lida das estâncias e fazendas, e mais alguns colafinas da cidade. Como os jogos seriam de duplas, decidiu convidar o arrumadinho de olho azul, com uma condição:
— Chegue amanhã bem cedo aqui na estância – disse ao telefone pro arrumadinho – no máximo às 6:00h.
— Mas o jogo é à tarde, Arrudão, por que tão cedo?
— Porque nós vamos a cavalo, homem!
— Mas são quase trinta quilômetros! Só de ida...
— Por isso mesmo temos que sair cedo. A peteca é um esporte violento, a peleja vai ser dura. E eu não vou me mixar indo de picape, isso qualquer um faz, mas eu não, eu quero chegar em grande estilo montado no rosilho.
Silêncio no outro lado da linha. Em seguida, hesitante:
— Legal... bom, então a gente se encontra lá...
— Mas de jeito nenhum, arrumadinho, vamos chegar os dois a cavalo, na hora do jogo, de uniforme e prontos para a batalha. O Vassourinha até já pintou o nome da nossa dupla com tinta a óleo na camiseta, “Os Brutos”, ficou uma beleza.
— Mas Arrudão, esqueceu o almoço lá na fazenda do doutorzinho? Ele já matou uma vaca pro churrasco...
— Esqueça o almoço. Churrasco tem todo dia. Já preparei um lambisco prá viagem suficiente prá nós dois, e olha, nem precisa me pagar. Ah!, ia me esquecendo, você vai com a Cheirosa, aquela égua tobiana lá do meu primo, ela tá meio velhinha e tropeça um pouco, mas ainda agüenta o tirão. Não se atrase!
E desligou o telefone. Do outro lado da linha, o arrumadinho suspirou fundo.
Chegaram quase quatro da tarde, os dois vestidos com o uniforme, calções vermelhos – bem apertados – e camisetas regata brancas. Já tinham perdido as duas primeiras partidas por W.O. Estavam estropiados. O arrumadinho apeou com esforço, quase teve que ser ajudado. Tirou a camiseta, e parecia que tinha outra camiseta branca por baixo, pois a pele dos braços, do pescoço e das pernas estava encarnada, torrada pelo sol. Cambaleou até o tanque e enfiou a cabeça debaixo da bica d’água, enquanto o coronel foi se justificar com o doutorzinho pelo atraso. Ele parecia mamado, pelo bafo e pelo ronco quando ria. Das cinco partidas do sábado, perderam as duas primeiras por W.O., outras duas tentando jogar, e na última o arrumadinho recusou-se a entrar em quadra. À noite, depois da janta e à custa de aspirina, sal de frutas e muita pomada para assadura, ele contou que desde as seis horas da manhã até a chegada, passaram comendo o lambisco preparado pelo coronel, dois ‘pão’ dormido, um pedaço de queijo e uma volta de lingüiça, e em cada uma das 47 porteiras do caminho tomavam um gole de branquinha, e entre uma porteira e outra iam encontrando peões e alguns casais com ou sem crianças, a pé, a cavalo ou de carro e todas essas pessoas, sem exceção, cumprimentavam e se apresentavam, e o coronel acabava descobrindo que era parente, ou parente de um parente, até afilhado esquecido encontrou, e lá ficava proseando, pedindo pelos conhecidos e mandando abraços e lembranças. Se estivesse embrulhado com arame farpado não enroscava tanto pelo caminho.
No domingo de manhã, depois do coronel ter bebido quase todo o estoque de cerveja do doutorzinho ainda no sábado, e do arrumadinho ter varado a noite sem dormir por conta dos pesadelos com porteiras e todos os parentes do Arrudão, as coisas não melhoraram. Perderam mais duas partidas e foram desclassificados antes das onze, mas em compensação, foram aclamados como “a dupla mais sensual”, e seus uniformes foram eleitos por unanimidade como “os mais atrevidos do campeonato”, com direito à faixa e estridente ovação pela torcida. Depois da premiação e do convite prá desfilar para a torcida, que foi gentilmente recusado com um tabefe nas orelhas do enrugadinho transcendental, o idealizador da premiação, o coronel disse para o arrumadinho:
— O trecho é longo. Vamos embora antes que inventem mais alguma bichice.
— Ih! Arrudão, olha, sei não, acho que não vai dar, tô meio sem condições, acho que vou com o...
— Nem pense nisso, tenho que levar os cavalos, você precisa voltar comigo – bafejou o coronel.
— Mas, escute, ainda tem o almoço, podemos sair à tarde – o arrumadinho ponderou administradoramente.
— Mas você só pensa em comida, abençoado? Fique tranqüilo, peguei umas lingüicinhas que sobraram de ontem e mais umas bananas e pronto, já podemos sair!
O arrumadinho suspirou fundo, levantou-se e caminhou em direção à Cheirosa como um condenado em direção à forca. Encilharam os animais ao som da gritaria da torcida em volta da quadra montada no pasto recém aparado um pouco além da roça de milho, e do vozerio e risadas dos homens discutindo futebol, política e outras bobagens enquanto aperitivavam e bebiam cerveja em volta dos espetos de lombo e costela assando no fogo de chão. O arrumadinho estava inconformado, mas aceitou vir a cavalo com o coronel e não podia deixá-lo na mão. Era uma obrigação voltar como viera. Olhou a sacola plástica de supermercado com as lingüicinhas e as bananas pendurada na sela do rosilho, olhou de novo aquele mundo de espeto ao redor do fogo, os tambores cheios de latas de cerveja cobertas com gelo, suspirou de novo e montou na Cheirosa, e conduziu o animal a passo seguindo o rosilho. Ladearam a churrasqueira, os amigos que bebiam e se divertiam e pediam que ficassem, a quadra com a torcida algazarrenta na partida final, seguindo ainda a passo em direção à porteira e ao Cajuru, distante Cajuru. Até sumirem da vista, o arrumadinho ia olhando para trás, com olhar comprido, daquele que diz ‘eu tô indo, mas queria mesmo era ficar’.
Uma semana depois da aventura, o arrumadinho, já recuperado fisicamente, relatou, com expressão de extrema angústia, a odisséia do retorno. Disse ele que, de novo, em cada uma das 47 porteiras tomaram um gole de branquinha, e encontraram novamente todos aqueles parentes da vinda, e mais alguns que haviam desencontrado, e todos eles cumprimentavam novamente, e passavam a contar o que haviam feito na casa dos parentes que foram visitar e as histórias de família, e a todos eles o coronel contava sobre o desafio da cavalgada, as porteiras, o campeonato, a sapecada do arrumadinho, e mandava lembranças e... nesta altura do relato, o arrumadinho começa a tremer, lacrimejar, pede um calmante e balbucia:
— Foi horrível, horrível... porque estas agruras só acontecem comigo? Ainda tenho pesadelos... nunca mais vou esquecer...
Mas o melhor do relato do arrumadinho aconteceu perto da estância do Arrudão. Já era noite alta, sem lua e sem estrelas, escura como breu, e a Cheirosa começou a ficar inquieta. O coronel conduzia o rosilho prum lado, depois voltava, ia por outro lado, a égua negaceava, bufava, o Arrudão resmungava, o arrumadinho desconfiou que alguma coisa estava errada, até que não se conteve:
— Ô Arrudão, o que é que está havendo? Perdeu o rumo?
— Era só o que me faltava! E eu sou lá homem de perder o rumo? Eu me criei nestes campos, posso cavalgar até de olhos fechados! Estes bichos é que estão esquisitos, devem estar com fome ou sede, ou viram cobra...
O arrumadinho não falou mais nada. O coronel continuou bufando, praguejando, resmungando, e nada de sair do lugar, até que deu a mão à palmatória.
— Olha, eu estou meio tonto pela branquinha...
— Ééé... beber com barriga vazia dá nisso...
— Não é isso! Eu estou dizendo é que você pode até não acreditar, mas acho que me perdi...
— Mas eu acredito, Arrudão, eu acredito.
— Ainda se tivesse uma lanterna... Bom, é o seguinte, vamos voltar até a entrada do sítio do Firmino, de lá eu encontro o...
— Arrudão, vamos soltar os animais, quem sabe eles se localizam? – o arrumadinho sugeriu, impaciente. O coronel riu e ironizou:
— Ah, tá! Eles vão acender os faróis e achar o caminho, é isso? Era só o que me faltava!
Mas a rédea solta e um tapinha no pescoço fez com que a Cheirosa desse meia volta e, seguida de perto pelo rosilho, num passo nervoso, contornasse o capão que o coronel insistia em atravessar. A velha égua cruzou a sanga que cortava o mato ralo, subiu um trecho de campo com vassouras até chegar numa taipa com pedras caídas, mais um trecho no meio de vassouras, e por entre as árvores na beira da trilha surgiram as luzes da estância do coronel!
O coronel tomou a dianteira, e resmungou o resto do caminho. O arrumadinho achou melhor ficar quieto. De vez em quando a Cheirosa bufava e o rosilho virava e balançava a cabeça, dando pequenos relinchos, como que dizendo – ‘eu sei, eu sei...’. Arrudão nunca mais tocou neste assunto, e nunca confirmou a história. Para falar a verdade, também nunca desmentiu...

24 novembro 2007

Somos o Que Fazemos


Quino, ou Joaquín Salvador Lavado, nasceu a 17 de Julho de 1932, filho de imigrantes espanhóis, andaluces, na cidade de Mendoza na Argentina.

11 novembro 2007

5. A Barganha do Coronel

(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto deu mais uma cuspida no capim molhado pela chuva na tarde sem graça daquela quinta-feira abafada. Estava há mais de hora debruçado na janela, pitando palheiro e pensando na lida parada. Tetê ressonava estirada no sofá, embalada pela televisão ao som da reprise de uma novela, e que ela jura que não perdeu nenhum capítulo. O gado pastava tranqüilo o capim viçoso entre os caraguatás, o Traíra fazia de conta que dormia com um olho fechado e outro aberto, cuidando ora do gado, ora do coronel, esticado nas pedras laje da calçada em frente à porta do galpão, e do rosilho escondido pelas moitas de vassoura do campo aparecia só o costado molhado pela chuva fina e constante, daquelas que não acabam nunca e que fazem um barulho nas telhas de barro que convidam para dormir ou tomar café com bolo frito. Um marasmo.Pois o marasmo acabou quando viu descendo a estrada que traz ao portão da estância, caminhando em passos rápidos e desviando das poças, o seu peão Vassourinha, que reconheceu logo pela piaçaba negra que cobria metade do rosto, das fuças até o queixo, e pelos longos cabelos molhados e escorridos sobre os ombros, e outro homem, que segurava sobre a cabeça abaixada uma pasta para protegê-la da chuva, e que não reconheceu até que chegassem mais perto, quando levantou a cabeça para ver o caminho até a casa. Era o advogado, aquele, aquele que nunca havia perdido uma causa! Arrepiou-se, cuspiu de novo, e empertigou o corpo, imaginando o que é que o Vassourinha estava aprontando, aparecendo na estância depois de tanto tempo sumido trazendo um advogado a tiracolo. E justo aquele advogado? Será que tinha alguma coisa a ver com o pesadelo da escritura das suas terras?
— Boa tarde, seu Coronel, desculpa atrapalhar, este é o doutor ad...
— Eu sei quem ele é! E o senhor, hein, seu Vassourinha, por onde é que andou? Esqueceu do serviço? Ganhou na loteria? Olha o campo, a desgraça que tá isso, como é que você faz uma coisa dessas e não avisa, nem dá satisfação?
Ignorou de propósito o advogado que, apesar da sua indelicadeza, cumprimentou-o, respeitoso:
— Boa tarde, seu Gumercindo. Não queremos incomodar demais o senhor, nossa conversa é rápida. O Sr. Vassourinha pediu minha ajuda para resol...
— Prá que você precisa de um advogado, Vassourinha? – interrompeu, ignorando de novo o advogado, que começou a se irritar.
— O Sr. Vassourinha – insistiu com firmeza – pediu minha ajuda para discutir a respeito dos direitos que acumulou durante todo o tempo em que trabalhou para o senhor, Sr. Gumercindo.
— Direitos? Mas de que direitos ele está falando, Vassourinha? Que história é essa?
— Hã... bom, coronel Arrudão, é que... bem, o senhor sabe, desde que... olha, coronel, na verdade foi o...
— Direitos trabalhistas, Sr. Gumercindo, direitos trabalhistas, por todo o tempo que o senhor forçou este pobre homem a um trabalho escravo. Isto é crime, e pelo que o seu peão relatou o senhor pode até perder sua estância como forma de indenização por tamanha exploração, Sr. Gumercindo.

O advogado falou firme, olhando ameaçadoramente o coronel, que percebeu naquele momento que tinha um problema sério para resolver. Um sério e bigodudo problema. O coronel era homem viajado, razoavelmente instruído e culto, de raciocínio rápido, ligado no mundo pelas antenas do seu inseparável Philco Transglobe de 9 bandas, e era conhecido na cidade e em toda região do Cajuru por duas marcantes características: uma irritante sovinice – faltava pouco para começar a lascar palito de fósforo ao meio para fazer dois, e uma habilidade incomum de convencer as pessoas sobre o que ele bem entendesse. Em outras palavras, além de avarento era mais liso que jundiá ensaboado!

— Trabalho escravo? Trabalho escravo?– repetiu o coronel, enquanto se dirigia quase correndo para a varanda, onde estavam o peão e o advogado molhando as tábuas enceradas com a água que escorria das roupas encharcadas – De onde tirou um absurdo desses? – e sem dar chance de ser interrompido, desandou a enumerar os incontáveis benefícios que o seu peão usufruía, a comida boa e bem feita, sem luxo mas sem carência, o teto e a cama de graça, o linimento e os curativos nos machucados, o elixir paregórico e os escalda-pés nos desarranjos e resfriados, o senhor e a dona Tetê sempre foram muito bons para mim coronel, e a vaca, Vassourinha, veja bem nunca lhe cobrei arrendo do campo nem a vacina da aftosa mas isso é fácil de se resolver, fico com a Quilemeio pelas despesas até hoje, está certo coronel parece justo, e o advogado não acreditava no que estava ouvindo, Vassourinha, veja bem você sempre foi tratado com sendo da família, a porta da casa nunca esteve fechada, você que sempre quis dormir no galpão e comer no banquinho de toco ali fora na calçada, é acho que sim seu coronel, se o senhor diz, e veja bem Vassourinha, nunca lhe cobrei a carona na carroceria da picape indo ou vindo da cidade, nem o uso das minhas ferramentas quando você arava e plantava o meu canteiro de arruda, nem as vassouras do campo e os caraguatás que você não arrancou, nem os dias parados por causa da chuva que você continuava comendo e dormindo de graça, nunca vou esquecer o que o senhor e a dona Tetê fizeram por mim coronel, e o advogado fechou a pasta e sapateava incrédulo não posso estar ouvindo isso, Vassourinha, veja bem, não quero que ninguém fique falando que eu não soube reconhecer sua dedicação, diga o que eu posso fazer por você como forma de compensar o trabalho de trazer o advogado até aqui prá nada, diga e eu vejo se posso atender, bem seu coronel eu sempre quis ter uma casinha só prá mim ali no meio do pomar, nem pensar Vassourinha, você andou bebendo daquela água, não seu coronel, pois então se atipe animal, então lá no fundo do campo seu coronel perto da cachoeira, esqueça Vassourinha o bostinha colafina chegou primeiro, então quem sabe uma meiágua de dois por dois lá na entrada do mato, piorou Vassourinha o arrumadinho de olho azul não vai deixar, ah! então não sei coronel, o advogado tentou falar o coronel levantou o dedo e fuzilou com o olhar, ele fechou a boca e engoliu em seco, assim é melhor se não ajuda não atrapalha, Vassourinha, veja bem, acho que não lhe devo prá tanto mas prá encerrar o assunto e você assinar aqui neste papel que está tudo bom e que não lhe devo nada, mas o papel está em branco coronel, eu sei Vassourinha depois eu preencho, veja bem prá que você não diga que sou ingrato eu lhe ofereço o cupinzeiro ali do pomar, obrigado seu coronel eu sempre gostei muito do pomar, mas não é o pomar sua anta é só o cupinzeiro, ah! é só o cupinzeiro coronel, tudo bem eu lhe agradeço muito assim mesmo, coronel, o senhor é um homem muito bom, ora Vassourinha, não precisa elogiar tanto, assine aqui, isso, assim mesmo, pronto o cupinzeiro é todo seu Vassourinha, obrigado, seu coronel muito obrigado.

Uma tentativa de aparte do advogado foi interrompida por outro olhar fuzilante do coronel Arrudão, e de novo engoliu sua incredulidade e indignação pela situação absurda que acabara de presenciar. Nunca havia passado por uma situação como aquela! Preferiu dar meia volta e sair pisando duro debaixo da chuva, em direção à porteira. A partir daquele momento, para o coronel ele deixou de ser aquele advogado que nunca perdeu uma causa...
— Tetê! – Arrudão chamou, enquanto guardava satisfeito o papel no bolso da camisa.
— Quifoi, amor? – perguntou a Tetê, sonolenta, da porta da varanda.
Acomodou-se na cadeira de balanço, suspirou fundo e pediu, olhando o peão:
— Traz uma xícara de café preto com bastante açúcar prá mim enquanto eu preparo outro palheiro, e uma água de privada bem fresquinha pro Vassourinha, pois temos muito a comemorar!

O Vassourinha dispensou o copo, e numa sentada bebeu no bico metade da jarra.
— Comemorar o que, amor, posso saber?
— Depois te conto, mulher, depois te conto...
Enquanto o coronel esticava as pernas cruzadas e acendia o palheiro, viu o seu peão Vassourinha, dedo em riste, troteando feliz da vida em direção ao cupinzeiro e chamando a multidão para que o acompanhasse na pregação da palavra divina. De hoje em diante, o cupinzeiro era seu, só seu.

10 novembro 2007

A Máquina, o Lobo do Homem?

Dissertação apresentada à disciplina Metodologia Científica do Curso de Ciência da Computação da FACIC – Faculdade de Ciência da Computação - Sociedade Lageana de Educação. Lages, SC, março 1999.
Desde muito antes da Revolução Industrial, a mecanização tem acompanhado a trajetória de glória e miséria do homem, e tornou-se, desde muito, objeto de pesquisas, estatísticas e estudos por parte das mais variadas entidades e correntes do pensamento teórico, de todas as partes do mundo industrializado. Ontem, a máquina, pura e simples; hoje, a máquina automatizada, informatizada. Mas, sempre uma máquina, a competir com o homem na atividade sustentáculo da economia: o trabalho produtivo. A máquina é o lobo do homem? A resposta a esta pergunta exige que identifiquemos exatamente quem responde, e em que contexto está inserido. Um claro exemplo desta afirmação serão as respostas do empresário que investe na automação de seus equipamentos e enxuga o quadro de pessoal, e do empregado preterido pelo equipamento automatizado. Enquanto este lamenta o seu infortúnio, creditando ao progresso, ao desenvolvimento de novas tecnologias e às leis predatórias do mercado competitivo a sua desgraça e a falta de perspectiva de encontrar novo trabalho, aquele contabiliza os lucros advindos do investimento na tecnologia enquanto disserta sobre as maravilhas do gênio criativo do homem e suas extraordinárias conquistas.
A máquina, que livra o homem de tarefas perigosas, insalubres, cansativas, repetitivas, falíveis, também pode tirar dele a garantia do trabalho, a segurança, o sustento, a auto-estima, a motivação. E assim é a lei de mercado: cruel, sádica, insensível, refratária às aspirações dos humildes, das minorias. Atropela-os, arrasa-os como aterradora avalanche, engolindo a tudo e a todos. Sem remorsos, sem lamentações. Quadros como este, que descrevem um sem número de situações cotidianas à nossa volta, e em todos os quadrantes do nosso planeta, preocupam-nos e, por vezes, atingem-nos em maior ou menor intensidade. E, como couraça protetora, escondemo-nos dentro de nós próprios, envoltos na ‘segurança’ de nossos empregos ou de nossa atividade profissional qualquer que seja - ainda ‘segura’, e seguimos engolindo a frustração, a ansiedade, até que uma nova avalanche aconteça e nos engula...
Esta atitude impede-nos de perceber, por detrás das ‘calamidades’ que acontecem quando empregos são extintos, quando profissões se tornam desnecessárias do dia para a noite, quando nossos produtos tornam-se obsoletos ou quando a exigência dos nossos clientes se nos parecem exageradas, que em tudo o que nos acontece é possível encontrarmos aspectos positivos que nos farão maiores, ou melhores. Muitas vezes, percebemos o benefício muito tempo depois do problema, ou ele se materializa após muito tempo de amarguras e ressentimentos. Mas nossa visão deve ser abrangente, temos que alargar nossa perspectiva, ir além do que sabemos e vivenciamos. Não é por acaso que o ideograma chinês que representa crise é formado pelos ideogramas problema + oportunidade. São nas adversidades que encontramos a oportunidade de crescermos, de melhorarmos. E assim ocorre com a humanidade desde que o mundo é mundo: de catástrofes em catástrofes, de obstáculos em obstáculos, a humanidade segue em frente, construindo a sua história e sua têmpera, evoluindo moral e materialmente, crescendo em todos os aspectos. Desnecessário dizer que muito mais vertiginoso é o crescimento horizontal, material, que o vertical, moral, e isto com certeza é, ou será, o fiel da balança.
Nesta linha de raciocínio, entendemos que por mais que a automação seja colocada na posição de pivô da crise do emprego (o problema), ela apenas faz parte do processo natural de evolução, e apresenta-se ao homem a oportunidade de criar alternativas, como, por exemplo, fomentar a prestação de serviços para acolher os postos de trabalho extintos, principalmente do processo produtivo, o que efetivamente já vem acontecendo. Ora, esta é uma solução que está funcionando e que, com certeza, não é a única, e o somatório de todas as alternativas dará os contornos da mudança de postura do homem do final do nosso século, frente ao redemoinho fantástico de culturas, conhecimentos e conquistas, dentro do qual turbilhonamos alucinadamente. Alvin Toffler nos dá uma idéia mais concreta quando diz que “O Futuro Chegou Hoje”:

“Se os últimos 50.000 anos de existência do homem fossem divididos em períodos de aproximadamente 62 anos cada um, terá havido aproximadamente 800 gerações. Dessas 800 gerações, 650 foram completamente passadas nas cavernas.
Apenas durante as últimas 70 gerações tem sido possível a comunicação efetiva de uma geração para outra, uma vez que a escrita possibilitou essa transposição. Apenas durante as últimas 6 gerações as massas humanas viram, pela primeira vez, a palavra impressa. Somente durante as últimas 4 gerações foi possível medir o tempo, com alguma precisão. Apenas nas 2 últimas pode alguém usar um motor elétrico. E a esmagadora maioria de todos os bens materiais que usamos cotidianamente, na nossa vida comum, desenvolveu-se dentro da presente geração, que é a de número 800.
Diante deste quadro, assombra-nos a idéia de que temos que mudar nossas atitudes, rever nosso enfoque da questão. Com certeza, em todas as grandes transformações da humanidade houve um estopim, um pivô, ou até um bode expiatório. E em todas elas o homem soube encontrar soluções. O diferencial do nosso século é a extraordinária rapidez com que as coisas acontecem, fazendo com que não nos demos conta do tanto que acontecem!

De todos os cientistas que já existiram no mundo, desde os princípios da civilização, apenas 7% viveram em gerações anteriores à nossa. Em outras palavras, 93% dos cientistas, desde que o mundo é mundo, vivem HOJE e estão produzindo HOJE novos conhecimentos científicos”.
Apesar de conhecer do homem a sua natureza irracional e a sua capacidade de destruição, acredito na sua imensa capacidade criativa, de adaptação, e de surpreender-se a si próprio. Ora, a máquina é criação do homem, e deve proporcionar, mais que riquezas a poucos, bem-estar e oportunidades a todos. Oportunidades de aprendizado, de novos conhecimentos, de lazer, de conquistas – individuais ou coletivas. Ela deve estar a nosso serviço – patrão e empregado. Deve prover, proteger, facilitar. Ao homem, cabe a tarefa de domesticá-la, impor limites à dependência cega de automatização, pois o progresso da humanidade não deve acontecer a qualquer preço. E aqui abordamos o desenvolvimento moral do homem, como peça chave, indispensável, à solução do caos do fim do século que passará, inevitavelmente, pelo refinamento das relações humanas, dos sentimentos e das atitudes – responsabilidade de cada um de nós. Se isto não acontece, não podemos responsabilizar a criação, e sim, o criador. Afinal, apesar da sua grandeza, o homem, e não a máquina, é o lobo do homem!