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26 novembro 2013

12. O Coronel e o Estranho Caso da Muda

O coronel Gumercindo Neto pigarreou, tirou o palheiro do canto da boca e deu uma última cuspida na poeira do chão batido do galpão, que respingou na bota do Vassourinha, antes de repetir, irritado:
— Já disse que não sei onde está a muda! – levantou-se do banquinho e deu dois passos até o portão que dá para a mangueira – Só porque ela estava aqui na estância não quer dizer que eu tenha que saber onde anda!
Cuspiu de novo e acertou o Traíra passando, que estaqueou do susto, depois olhou de canto, rosnando, e foi esfregar a cara na grama para limpar a baba grudenta.
— Mas não é possível que não saiba, Arrudão, você mora aqui! – o sabidinho que fala javanês andava de um lado pro outro tropicando nos buracos do chão do galpão.
— Claro que moro, ora essa! Mas já perguntou pros outros, por acaso? Eles não saem daqui, parecem uns carrapatos, só falta virem de muda!
— Eles viram a muda?
— Mas quem disse que eles viram a muda? Eu não disse que eles viram a muda, eu disse que só falta eles virem de muda! Mu-dan-ça... – soletrou rosnando – Trazer as tralhas, o cachorro, a sogra... Entendeu, sabidinho?
— É uma indireta? – perguntou o arrumadinho de olho azul, sentado com as pernas boleadas num banquinho do outro lado do galpão, batendo a brasa do palheiro com a unha do mindinho. Nem esperou a resposta do Arrudão:
— Por que se for, diga, que eu já tenho outro sítio pra ir, é dum parente meu lá no Campo Belo, ele disse que não precisa nem pedir, é só aparecer. Não tem nem portão prá abrir...
— Báh... Mas nem vou comentar, arrumadinho, era só o qu... áááái!! Mas o que é que deu neste bicho? Traíra dos infernos, o que é que deu em você, demonhento? – o Traíra fez um risco por baixo do portão, e sumiu, vingado pela cuspida no olho – Vocês viram isso? Viram isso? Me mordeu o garrão esse cusco imprestável!
— Não mude de assunto, Arrudão... E então, ninguém tem nada pra dizer?
— Uma muda? De quem é que vocês estão falando? – perguntou o esquentadinho da cidade.
— Eu até tinha... – assoprou o enrugadinho transcendental, afundado na rede, junto com a fumaça dum palheiro de carqueja brava – Mas tô meio sem vontade!
— Pois desembucha, enrugadinho, prá ver se esta criatura para de incomodar com essa história de sumiço!
— Então tá, então eu digo. Mas só porque o Arrudão pediu. Ó, a última vez que eu vi a muda ela tava encostada ali na cerca da mangueira, perto do portão. Daí, foi só o tempo d’eu virar, quando vi, não vi mais ela... puf!, tinha sumido. E ó, não quero fazer fofoca, mas eu acho que foi o sabidinho mesmo que carregou ela ali pros lado da lagoa. Pediram, né, falei!
— Claro que fui eu, sua anta, e deixei ela lá embaixo perto do pontilhão, e não tá mais lá! Um de vocês deu sumiço nela, só pode! O colafina, por exemplo, desde o primeiro dia foi contra eu trazer a mu...
— Mas quem é essa muda de que vocês estão falando? – insistiu o esquentadinho da cidade, atalhando o sabidinho.
— Quero deixar bem claro que estou chegando agora, não sei de nada, e nunca vi essa tal de muda, nem mais gorda nem mais magra – emendou o engatadinho tântrico, equilibrando-se num pé só e aloitando com um palheiro que mais parecia um charuto.
— Ser contra não significa que eu tenha sumido com ela, sabidinho! Afinal, que direito eu tenho? A vida é tua, você faz o que quiser com ela, e com a muda.

As circunstâncias pesavam contra o bostinha colafina. Desde que o sabidinho declarou suas intenções, ele questionou a sua utilidade, demonstrando que existem formas mais práticas de resolver suas necessidades, ainda mais que é coisa pro futuro, só para quando ele vier morar por aqui depois de aposentado. Mas o sabidinho, depois que encasqueta, quem convence?

— Ó, não é que eu queira semear a cizânia, mas o colafina foi várias vezes lá pros lados do pontilhão, sozinho, facãozão na cintura, e tal, sei lá, mas ó, aí tem coisa. Veja bem, não que eu tenha visto, não, isso não, só me disseram, de fonte fidedigna, entende? – emendou o enrugadinho.
— Fidedigna, né? – ironizou o bostinha colafina. – O doutorzinho cascagrossa também foi praqueles lados, então por que não perguntam pra ele?
— Eu já disse antes que o sabidinho fez bobagem, mas a vida é dele, ele é maior de idade e faz do jeito que quiser, então eu não me meto. Mas que fez bobagem, isso fez! – vaticinou o doutorzinho, com os braços cruzados e balançando a cabeça com o beiço esticado na direção do sabidinho.
— O sabidinho fez bobagem com uma muda? – perguntou o esquentadinho, já meio nervoso por ninguém responder suas perguntas.
— Fez bobagem coisa nenhuma! Fez bobagem coisa nenhuma! – pulou lá do canto o vassourinha pro meio do galpão abraçado num garrafão de água de privada – Tá certo o sabidinho! Daqui um tempo, quando ele precisar, a muda vai estar crescida, encorpada, roliça, daí é só usar, e ninguém vai ter nada com isso! Tá certo o sabidinho!
— Volta pro canto, ô sua fonte fidedigna! Pensa que não sei que é você que está enchendo a cabeça do sabidinho, dizendo que eu estou envolvido no caso dessa muda? Até o enrugadinho já pensa que fui eu que...
— Você está tendo um caso com uma muda, colafina? Minha nossa! Logo você, casado, todo certinho? Cara, só porque é muda não quer dizer que não seja filha de Deus, poxa vida, não esperava isso...
— Do que é que você está falando, esquentadinho? ‘Cê tá louco? – e o colafina virou pro sabidinho – Viu só o que você está fazendo, sabidinho? Viu? Tá contente? Essa bobagem já está virando um entrevero de facão no escuro!
— Mas eu é quem trouxe a muda, ninguém podia mexer com ela! Era minha, pro meu uso! – protestou o sabidinho no meio do galpão, abrindo os braços, exaltado.



— Óuuunnnnn... Óuuunnnnn... – o engatadinho tântrico levitava na posição de lótus, surgindo dentre a fumaceira sobre a rede onde o enrugadinho carquejava, enquanto entoava um mantra entre uma baforada e outra do palheirão – Vamos todos respirar profundamente. Inspirem... cóf! Acalmem os ânimos... Expirem... Pacifiquem a alma... Inspirem... cóf! Harmonizem o espírito... vamos lá, agora expir...
— Mas ela não pode ter sumido por conta própria? Não pode? – questionou o bostinha colafina, enquanto o engatadinho continuava falando prá ninguém. — Por que algum de nós tem que estar envolvido no sumiço dela? Você não acha que...
— Afinal, alguém, por-fa-vor, pode me dizer quem é essa muda? Como é o nome dela? Não tem família? Ninguém viu ela, um parente, vizinho, sei lá, alguém que possa informar onde ela se meteu?
— Como assim o nome dela, família, vizinho? Deixa de ser tanso, esquentadinho! – estrilou o sabidinho – Nós estamos falando de eucalipto. Eu-ca-lip-to! Árvore, entendeu?
— Eucalipto? Como assim, eucalipto? Esse bochincho todo por causa de uma... muda de eucalipto?
— Mas é claro! Você pensou que fosse o qu...
O banquinho acertou de prancha a testa do sabidinho, que caiu de comprido no chão do galpão, levantando poeira!

O esquentadinho não apareceu mais na estância do Arrudão desde que levou um corridão de lá, imediatamente após o acontecido. O sabidinho continua com a marca do nó da madeira na testa, e jura que não sabe o porquê, para sorte do esquentadinho.

Até hoje, o sumiço da muda continua um mistério.
Ilustração: Colafina

19 fevereiro 2012

11. O Coronel e as Certezas da Vida

(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto deu um pulo para trás tamanho o susto que levou. Não fosse a parede de tábuas do galpão teria se estatelado na mangueira. Engasgou com o baque.
— Que foi que você disse? – gaguejou, com o queixo tremelicando e as pernas frouxas.
Du bist zu dick, schmerzt mein Rücken, Rufen sie die roan!1 – repetiu, impaciente, a Cheirosa.
— Ai, minha Nossa Senhora do Bom Parto! Você está falando?!?! – o coronel estava com falta de ar.
Und wer noch?2 – bufou, olhando para os lados.
— Tetê! Tetê! Me acuda, mulher!
— Ela disse que você precisa emagrecer. Vai ter que encilhar o Rosilho. – disse o Traíra lá de dentro do galpão.
— Ah! É? E como é que você sabe, seu espertinho? Por acaso você fala esta língua esquisita?
O coronel nem se deu conta que estava falando com um cachorro.
— Esta língua esquisita é alemão, coronel. E sim, eu falo alemão.
— Ah! É? E posso saber onde foi que você aprendeu alemão?
— Na escola, coronel. Onde mais?
O coronel baqueou de vez, e desabou num banquinho com os olhos arregalados, arritmia e tremelique, balbuciando:
— Mas... mas... mas você também fala? Tetê! Tetê! Corra, mulher, acuda aqui! Ai, minha Santa Bárbara Manjerona, é o fim do mundo!
— É São Gerônimo...
— Uquêêê? – esganiçou o coronel, escorregando de lado no banquinho.
— São Gerônimo! Santa Bárbara e São Gerônimo! – corrigiu o Traíra.
O coronel desabou, e ficaram os dois com os pés pra cima. Ele e o banquinho.

Acordou com o Traíra e a Cheirosa decidindo quem ia chamar o primo Ptolomeu, vizinho do Arrudão e veterinário afamado.
— Eu tô bem, não precisa chamar veterinário... – levantou-se com as mãos nos quartos, gemendo – e vamos esclarecer direito essa história. Que raio de escola é essa? Onde é que fica?
A cor já estava voltando, e quase nem tremelicava.
— Ah! Fica logo ali, no caminho para a cachoeira, não tem como errar!
— Pois quero ver com meus próprios olhos. Traíra, traz o Rosilho aqui para eu encilhar!
— Olha, coronel, talvez não seja uma boa hora prá... 
— Não é boa hora prá que, cão?
— É que o Rosilho está na lagoa agora, e não gosta de ser incomodado... – disse o Traíra, se afastando de lado.
— Rosiiilho! – berrou o coronel — Mas credo, era só o que faltava agora, bicho ter hora prá ser montado! Rosilho! Vem já aqui, animal!
Calm down, scream is bad for your health, and to my ears!3 – já veio dizendo de longe o Rosilho.
— E agora, o que é isso? O que ele disse? – perguntou ao Traíra, como se o cão tivesse a obrigação de traduzir tudo o que os outros bichos diziam.
— É inglês, coronel, e ele disse que gritar não é legal.
— Inglês? Você sabe inglês também? Ai, meu Santo Onofre, vou ter um troço!
And then, my tasty filly! Are you fine?4 – o Rosilho fungou no pescoço da Cheirosa, que retribuiu o dengo rindo baixinho, maliciosa.
Ich bin besser, meine Hengst schamlose!5
— E agora? – perguntou, jogando o baixeiro no costado do Rosilho.
— Ãh... melhor não saber, coronel.

Descendo a trilha em direção ao mato, encontraram a Quilemeio subindo.
Via libera Im ascensus!6
— E aí, Traíra... vai esperar que eu pergunte?
— É latim, coronel. Quer que a gente saia da frente para ela poder subir.
— Latim? Mas... mas ela é uma vaca! Uma vaca, falando latim! – explodiu o coronel – Ah! Nãão! E você também fala latim?!?! E aprendeu na mesma escola! Ai, minha Santa Gertrudes, proteja as minhas coronárias!
Longum erit?7 – perguntou a Quilemeio, plantada no meio da trilha.
— Ela está com pressa, coronel.
— Pois ela que saia do caminho, ou dê a volta!
Primatus est ascendere!8
— Ela invocou uma lei de trânsito. E nem é estudante de direito...
O coronel Arrudão desistiu de discutir com a Quilemeio, afinal, era só uma vaca... Saiu da trilha para ela passar, e depois continuou a descida calado. Aquilo não podia estar acontecendo, vaca não fala latim, deve até ser pecado, já imaginou o que o padre vai dizer quando ele contar a história?
— Vou ser excomungado! – suspirou.
סגור9
O coronel se assustou, e retesou a rédea, fazendo o Rosilho escorregar as patas no barro da trilha estreita. Só olhou para o Traíra, que entendeu o recado.
— É hebraico, coronel. Ele é o porteiro, e disse que a escola está fechada!
— Porco, falando hebraico? Justo um porco? Não falta mais nada... ai, minha úlcera duodenal, valei-me meu São Policarpo! Que estrovenga é essa aí na frente? E cadê o morro que tinha aqui? O que é que...
אם אתה רוצה לדבר עם המנהל שוב בשבוע הבא. אחר הצהריים.10
Foi interrompido pelo porco com voz de locutor constipado.
— É para o senhor voltar na semana que vem para falar com o diretor. É que ele viaja muito, sabe como é...
— Não, Traíra, eu não sei como é... E quem disse que eu quero falar com o diretor? Nem sei quem é esse cara! Aliás... quem é esse cara?        
— Amigo seu, coronel, o sabidinho q...
— O sabidinho que fala javanês?!?! – atropelou o coronel. – Foi ele que fez isso aí? – e apontou com o queixo e o beiço esticado a muralha cinzenta de salpico grosso de três metros e meio de altura e ornada com uma espiral de arame farpado em toda a extensão, com um portão de ferro de duas folhas, fechadas à solda com chapa metálica antimíssil, com três dobradiças em cada lado e cinco trancas reforçadas, cada uma com um cadeado maior que o outro, encimado por uma câmera de segurança mirando o narigão do Arrudão, na frente de onde o porco se postava qual guarda da rainha britânica, com o queixo levantado e um molho de chaves imensas pendurado num cinto militar que quase cortava em dois seu barrigão pelado cor-de-rosa.
— “Isso aí”, coronel, é a escola.
— Mas como pode ser? Aqui tinha um morro, agora tá achatado feito um campo de futebol! E quem plantou aqueles eucaliptos lá fechando a trilha da cachoeira? Falando nisso... como é que eu vou para a cachoeira agora?
 הבמאי צריך לחכות שוב. בשבוע הבא. אחר הצהריים.11
— Tem que passar pela escola, coronel, é só pagar uma taxinha prá ir, outra prá voltar. Mas o porco só libera depois de falar com o diretor. Semana que vem.
O Arrudão entrou em parafuso, bufou e corcoveou, enquanto despejava impropérios dirigidos ao mundo inteiro, incluindo o porco, o Traíra e o sabidinho, e esbravejava espalhando perdigotos:
— Como assim pagar para usar a trilha da cachoeira? É a minha cachoeira!! Com que autorização o sabidinho acabou com o morro? É o meu morro!! Quem mandou ele erguer este muro horroroso? É o meu terreno!! O que que ele...
— O senhor vendeu o morro pro sabidinho, coronel. Não lembra mais? – interrompeu o Traíra, enquanto tentava desviar da baba do Arrudão.
— Como assim vendi o morro? Como assim vendi o morro? Não vendi o morro coisa nenhuma!! – estava quase em pé na sela – É bem capaz mesmo que eu vou vender o morro, seu... seu... mas nem que a vaca tussa em latim vou me desfazer de um palmo que seja das minhas terras!! Nunca, nunca, eu prefiro a morte, prefiro a mor...

— Marido, acorda! Acooorda!! Que gritaria é essa? – assustou-se a Tetê com os gritos e chutes do Arrudão, embolado no tapete – Quié que tá fazendo aí no chão, homem? Eu te avisei que torresmo na janta só pode dar em pesadelo! – ralhou enquanto se protegia com as mãos dos perdigotos que voavam em sua direção.
— O morro... a vaca... – o coronel suava de esguichar, sentado no chão piscando os olhos estralados no pretume do quarto enquanto gaguejava e babava com os beiços tremendo.  
— O quié que tem a vaca? – perguntou a Tetê.
— O morro... o morro tá achatado... eu vendi o morro pro sabidinho?? Me diga, vendi, vendi?? Ele achatou o morro... tem uma escola de bicho... o Traíra dá aula...  tem eucalipto na trilha... tem muro farpado... não passa nem formiga... tem que pagar prá ir na cachoeira... prá voltar também...  os bichos tudo falam que nem a gente... e a vaca... a vaca...
— O quié que tem a vaca, homem? – insistiu a Tetê.
— A vaca fala latim!
A dentadura acertou bem no meio da testa do Arrudão, que quase se afogou com a água do copo que a Tetê juntou da mesinha de cabeceira e jogou no seu rosto prá ver se ele acordava do pesadelo. 
—  Fale coisa com coisa, homem, não estou entendendo nada!

E o coronel Arrudão descreveu, no atropelo, ainda soluçando e tentando controlar a respiração depois da dentadurada, o sonho que teve com os bichos da estância.
— Vendi ou não vendi Tetê? Já não sei mais o que eu fiz, tô muito confuso, Tetê, me ajude... – implorou, com os olhos arregalados.
Então a Tetê puxou o coronel de volta para a cama e o aninhou em seu colo, como uma mãe a um filho carente.
— O seu primo Ptolomeu gosta muito das terras dele, não é mesmo?
— Quê? – soluçou.
— Seu primo. Tem um amor muito grande pela terra, não tem?
— Nossa... demais, Tetê. Ele nem me deixa ajeitar a estrada com máquina porque pode estragar o campo! Mas o que tem a ver o meu primo com...
— Você acha que algum dia ele plantaria pinnus nos campos onde as vacas dele engordam?
— Jamais, mulher, jamais. Ele morre antes que isso aconteça.
— Pois o seu amor pela sua terra é muito maior, marido! Eu sei, e todo mundo também sabe, que você não venderia sua terra a ninguém, um pedacinho que fosse por dinheiro nenhum no mundo.
— Um pedacinho que fosse... – repetiu o coronel, já ressonando.
— Então, marido, sossegue. Os campos do seu primo já estariam cobertos de pinnus antes que você sequer pensasse em vender um palmo desta terra que você ama tanto – e o coronel aninhou-se no colo da Tetê. – Sossegue, marido, sossegue, foi só um pesadelo.

A Tetê acordou assustada com a campainha estridente do telefone quase no seu ouvido, e derrubou o fone dentro do penico ainda vazio.
— Alô! – grunhiu.
— Quem? – rosnou.
— Não, é claro que eu não estou bem! Isso são horas prá assustar os outros? Você sabe que horas são? Você não dorme aí onde voc... – Aqui ainda é madrugada
O marido teve um pesadelo... e você estava nele!
— Quem é? – bocejou o Arrudão.
— É o sabidinho, lá de não sei onde – e passou o fone.
— Fala, sabidinho... Quê? Não, não apareceu ning... Trator de esteira? Vai fazer o que no morro? Hmmm... Vai ladrilhar até onde? Unhum... Não, não, tudo bem, agora é teu mesmo... Caçamba do quê? Ahh... Sei...
— Puis... Olha, sabidinho, não sei se a caçamba chega... Se bem que... Dá pra gente usar o trator de esteira pra arrumar o morro? Sabe como é, tão cortando os pinnus do Ptolomeu, e os caminhões acabaram com a estrada!

Glossário:

1- Você está muito gordo, minhas costas doem, chame o Rosilho!
2- Quem mais seria?
3- Acalme-se, gritar faz mal para a sua saúde, e para os meus ouvidos!
4- E aí, minha potranquinha gostosa! Você está bem?
5- Já estou melhor, meu garanhão safado!
6- Sai da frente, que eu estou subindo.
7- Vai demorar muito?
8- A preferência é de quem sobe!
9- Está fechada!
10- Se querem falar com o diretor, voltem semana que vem. Período da tarde.
11- Tem que esperar o diretor voltar. Semana que vem. Período da tarde.

14 setembro 2010

10. O Coronel e seu Cavalo Gancho, Aquele Mal Educado!

(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto mateava pensativo, lagarteando ao sol outonal de uma manhã de domingo, sentado no banquinho de madeira presente do seu compadre com as pernas cruzadas esticadas e as costas apoiadas na parede de tábuas do galpão. Olhava o vazio enquanto o brilho morno esquentava as pedras da calçada estreita e os pés sem meia sobre os chinelos de couro. Nem percebeu a Tetê chegar trazendo outro banquinho que ajeitou nas pedras irregulares, e sentar-se ao seu lado com um suspiro sonolento.
— Quié que tá tão quieto, marido? – perguntou enquanto enchia a cuia ainda na mão do coronel.
— O Gancho entende o que eu falo... – deixou a frase no ar, quase um sussurro, o olhar ainda longe.
— Ora, é claro que entende. É um cavalo velho, está aqui desde potrilho, tem que entender...
— Mas não assim, Tetê, essas coisas de todo dia, que os bichos aprendem pelo costume. Não estou dizendo isso. Estou dizendo que o Gancho entende as palavras, as frases, as coisas que a gente fala...
— iiih... A troco do quê isso agora?
— Eu nunca me dei conta disso. Mas ontem à noite, enquanto a gente proseava ali no galpão com o primo Ptolomeu, lembra? O Gancho tava ali fora perto do galpão. Continuamos proseando depois que você foi deitar, entre um palheiro e outro, até quase meia noite. Puis, quando me dei conta o Gancho estava com o pescoço todo prá dentro do galpão, por cima do portão, e acompanhava a conversa olhando prum lado e pro outro, acompanhando quem estava falando. Volta e meia balançava a cabeça pra cima e pra baixo concordando com o assunto, às vezes pros lados, decerto dizendo que não era bem assim, sei lá. Não comentei nada com o primo pra ele não pensar que eu estava variando. Te juro, Tuinha, ele até ria com os causos mais engraçados...
— Mas que bobagem, homem, é bem capaz mesmo um bicho entender as palavras! Rir de piada, então, era só o que faltava... É melhor mesmo não falar com mais ninguém sobre isso, vão querer te internar!
Levantou-se rindo.
— Vou dar milho para as galinhas. Se mexa, senão daqui a pouco o pessoal chega e não tem nada arrumado...
Aquele domingo prometia ser movimentado.

Ali pelas nove e meia chegaram o arrumadinho de olho azul, o esquentadinho da cidade e o doutorzinho casca grossa, todos trazendo suas respectivas famílias incluindo cachorros, genros e noras. O enrugadinho transcendental apareceu trazendo a namorada nova e, de carona, o engatadinho tântrico que há tempos andava desaparecido. Segundo seu relato, que durou seis horas sem parar, andou por lugares incertos e impróprios para menores atrás de novas experiências tântricas, místicas e esotéricas, e que numa dessas andanças encontrou um chazinho maneiro com cor de água suja que é ótimo para limpar o trato digestivo, desde a entrada até a saída. O único problema, disse ele, é que depois você não lembra muito bem como é que as coisas aconteceram. Fora isso, tudo bem.

O bostinha colafina chegou mais tarde pra parecer mais importante que os outros só porque tem a chave do portão. O sabidinho que fala javanês, vindo da Groelândia, não apareceu porque teve que ir atrás da bagagem dele que foi despachada pro Zimbábue, na conexão em Cochabamba. Um dia, quem sabe, ele consegue chegar à estância.

Depois do churrasco assado pelo Vassourinha embebido em água de privada – o Vassourinha, não o churrasco – e muita cerveja no ponto, o povo todo esparramou-se no gramado pra aproveitar o sol uns, e curar a ressaca outros. Bem perto, o Gancho pastava absorto a grama curta. A conversa corria solta e sem compromisso até que um daqueles genros arriscou:
— Seu coronel, podemos dar umas voltas a cavalo?
— Mas é claro. Vassourinha, encilha o Gancho pro vivente aqui...
O cavalo trocou orelhas pressentindo a roubada que se avizinhava.
— Me leva na garupa, amor? – suplicou dengosa a filha correspondente ao genro aquele.
O Gancho arregalou os olhos e parou de mastigar, mas com os beiços ainda roçando o capim ralo. O coronel percebeu a reação e fez um sinal com a cabeça para a Tetê, e ficaram os dois olhando atentos o animal.
— Também quero andar nele! – guinchou um guri gordinho.
Levantou a cabeça e uma das patas dianteiras deslizou devagar para trás. Nem respirava.
— Depois sou eu! – determinou um dos esparramados.
O bicho deu um passo atrás já olhando pro lado.
— Tô na vez! – alertou outro, coçando o barrigão.
A passo lento, meio disfarçado e olhando de revesgueio, o cavalo velho começou a se afastar, e o jeitão dele chamou a atenção dos amigos do Arrudão, que também ficaram cuidando do Gancho até chegar em frente ao portão.
— Prondié que ele tá indo, tio? – guinchou de novo o gurizote.
— Prá lugar nenhum, piá, não tá vendo que o portão está fechado?

Então, todos os olhos se voltaram para o cavalo parado em frente ao portão que estava fechado. Ele olhou devagar para trás como se pedisse “– Me deixem sair daqui!“. Como ninguém se mexeu, voltou novamente a cabeça, e sob a clara luz do sol daquele dia de céu limpo todos testemunharam boquiabertos o Gancho enfiar o focinho entre as duas tábuas mais de cima, abocanhar a travessa com os dentes, levantá-la até desencaixar da trava no palanque, deslizá-la para o lado liberando o portão, depois soltá-la e, com todo cuidado, tirar o focinho dentre as tábuas e dar uma olhada rápida para trás, como se desdenhasse “– Tudo bem, eu mesmo abro!“. Ainda de queixos caídos, viram o Gancho empurrar de leve o portão com a testa, passar para o lado de fora e começar a subir a passo em direção ao capão da Santinha. Lá em cima do morrote o Gancho parou, virou-se para o bando de pasmados, relinchou debochado, deu meia volta, empinou o rabo e o topete e saiu a galopito, rindo descaradamente da fila de trouxas que esperavam um cavalo para passear, como se dissesse “– Eu, hein? No meu lombo não, violão!”.

Há quem diga que nem o coronel acreditou no que o Gancho tinha acabado de fazer, mas a Tetê desconversa e não confirma! A verdade é que o coronel nunca tinha visto mesmo o Gancho fazer aquilo. Mas... ele era o coronel Arrudão!  Conversador incansável desde nascença e exímio contador de causos acontecidos e outros nem tanto, é claro que não ia deixar escapar uma chance dessas de reforçar a fama que o precedia em toda a região da Coxilha Rica e dos Campos da Vacaria. Aprumou o queixo caído e, se fazendo de nervoso, deu alguns passos na direção do cavalo que chispava faceiro campo afora, estaqueou e virou-se com as mãos na cintura apontando o narigão adunco para a Tetê:

— Tetê, precisamos ter uma conversa séria com o Gancho, aquele mal educado! Não é que ele deixou o portão aberto... de novo?

16 setembro 2009

9. O Coronel e o U.T.I. Futebol Clube

(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto desabou enviesado na cama já roncando, quase sete da manhã, sem nem ao menos tirar os sapatos. A Tetê os arrancou, jogou a ponta da colcha sobre o marido esparramado e foi cambaleando para o quarto de visitas. As janelas vibravam com o ronco do Arrudão. Estavam chegando de uma agitada noite de dança e muita bebida numa casa noturna conhecida por sua concorrida freqüência GLB&S. Ele jura, e a Tetê solidariamente confirma, que a primeira vez que foram não sabiam da peculiaridade da casa, só perceberam lá dentro, depois de muitas cervejas e alguns sustos! A segunda foi só para confirmar a coisa. Sobre as outras dezessete vezes, ele ajeita o galho de arruda na orelha, passa o palito mascado para o outro canto da boca e diz que foram porque a música é boa e o ambiente é familiar! Então desconversa e encerra o assunto. Nessa noite, o Arrudão sozinho deu conta da metade do estoque de cerveja do bar, e a outra metade a Tetê traçou com uma avidez e uma desenvoltura jamais vistas! Mulher de valor, a Tetê! Acompanha o marido, rente e firme! Não deu outra, tomaram um porraço os dois como nunca antes havia acontecido.
A Tetê pulou da cama, assustada, quando o telefone tocou. Atendeu meio dormindo, não era nem oito e meia, na linha o bostinha colafina perguntando se precisava pegar o Arrudão pro jogo.
— Que jogo? – resmungou. Desistiu de tentar abrir os olhos.
— O campeonato do asilo, ora. Lembra, o Arrudão confirmou com os festeiros lá do asilo uma partida beneficente...
— Não lembro...
— ...
— Que dia é hoje?... [um bocejo] – não lembro como chegamos em casa...
— Onde é que andavam? Vai dizer que lá no... lá no... de novo?
— É... – assoprou a Tetê num bocejo, se segurando prá não deitar no tapete.
— Ai, meu Deus!
— [Outro bocejo] Quê ‘ce disse?
— Que hoje o dia promete.
O bostinha colafina não soube se o que ouviu foi só um resmungo ou foi um palavrão, no meio de outro bocejo, antes da ligação ser cortada.

A Tetê era presidente da ARDIDAS, a Associação Rural da Derradeira Idade e Simpatizantes, entidade atuante em toda região da grande Cajuru que fora convidada, meio em cima da hora, para uma confraternização como parte do tradicional festejo anual para angariar fundos para o Asilo Olheicentino da cidade. Em razão da idade dos jogadores envolvidos, seria disputada uma única partida de futebol suíço, em quadra coberta. Como não encontrou nenhum associado em condições, e nem disposto a jogar, Tetê apelou para o Arrudão, que quase nunca a deixa na mão. E esqueceu o assunto.
O Arrudão então convocou o time, literalmente falando. Não adiantaram desculpas, compromissos assumidos, doenças e tratamentos, nada comoveu o coronel:
— Gente, vocês não podem dizer não, nós vamos representar a ARDIDAS. De duas uma, jogamos ou jogamos! Já assumi o compromisso, e o meu prestígio não pode ser abalado por uma bobagem dessas, por causa de um joguinho mixuruca com velhinho de asilo!
— Pois é, Arrudão, é o seu compromisso, é o seu prestígio, entã...
— Não interessa! – atropelou o coronel – Domingo todo mundo lá na quadra, sem falta! Peguem aqui o uniforme, mas olha, hein! É da ARDIDAS, depois tem que devolver. Lavado e passado!

Naquele momento o bostinha colafina teve a certeza de duas coisas. A primeira, que o Arrudão esquecera o compromisso, e a segunda, que a encrenca sobrara para ele. E depois dos festejos terminados, ao ser perguntado como conseguiu reunir o time em quadra, suspirou:
— Deixa prá lá... prefiro não comentar! Não vale a pena... [suspiro profundo] – Quero esquecer este dia...

O jogo estava marcado para as 10 horas, e o ginásio estava lotado. Parecia que a cidade inteira tinha marcado encontro lá. De um lado, os atletas do Asilo. O mais novo com oitenta e dois anos e meio, zagueiro, e o mais velho, o atacante, com quase noventa e quatro. De outro, os pacientes... quer dizer, os atletas do Arrudão representando a ARDIDAS.
O quadro era deprimente.
O arrumadinho de olho azul segurava um rolo de papel higiênico que ia desenrolando enquanto assoava o nariz e tossia catarrento, tremendo descontroladamente numa febre de 39,5°C, por causa da maior gripe que já batera no seu costado. Pendurada num dos cotovelos, uma sacola de supermercado lotada de remédios chacoalhava no ritmo do tremelique. Em pé, estaqueado ao seu lado e soçobrando sob o efeito inebriante da água de privada matinal, o Vassourinha resmungava que os joelhos estavam duros, imagine só, e as canelas doíam até para caminhar, e suspeitava que aquela garrafada pra ativar a circulação que comprou do pai Angola Abre & Tranca não estava funcionando, imagine só.

Sentado na ponta do banco comprido de madeira, o esquentadinho da cidade, com os cotovelos apoiados nos joelhos, segurava uma toalha de banho cor-de-rosa enfeitada com bichinhos coloridos, usada como lenço aparando a coriza que vertia feito bica d’água em beira de estrada do nariz já esfolado, conseqüência da mais violenta crise alérgica que jamais tivera. Nos raros intervalos entre os intermináveis acessos de espirro, pingava colírio nos olhos flamejantes e remelentos, tentando inutilmente mantê-los abertos. No mesmo banco, circunspecto e sentado a uma distância segura dos perdigotos que voavam da criatura esvaindo-se ao seu lado, o doutorzinho casca grossa amargurava sua desventura com os olhos parados mirando o nada. O sentido da sua existência, em suas próprias palavras, acabara na semana anterior quando um japonês abriu um consultório dentário, no outro lado da rua onde mantinha o seu consultório, quase porta com porta. E na mesma especialidade sua! Com tanto lugar para abrir um consultório, por que logo ali, na sua frente? Sentindo ameaçada sua exclusividade no bairro, desde então penava num estado tal de prostração que sua aparência era de alguém saindo de um beco escuro em noite de trovoada. Naquela manhã morna de um domingo de primavera envergava um sobretudo preto que ia até os joelhos, fechado até o pescoço, e um pesado óculos escuro disfarçava o olhar mortiço. Ou seja, veio jogar futebol vestido de agente funerário trazendo sua própria cumulus nimbus relampejante sobre sua cabeça!

Na outra ponta do banco, arfando no auge da pior crise asmática da sua vida e debatendo-se com o nariz enfiado na máscara de um nebulizador, olhos arregalados pelo pavor de não conseguir respirar, o enrugadinho transcendental parecia estar à beira de um colapso. No seu colo o nebulizador, ao seu lado um carrinho de fazer compras na feira, daqueles com duas rodinhas e desmontáveis, trazendo um tubo de oxigênio, uma dúzia de frascos de soro para abastecer o nebulizador e uma extensão com o fio ligando o nebulizador à tomada elétrica onde antes estava ligado o aparelho de som do ginásio. Enquanto os organizadores do evento tentavam em vão achar o defeito do microfone mudo, duas animadas, rebolantes e oitentonas velhinhas, vestidas com saiotes de animadoras da torcida do time do Asilo, usavam blocos de rifa para abaná-lo, rindo e salivando maliciosas – Hummmm... ele é uma graciiinha!

E o Arrudão... bem, o Arrudão estava sentado no chão da quadra, encostado na grade, cabeça para trás, suando frio e trocando de cor feito um camaleão. De transparente, passava a roxo, depois branco, transparente de novo... quando ficava verde, corria para o banheiro do vestiário com uma mão na boca e outra no barrigão, e revirava do avesso em espasmos estomacais e intestinais escutados e sentidos em todo o ginásio. Ressaca braba e desarranjo tão violento assim, nem daquela vez que bebeu água de privada do Vassourinha pensando que era água tônica com steinhaeger.

Depois de meia hora de atraso por conta da cagança do coronel, os organizadores deram um ultimato: ou a ARDIDAS entrava em campo, ou o Asilo seria considerado vitorioso por WO. O Arrudão, mesmo ainda tonto e fraco pela desidratação, troteou de onde estava e convocou o time para o jogo. Antes, para não comprometer a reputação, ou o que ainda restava dela, decidiram registrar-se na súmula com apelidos escolhidos na hora, unicamente para aquela partida. Nuve, 9, para o doutorzinho casca grossa. Ele mesmo soturnamente escolheu o apelido, dizendo que era pela sua conhecida habilidade no drible. Zé do Ronco, 8, por unanimidade, para o esquentadinho da cidade, por motivos óbvios. Socadinho, 14, a contragosto, para o Arrudão, pelo seu marcante porte atlético.
— Do que adianta esta porcaria de apelido, se todo mundo sabe quem sou eu?
— Porque se este jogo dá merda, o seu nome não fica registrado! – profetizou o bostinha colafina que apenas reduziu seu nome próprio para Colafina, 19. Justificou a decisão dizendo que sua incompetência futebolística era de conhecimento público, nada tinha a esconder, pois, mas prometeu fechar o gol.
O Vassourinha ouriçou os bigodes e não aceitou ser registrado como Palanquinho, 11.
— Bem, Vassourinha, pela sua vertiginosa e impressionante mobilidade em campo, pode ser também... ãh... Raízes! Que tal? Pode escolher...
O peão do coronel cofiou seu bigodão, e resmungou baixinho:
— Tá, tá, tá, que fique Palanquinho, então...
O arrumadinho de olho azul foi registrado como Coró, 6, pela incrível semelhança do bronzeado da sua pele com o subterrâneo bichinho. Da mesma forma que o esquentadinho da cidade, as suas condições de saúde não permitiram que discordasse. O enrugadinho transcendental foi registrado, também à sua revelia, como Carquejinha, 13, pela sua intimidade com chás, infusões e outras ervas. O sabidinho que fala javanês, o técnico, foi registrado como Tiúspe, the coach. Não apareceu porque atrasou a conexão do seu vôo em Timbuktu, e acabou embarcando para a Groenlândia atrás da bagagem extraviada.

O time da ARDIDAS, devidamente registrado, ficou assim: Colafina no gol; Nuve e Zé do Ronco no ataque; a dupla Palanquinho e Carquejinha na zaga; no meio de campo Coró e Socadinho, que acumulou a função de técnico. As instruções eram simples: O Colafina fecha o gol, o Palanquinho barra o avanço inimigo pelo meio e o Carquejinha anula o ataque pelas pontas. Os outros fazem o que puderem...

Em função do estado de saúde deplorável e da idade avançada dos jogadores, de um time e de outro, permitiram que o jogo começasse com os jogadores já em suas posições. O público estava impaciente com a demora da ARDIDAS, e então, para agilizar a entrada do time em campo, o Palanquinho foi carregado pelo juiz e pelo Colafina, o único são, e plantado na entrada da área. O Nuve colocou-se lá na área adversária, lúgubre, dizendo que era para passarem a bola que ele faria o resto, sem entrar em detalhes sobre o que isso significava. Zé do Ronco arrastou-se escorregando no rastro da coriza em direção ao lugubrento, que discretamente afastou-se uns passos para o lado. Coró foi conduzido tremelicando, pelo bandeirinha, até o outro lado do campo. O Carquejinha teve que largar do nebulizador, e entrou em campo apenas um passo além da linha lateral, por garantia. O Socadinho, tonto e transparente, bambeou até a linha central. O time do Asilo postou-se vagarosamente, mas sem ajuda.

O apito do juiz deu início ao jogo e... à tragédia!

O meio de campo do Asilo deu a saída rolando a bola vagarosamente para o atacante, um metro à frente, que aninhou a bola entre as pantufas e os pés de alumínio com ponteiras de borracha do andador que o sustentava, e iniciou a vertiginosa subida em direção ao gol adversário. O andador dez centímetros à frente, um toquinho na bola, um breve descanso, novamente o andador dez centímetros à frente... Arrudão, ou melhor, o Socadinho, como sói acontecer, tentou protestar, mas ao levantar o braço e dar um passo em direção ao juiz esverdeou, levou uma mão à boca e outra já nos fundilhos, e desembestou rumo ao banheiro deixando um rastro da caganeira fedorenta no gramado artificial! Gargalhada geral na torcida, o juiz, os mesários, os bandeirinhas, os gandulas, os adversários, as velhinhas de saiote e o time da ARDIDAS, todos caíram na gargalhada! Todos, menos o agente funerário e o atacante do Asilo, que era surdo e estava sem o aparelho de surdez. Alheio à balbúrdia, seguia impassível e concentrado rumo ao gol da ARDIDAS. O andador dez centímetros à frente, um toquinho na bola, um breve descanso, novamente o andador dez centímetros à frente...
— Ô, pessoal, atenção aí, olha o velhinho! – gritou lá da trave o Colafina, ainda rindo.
Por causa do riso recomeçou a crise de asma no Carquejinha, que precisou sentar e aplicar a máscara do nebulizador que as velhinhas assanhadas trouxeram até a beira da quadra. Também o Coró e o Zé do Ronco, em coro, recomeçaram a tossir e espirrar incontrolavelmente, enquanto o Nuve, de sobretudo preto e óculos escuros olhava a cena, cinzento e inerte.
— Gente, olha o velhinho! Ele tá vindo pro gol! – gritou de novo o Colafina.
O atacante do Asilo continuava sua fulminante subida, já um pouco ofegante.
Palanquinho, faça alguma coisa!
— ‘Xá comigo! – tranqüilizou o Vassourinha.
O atacante desviou alguns centímetros do Palanquinho, que plantado estava e plantado ficou, passou roçando ao seu lado e mirou novamente o gol da ARDIDAS.
Palanquinho, você não fez nada! – bronqueou o Colafina.
— ‘Ce queria que eu fizesse o quê? Como é que eu ia tirar a bola de dentro do cercadinho? Queria que desse um tranco no véinho? Ou um tóche nas zoreia? – estrilou o Palanquinho, indignado.

O velhinho entrou perigosamente na área, o andador dez centímetros à frente, um toquinho na bola, um breve descanso, novamente o andador dez centímetros à frente, olha o velhinho, gente, olha o velhinho, do meio da área olhou ameaçadoramente para o goleiro, ele vai chutar, gente, façam alguma coisa, levantou o andador, preparou o chute e... desequilibrou, geeeeente, o velhinho vai cair, foi caindo em câmera lenta tentando se apoiar no andador, que tocou na bola, que rolou em direção ao gol. O Colafina chegou a titubear por um momento, mas como era o goleiro e prometeu fechar o gol, fez a única coisa que esperavam dele naquele momento: correu prá segurar o velhinho!

O tempo parou no ginásio. A torcida se calou, olhos fixos no velhinho... no Colafina... na bola... Tudo em câmera lenta. Ninguém respirava. Ninguém tossia. Ninguém espirrava. Ninguém sufocava. Só o Arrudão estrebuchava no banheiro. O Colafina aparou o velhinho antes que estatelasse no gramado. Há quem jure, e um ginásio lotado confirma, que naquele momento o velhinho tinha um olho fechado esperando o baque e o outro meio aberto cuidando da bola, que continuou rolando devagarzinho, tocou de leve na trave esquerda, e parou, caprichosa e bamboleante, no fundo da rede do gol da ARDIDAS!

O ginásio veio abaixo, e o mundo desabou sobre o Colafina!

A festa da torcida virou carnaval. Em meio à gritaria, assovios e batucada, o Zé do Ronco, o Coró e o Carquejinha, quase morrendo e gesticulando obscenidades ao Colafina, eram recolhidos de maca pelos paramédicos do SAMU, que foram chamados por alguém na arquibancada incomodado com aquela fedentina nauseabunda que empestava o ginásio e o bairro. O Socadinho, murcho e assustado, foi retirado carregado do banheiro com os olhos arregalados e enrolado em papel higiênico. Enquanto isso, um vulto sombrio esgueirava-se furtivamente porta afora debaixo dum aguaceiro que desabava de uma nuvenzinha negra e trovejante. Em quadra, o Palanquinho, que se estatelou tentando acertar um tabefe nos beiços do goleiro, era arrastado com as pernas petrificadas em direção aos paramédicos enquanto aos berros desancava aquele estrupício que prometeu fechar o gol. Sob o peso de toda a desgraça do universo, o Colafina, qual a estátua da Pietá, amparava em seus braços um velhinho com a maior cara de safado exibindo de orelha a orelha um sorriso triunfante... e desdentado!

Este fato sucedeu-se faz alguns anos, mas a vitória do Asilo Olheicentino sobre a ARDIDAS até hoje é motivo de chacota na cidade e em todo o Cajuru, a Coxilha Rica e os campos da Vacaria. Lembrada e recontada incontáveis vezes sem trégua nem piedade, mantém aberta e sangrando uma ferida mortal no prestígio do coronel Arrudão, prestígio aliás que há tempos não anda lá essas coisas! Quanto ao bostinha colafina, desde o acontecido afortunadamente já se livrou de três tocaias e uns oito linchamentos, perpetrados de caso pensado pelos outros jogadores da ARDIDAS naquele dia fatídico, que são unânimes ao justificar suas nefastas atitudes:
— O Colafina, como goleiro, já foi um bom amigo!

18 outubro 2008

8. O Coronel e o Sumiço do Vassourinha

(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto virou à esquerda logo depois da ponte e parou a camionete em frente ao portão de arame farpado que fecha a estrada que leva à estância. A noite estava quente e escura, nublada, sem lua. Ficou ruminando as idéias, olhos perdidos lá adiante onde a luz dos faróis iluminava o capim alto e o seu cão correndo, as orelhas compridas subindo e descendo parecendo as asas de um pato tentando levantar vôo, e sumindo na curva do caminho estreito. Era sempre assim. O Traíra fazia todo o percurso da ponte até a estância correndo e latindo, e fuçando em todos os buracos e macegas, e mergulhando nas sangas e poças d’água. Chegava primeiro e recebia o coronel latindo e rosnando como a um estranho. – Cachorro esquisito... – pensou. Estranhou a demora do Vassourinha para abrir o portão, o terceiro até ali. Até a estância, mais três. Pôs a cabeça para fora:
— Vassourinha! Tá dormindo, diabo?
Olhou a carroceria pelo vidro traseiro da cabina, mas estava muito escuro e não viu ninguém. Chamou de novo pela janela, e nada.
— Vou te acordar no tabefe, seu traste! – falou alto, enquanto desembarcava e procurava pelo Vassourinha no assoalho da caçamba, mas só achou um garrafão com um pingo de água de privada e os sacos de sal e de ração que trazia para o gado.
— Mas cadê ele? – resmungou, olhando em volta.
— Vassourinha! Ô, Vassourinha! – começou a chamar enquanto procurava em volta da camionete, na estrada, e nos matos da beira da estrada.
— Deve estar mijando... E se caiu no rio, aquela anta?
Foi até a ponte, e cuidou prá ver se escutava algum barulho diferente na água. Nada. Começou a ficar preocupado. Voltou à camionete e manobrou devagar na estrada até dar uma volta completa, procurando o peão com cuidado até onde a luz alcançava. Embicou novamente em frente ao portão, baixou os faróis, e tentou se concentrar no que fazer. O Vassourinha simplesmente havia sumido! Ele agora estava, realmente, muito preocupado.
Não era sem razão. Vassourinha era viciado em água de privada já de longa data. No terceiro copo desembestava a pregar a palavra de Deus empoleirado num cupinzeiro – que insistia em dizer que era dele – dirigindo-se a uma multidão de pecadores que só existia em seu delírio! De acordo com uma bruxa velha, benzedeira, a quem o coronel recorre de vez em quando, “... puis, se a cachaça empedra os figo e endurece os joeio, água de privada cozinha os miolo e desinvereda as idéia! ”.
Há uns três anos Vassourinha passou uma semana internado no hospital, abaixo de sedativos, por problemas causados pelo seu vício. Naquele período, o coronel e alguns dos seus amigos se revezaram cuidando do seu peão durante as seis noites do internamento para poupar os seus pais, que o atendiam durante o dia. Todo o tempo, alheio ao mundo real, Vassourinha viveu uma vida só sua, rica em detalhes, com muita imaginação e aventuras. Teve de tudo. Desde dormir sentado, com um olho fechado e o outro arregalado, o que deixou o doutorzinho casca grossa de cabelo em pé, e pedir pro arrumadinho de olho azul sair da frente para ele poder espremer os bernes da Quilemeio, sua vaca de estimação, até achar que seu pé direito debaixo do cobertor era o celular que havia perdido, encostá-lo na orelha e ligar para o advogado para falar da sua questã na junta. Divertiu-se com o alvoroço do bando de macacos pendurados nas árvores que cresciam dentro do quarto, e rasqueteou o rosilho montado pelo bostinha cola fina, que foi visitá-lo entrando a galope pela parede à direita da cama. Sob os cuidados do enrugadinho transcendental, abriu valetas nos corredores e cercou o paciente da cama ao lado da sua com palanques de eucalipto besuntados com óleo queimado ‘... prá proteger da umidade, do jeito que o coronel gosta’.
Mas o que ele mais fez foi discutir com alienígenas, funcionários públicos do planeta Seh Plan, o oitavo do sistema Preh Feyt Hurah, na constelação Lah Gehns. O peão argumentava aos burocratas, categórico, que não embarcaria na nave estacionada flutuando ao lado da janela do quarto, porque a papelada estava somente em quatro vias, deviam ser cinco, e faltava o carimbo do chefe, ‘... sem carimbo não embarco’. Enquanto isso, na beira da porta da nave, um alienígena com olhos puxadinhos e cara de dono de lavanderia enchia copos enormes com água de privada fresquinha e oferecia ao Vassourinha, que salivava e choramingava ‘... mas eu não posso, entendam, tá faltando o carimbo...’. Esta discussão era tão freqüente e com tantos detalhes, que o coronel acabou ficando em dúvida se era só delírio mesmo. Depois que saiu do hospital, o Vassourinha melhorou bastante fisicamente, mas a cabeça deu uma baqueada. Volta e meia, durante a pregação divina lá no cupinzeiro, os alienígenas reaparecem e o peão titubeia, gagueja, e já não discute com tanta firmeza como dantes. Algumas vezes até diz: ‘Então quero ver seu chefe!’.
Um arrepio sacudiu o coronel, que começou a tremer incontrolavelmente e, todo atabalhoado, saiu da camionete testavilhando em círculos, ligando várias vezes para a estância até achar um lugar onde o celular desse sinal:
— Tetê de Deus! – gritou, quase aos prantos – O Vassourinha foi abduzido!

— Ora, homem, você não acredita realmente nessa bobagem, não é?
Tetê está em pé, na cozinha, e à sua frente, sentado à mesa e afundado nos cotovelos, está o coronel, que mal consegue segurar uma xícara com chá de camomila que ela preparou prá acalmar o homem.
— Era só o que faltava, essa história de disco voador e ET carregando o Vassourinha! E justo o Vassourinha, com tanta gente importante dando sopa por aí? Vai ver, ele pulou da camionete no meio do caminho e você nem viu!
— Mas de que jeito, mulher, se ele abriu o portão que tem antes da ponte? E eu vi ele voltar para a carroceria, eu juro que vi...
E não adiantou Tetê argumentar. Depois de umas horas desistiu e foi se deitar. O coronel naquela noite não dormiu, e até quase amanhecer andou dum lado pro outro na casa feito alma penada, arrastando as suas correntes, lamentando os seus erros e se arrependendo das suas culpas. Ah!, se pudesse voltar atrás e tratar melhor o seu peão, talvez ele não tivesse ido embora com aqueles ET’s... Tetê também não dormiu. Nunca tinha visto seu marido daquele jeito, aquele ataque de remorsos, o vai-e-vem pela casa, os resmungos, as lamúrias, os suspiros e os choramingos do coronel deixaram-na preocupada. Não com a saúde do coronel, claro que não, pois ele era socadinho mas tinha saúde, era outra coisa que a incomodava. Todo aquele desatino só por causa do Vassourinha não era normal, devia haver alguma coisa mais que ela deveria saber, e ainda não sabia. A história estava muito mal contada, e naquele momento uma pulga aninhou-se em seus cabelos, atrás da orelha, trazendo consigo uma maçaroca de minhocas que se espalharam pela sua cabeça, acabando com seu sossego.
Já era dia quando o latido do Traíra e um relincho pros lados da porteira interromperam os seus pesadelos. Os dois haviam apenas cochilado depois de uma madrugada inquieta, já quase amanhecendo o dia, a Tetê embolada nas cobertas reviradas e o coronel sentado ao lado do fogão, babando emborcado na chapa fria. Pôs-se de pé num sobressalto, sem saber direito onde estava, e num pulo alcançou a varanda. Parecia que não dormia há semanas. De longe, o cavaleiro acenou e o cumprimentou:
— ‘Dia, coronel.
O peão do seu primo trazia na garupa uma figura que o coronel reconheceu na hora.
— Vassourinha! Vassourinha, você voltou! – gritou e desembestou desatinado em direção aos homens montados na égua Cheirosa, que subia a passo o caminho que levava à casa. Ainda correndo, metralhou:
— Como foi que conseguiu escapar? Eles te machucaram? O que foi que eles te fizeram, homem? Como eles são? O que eles queriam? Tiraram alguma coisa de você? Um rim, um pedaço do teu fígado empedrado para estudo, uma mecha dos cabelos? Cadê a nave? De onde eles vieram? Fala, homem, não agüento a curiosidade, como foi que tudo aconteceu?
O cavaleiro segurou a Cheirosa e gaguejou, assustado com a correria do coronel:
— Ih!, seu coronel, não tô entendendo o que o senhor tá falando... encontrei o Vassourinha dormindo no fundo daquele valão perto da ponte, a par do portão de arame farpado. Tô indo em direção da ponte quando ouvi um ronco, até a égua assustou, achei que era leão baio... E olha, seu coronel, tava assim de urubu no pinheiro que tem ali do lado. Deu trabalho tirar ele lá de dentro, tive que puxar com a Cheirosa! Ele me disse que caiu no valo ontem à noite, quando desceu da camionete prá abrir o portão, seu coronel. Pelo jeito nem deu tempo de gemer, já caiu dormindo...
O manotaço do coronel no bico da bota quase arrancou a perna do Vassourinha, que dormia encostado no peão, e assustou o animal.
— Seu estrupício! – trovejou o coronel – Eu aqui na maior aflição desde ontem, não preguei o olho a noite toda, de preocupado, e você vem me dizer que passou a noite roncando no valo? Seu traste! – outro manotaço quase derrubou o Vassourinha do lombo da égua – E a história dos alienígenas, o que é que você me diz? Hein? Hein? A nave na janela, a papelada sem carimbo? Vai, seu bosta, desembucha! Seu incompetente, nem prá ser abduzido serve! Vamos, homem, desembucha!
O Vassourinha, do alto da montaria, olhos vermelhos piscando em câmera lenta, resmungou:
— Mas, coronel, do que é que o senhor tá faland... uuuggooóóóÓÓÓ!!! – e despejou numa golfada, do narigão adunco às botas do Arrudão, o garrafão inteirinho de água de privada que havia bebido na noite anterior na carroceria da camionete, empestando o coronel com o mais grudento, pestilento e tenebroso fedor de latrina jamais sentido naquelas bandas do Cajuru!
Bem feito! Não mandou desembuchar? Pois, então!
Quanto ao valo, até hoje é conhecido por todos na região como “o valo do Vassourinha”, batizado numa solenidade de descerramento de placa organizada pelos amigos do Arrudão, com direito a gaiteiro, lambisco e tudo mais, devidamente registrada em fotografia.
Apesar da insistência, o coronel não compareceu ao evento!

28 abril 2008

7. O Coronel e o Picolé de Dentadura

(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto acordou tarde naquele domingo de inverno. Como era o dia da folga anual do Vassourinha, não foi acordado pelo burburinho da lida que todos os dias começava cedo, com o trato dos animais e o mugir dos bezerros durante a ordenha das vacas no galpão, com o alvoroço das galinhas acordando e disputando o milho jogado no terreiro, e com os latidos do Traíra que desviava dos coices do rosilho, que bufava pedindo a ração e implorando “...alguém prenda este sarna!”— Tetê de Deus! Acorda, mulher! Estamos atrasados! Vamos, Tuinha, acorda, abra os olhos! Temos que correr, não podemos ser os últimos a chegar...
O coronel se referia à festa de posse da nova diretoria da Associação dos Criadores de Animais de Corte e Leite de Grande e Médio Porte e Produtores Agrícolas e de Derivados Animais da Macro Região do Cajuru e da Grande Bacia do Rio Guará e Seus Afluentes, ou simplesmente a ACACLGMPPADAMRCGBRGSA, que previa, após o churrasco oferecido pelo novo presidente, um inédito concurso de mentiras! Segundo o idealizador do concurso, o diretor do departamento cultural da ACACLGMPPADAMRCGBRGSA, “— Vale qualquer mentira, grande ou pequena, pode ser estória de pescador, de fazendeiro, de administrador, até de diretor teatral, não importa, o objetivo é tornar público e premiar as estórias fantasiosas que, via de regra, são contadas apenas no aconchego dos galpões!”Puis, não por acaso, o coronel era candidato ao primeiro prêmio! Não que ele fosse mentiroso, ca-paz, claro que não! Mas era um contador de causo de mão cheia... quer dizer, de boca cheia! Ele conseguia juntar a sua característica habilidade de jundiá ensaboado com a tagarelice de um papagaio hiperativo disfarçado de alto-falante! E na opinião dele, sua estória era muito boa. Era um causo antigo, que de tanto ele contar já pensava até que fosse verdade. Confiante na vitória, passou as últimas semanas retocando os detalhes e decorando, na frente do espelho, até os gestos que faria na apresentação.
Foram os últimos a chegar, e quase perderam o churrasco. Como o coronel era muito conhecido em toda a região, sua fama o precedia, e a sua estória era de longe a mais esperada. Não pode enturmar-se nem beber com os mais faladores, por isso não houve quem não notasse a cara emburrada do coronel por ter chegado atrasado. Foi o último a se apresentar, pois os organizadores queriam que sua mentira servisse como apoteose do evento, um gran finale! Pigarreou, e após um breve momento de suspense, no qual ninguém sequer respirava, começou seu relato:
— Este fato sucedeu-se há muitos anos, mas é como se tivesse acontecido ontem. Tudo está muito vivo em minha memória. Sei que não será necessário provar o que contarei a seguir, mas antes que algum dos senhores sequer pense em duvidar de minhas palavras, digo que não estava sozinho na ocasião, e para garantir a veracidade, trouxe comigo e está presente entre nós o Sr. arrumadinho de olho azul que, juntamente com seus filhos pequenos e com um sobrinho meu, foi co-protagonista do episódio. É pessoa da maior integridade, e estará à disposição dos senhores para confirmar, tintin por tintin tudo o que se sucedeu. Seu arrumadinho, por favor, levante-se para que todos o vejam!
Sim, senhor, era o arrumadinho! De novo, envolvido em outra aventura do coronel! Foi ovacionado pela multidão, e sentou-se rapidamente, constrangido. O coronel continuou:
Era uma noite quente de um sábado, no verão de 93, e estávamos cansados pelo trabalho pesado de reconstruir o galpão da minha estância durante o dia todo, sem descanso. Ali pelas nove fui deitar, meu sobrinho e os dois filhos do arrumadinho já dormiam noutro quarto, e o arrumadinho resolveu dormir numa rede, pendurada no galpão inacabado entre as pilhas de tábuas. Passava um pouco das duas quando acordei de sobressalto com o estouro de um tiro! Pulei da cama num pé, e no outro já estava no galpão, com o lampião numa mão e a minha 22 de repetição na outra, engatilhada e destravada! A rede estava vazia e balançando, e já imaginei o pior. Procurei pelo galpão e encontrei o arrumadinho agachado atrás de uma pilha de caibros de eucalipto, apontando o dedo e gaguejando:
— Veio dali o tiro, Arrudão, veio dali o tiro...
— Te acalma, homem! Dou uns tiros de espingarda, só pra assustar, e quem atirou vai-se embora.
E foi o que fiz. Saí uns dois passos do galpão, mirei pro alto, pois afinal sou homem cuidadoso e não vou querer ferir ninguém, não é mesmo? Dei três tiros, apurei o ouvido e nada.
— Viu só? Eu não disse? Nessa hora a gente tem que manter a calma, ser sensato, usar a cabeça... nada de desespero!
Dei um passo de volta em direção ao galpão, e um barulho ensurdecedor, daqueles de fazer pular as telhas das ripas, ribombou nas nossas orelhas! Pois eram armas atirando contra nós! Muitas armas, muitas armas, olha, pelas minhas contas no mínimo umas duzentas e cinqüenta! Era tiro e bala pra todo lado, passavam assobiando e explodiam nas tábuas do galpão e... as tábuas!... as tábuas do galpão!!
— Ah! não, ah! não, as tábuas, não!! Um homem pode suportar muita coisa, mas furar de bala as tábuas quase novas, recém pregadas e ainda nem pintadas, aí já é demais!
De pronto me agachei, virei pro lado que vinham as balas e esvaziei o carregador. Saíram as dez balas, pá, pá, pá, e corri pro galpão já chamando o arrumadinho:
— Pega os guris e leva pro Fusca, vou pegar a caixa de balas e te encontro lá...
— Mas Arrudão, as crianças? No Fusca? É mais seguro ficar dentro de casa, onde elas estão!
— Não discuta, preciso de vocês prá encher os carregadores enquanto encho de chumbo essa ladroagem...
— Ladroagem? E desde quando ladrões atiram deste jeito?
— Só pode ser! Vai ver eles querem me tomar a estância, faz tempo que tenho pesadelos com isso... mas eles não sabem com quem se meteram!


Nestas alturas, a platéia já estava inquieta. O dia estava muito frio, a estória estava muito comprida, o coronel dava muitos detalhes, e ainda por cima representava o que estava contando. No seu entusiasmo, não percebeu a impaciência dos ouvintes, e continuou a narrativa:
Fui voando prá dentro da casa, e num instante saí com a caixa de balas e o meu sobrinho num braço, e os dois piás do arrumadinho no outro, em direção ao Fusca. Joguei tudo no banco de trás, e quando o arrumadinho entrou, determinei:
— O piá atrás de mim pega o carregador, o do meio e o da outra ponta carregam as balas, o arrumadinho substitui o carregador na espingarda e passa ela engatilhada prá mim, enquanto eu dirijo e encho de chumbo esses bandidos...
Nem dei tempo pro arrumadinho discutir, acendi os faróis, arranquei patinando, e desembestei arrancando capim em volta da sede, e antes de terminar a primeira volta já tinha esvaziado três carregadores. Era igual linha de produção, carregador vazio prá trás, a espingarda pro arrumadinho municiar, logo recebia ela de volta e com o braço esquerdo prá fora do carro metralhava acompanhando a luz dos faróis em direção aos matos e morros em volta da sede. Ali pela décima sétima volta comecei a ficar preocupado, porque só tinha mais umas três mil balas na caixa, mas não me abati. Manobrei e comecei a dar as voltas em sentido contrário. Isto deve ter confundido os bandidos, porque na quadragésima volta eles pararam de atirar!
Parei o Fusca, mas deixei o motor ligado e os faróis acesos, afinal, sou um homem prevenido e cuidadoso. O cano da espingarda estava em brasa, e demorou um tempo prá gente conseguir enxergar a casa e o galpão por causa da fumaceira do tiroteio. Nenhum pio, nem fora, nem dentro do Fusca. No banco de trás, os piás estavam com os olhos arregalados, e continuaram assim por mais de uma semana. Quando amanheceu, desliguei o motor, apaguei os faróis, e saímos para ver o estrago. O galpão virou uma peneira, dava prá ver do outro lado pelos furos de bala nas tábuas. Os matos em volta da sede estavam desgalhados, e onde tinha galho, não tinha folha. Por quinze dias, nem passarinho apareceu nas redondezas. Os bandidos? Nunca mais vi, nem ouvi. E foi tanto tiro que até hoje, em cada galinha que preparamos pro almoço, ainda encontramos cartuchos de 22 na moela!

Disse a frase final com o braço levantado, dedo em riste, com a voz firme para dar efeito, e esperando a reação do público, que não aconteceu. Só depois que o diretor do departamento cultural da ACACLGMPPADAMRCGBRGSA pegou o microfone e pediu “...uma salva de palmas para o coronel, gente!” é que o público percebeu que a estória tinha acabado, alguns até esboçaram um arremedo de risada, e pipocou uma e outra palma. Constrangido, o coronel tentou sair de mansinho, mas solicitaram a presença de todos os “mentirosos” no palco para a escolha da mentira vencedora. O público decidiu na base das palmas e ovação, e a mentira do coronel não deu nem pro cheiro. Foi uma situação constrangedora, pois o coronel tinha chegado como favorito, e estava saindo acabrunhado pelo vexame de não merecer nem as palmas do público.
Depois da entrega do prêmio ao vencedor, uma terneira de ano, o diretor do departamento cultural da ACACLGMPPADAMRCGBRGSA deixou o microfone à disposição dos mentirosos que quisessem dirigir algumas palavras de agradecimento ao público e à nova diretoria. O coronel se sentiu na obrigação de se justificar, pois afinal de contas ele tinha um nome a zelar, e para ele, nome e prestígio não se deve descuidar!
— Quero agradecer a oportunidade, e dizer que, infelizmente, não estava no meu melhor dia. Acordamos muito tarde, e tivemos que sair apressados. O pior é que quando fui pegar minha dentadura, que eu deixo de noite ao lado da cama num copo com água e uma colher, a água estava congelada! Como estávamos atrasados não deu tempo de acender o fogão prá esquentar a água pro café, então tive que descongelar a dentadura chupando o gelo, feito um picolé, da estância até aqui!
Fez-se um silêncio gelado depois destas palavras do coronel, que devolveu o microfone e foi indo devagar, meio de lado, para fora do palco. De repente, o público explodiu em gargalhadas, ovacionou e bateu palmas por cinco minutos sem parar, gritando em uníssono “—Já ganhou! Já ganhou!”. O coronel foi carregado pela multidão, que exigia o primeiro prêmio para ele. Para não causar problemas com o vencedor já eleito, a diretoria resolveu instituir ali, na hora, um prêmio hors-concours, e deu ao coronel, ao som da multidão em delírio, duas terneiras de ano – nas palavras do novo presidente – “... pela maior mentira jamais ouvida na região do Cajurú”.

Pois é. E o coronel então voltou para casa com duas terneiras de ano, o nome e o prestígio intactos, e a fama de ser um contador de estórias como nenhum outro apareceu por aquelas redondezas! Competência é competência, e não se discute!