06 outubro 2007

1. O Pesadelo do Coronel

(Esta é uma obra de pseudoficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto apeou devagar do rosilho. Escorregou de leve o corpo pela sela e demorou a tirar a bota do estribo. Ao livrar-se do peso, o animal sacudiu a cabeça e a crina curta. O coronel – conhecido por Arrudão pelo hábito de carregar preso à orelha esquerda um galho de arruda imenso parecendo uma vassoura – correu os olhos em volta, cuidando detalhes, contando as folhas. O nariz adunco fazia sua expressão parecer mais sombria. Ele sabia que procurava o que não existia. Nunca cogitou doar nem arrendar, que dirá repartir, mas a visão de taipas, cercas e valetas dividindo as suas terras, que o assombrara durante toda a noite e tirara seu sono, estava mais viva em sua mente do que a trilha do mato e a ponte à sua frente. O sol baixo da manhã ainda não amornara o frio da madrugada, e o capim molhado e as gotas de orvalho nas teias dos arbustos, e os pássaros acordando e o cavalo imóvel pareciam entender seu desatino e se calavam solidários. Girou o corpo vagarosamente, agora contando os galhos e os troncos e as pedras para se certificar que não existia nenhuma divisão, nenhuma estaca de demarcação, nenhum buraco aberto esperando palanque.
O pesadelo era recorrente. Algumas vezes, varava a noite aloitando com cercas e taipas que surgiam do nada e se estendiam em todas as direções e ao mesmo tempo, como cobras sibilantes, loteando matos e coxilhas e apartando o gado, enquanto uma malta de engomadinhos fantasiados com botas sanfonadas, bombachas enfeitadas, chapéus e lenços no pescoço salivavam gulosamente e esfregavam as mãos enquanto repartiam os lotes, noutras vezes mãos imensas com garras afiadas no lugar dos dedos rasgavam os campos e vazavam os rios e sangas e arrancavam árvores inteiras pela raiz, comandadas por uma súcia de geófagos famintos que riam desbragadamente enquanto invernadas inteiras e pinheirais desapareciam, deixando em seu lugar buracos enormes que ele não via o fundo; em outras, tesouras cortavam campos e morros como pano verde ordinário, retalhando suas terras em incontáveis pedaços disformes pintados de todas as cores que eram montados sem qualquer rigor como um gigantesco quebra-cabeça absurdo, formando um mapa surreal com matos dentro de mangueiras que surgiam dentro de rios que subiam morros que se equilibravam em pinheirais que cobriam estradas que demarcavam divisas que escrituravam a posse entre os seres desprezíveis daquela caterva de dissimulados que riam entre dentes enquanto pilhavam. ‘O jeito, as armas e as aparências mudam' – ruminou o coronel, 'mas não mudam os algozes que se dizem amigos, e isso não admito e não muda o objetivo que é tomar o que me custa, e isso me apavora. ’ Este pensamento pareceu acordá-lo do pesadelo. Crispou os dedos e os músculos do rosto, apertou os dentes, puxou o chapéu para perto dos olhos, e ímpetos ruins fizeram estremecer seu corpo. De cabeça baixa, mão esquerda na cintura larga, o braço direito apoiado na sela, fitou suas botas por alguns segundos sem, no entanto, vê-las e depois, como que arrependido pelos maus pensamentos, ergueu a cabeça e, de olhos fechados, encheu os pulmões com o ar frio e úmido da manhã que ainda clareava e soltou-o pela boca, devagar, procurando com isso acalmar sua angústia.
Segurou a rédea e o cepilho com a mão esquerda, apoiou a bota no estribo, deu impulso e afundou nos pelegos presos sobre a sela. O coronel tinha estatura mediana, uma já visível barriga e um formato atarracado – meio socadinho, dizem alguns. O rosilho arqueou-se e reagiu bufando e baixando e levantando a cabeça. Cutucou de leve e conduziu o animal a passo pela ponte que ele, com orgulho, havia construído para a passagem do gado e da camionete, e por onde se alcança a cachoeira pela trilha que ladeia o mato que cobre as margens do rio Mansinho.
O animal continuava a passo e ele ainda ruminava as ideias para defender sua propriedade, quando saiu do mato e teve que acostumar os olhos ao brilho do dia no campo limpo. Um leve movimento de rédeas e o rosilho estacou. Arrudão lembrou-se de uma cena fugaz, intermitente, que permeava seus pesadelos. Nela, ele se via assinando a escritura de transferência de suas terras frente a um juiz trabalhista (como sabia deste detalhe?) que ria sarcástico e entregava a escritura a alguém postado ao seu lado dizendo: — Está tudo resolvido, as terras agora são suas! Neste momento, uma horda de advogados que riam sarcásticos o cercava, e ele não conseguia ver quem recebia a escritura de suas terras.
Como se o rosilho pudesse entendê-lo, vociferou em voz alta: — Nunca, nunca! Não entregaria um palmo de terra, uma pedra que fosse, um fiapo de capim, ora, se entregaria! Afoitamente, e com fome, imaginando beber um café forte com muito açúcar e pão dormido com manteiga enquanto arquitetasse um plano infalível de defesa, puxou as rédeas para a direita e cutucou o animal com vontade enquanto o açoite estalava na anca desprevenida. O rosilho bufou relinchou retesou os quartos empinou, e estabacou o coronel de bunda no capim úmido!
Não conseguiu falar nada. Ficou ali mesmo de boca aberta sentado no chão tentando entender o que havia acontecido, enquanto o rosilho relinchava balançando a cabeça provocante, e com uma leve empinada partia faceiro a trote largo rumo à sede...

3 comentários:

  1. Oi Alex (da Nena)! Adorei teu blog! Beijos da Dani Mussatto

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  2. Alex, gostei do blog.Me faz recordar algumas coisas dos velhos costumes da região, mas o mais importante é tu estares escrevendo e assim, treinando para as mesmas lides do Licurgo.
    Um abraço do Beto

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  3. Eita sÔ!!!
    Criastes isto tudo!?
    Daé é brabo tchê!!!
    Chorei pra ti!!!
    Bommm, muito bom mesmo!!!
    O pai tá fazendo propaganda!!!
    Aproveitei e repliquei pruma cambada!!!
    Fazia uma cara que eu estava distante do mundo bloguístico e ainda mais tempo que não mandava um spam coletivo de propaganda de links!!!!

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