24 dezembro 2007

Viagem no Tempo

O exemplar nº 0 (zero) da revista Superinteressante foi publicado em setembro de 1987 com poucas páginas e apenas 3 matérias, pois era uma apresentação da revista propriamente dita que seria publicada no mês seguinte. Em meados de 1988 eu fiz a assinatura da revista, que mantenho até hoje, apesar de ter à minha disposição uma coleção de CD’s com todas as edições desde o início até junho de 2005, lançados em comemoração aos 18 anos da revista. Do lançamento à assinatura, adquiria os exemplares na banca.
No ano de 2000, com a intenção de organizar e proteger as revistas resolvi acondicioná-las em pastas do tipo Polionda, e neste trabalho descobri que faltavam seis edições na coleção. Em poucos meses, encontrei cinco delas em sebos da cidade. Hoje, dia 21 de dezembro de 2007, após quase sete anos de busca, encontrei a única edição que ainda me faltava, a nrº 3, coincidentemente publicada em dezembro de 1987, há exatos 20 anos! Como acontece todo mês ao receber o exemplar da revista, mas com o sabor especial de ter em mãos uma raridade e a satisfação de tê-la encontrado, devorei a edição em pouco mais de uma hora.
Na seção Grandes Idéias, a matéria ‘O computador’ conta resumidamente em duas páginas a história da máquina que começava a se tornar conhecida do grande público, do usuário leigo, e a entrar em suas casas nas suas versões mais primitivas, e na seção Cartas dos Leitores depoimentos da adida de imprensa do Consulado Geral dos EUA em São Paulo e do ministro da Ciência e Tecnologia elogiavam a iniciativa da Editora Abril e a qualidade da revista.
Mas em uma matéria de tecnologia, ‘O Computador Levanta Vôo’, experimentei a sensação ímpar de comprovar o acerto – e também o desacerto – de algumas afirmativas e previsões. O texto fala de um supercomputador instalado na NASA que simula testes de aviões, o Cray-2, com 8 processadores, clock de 2 GHertz e memória de 256 MB, que esquentava tanto para realizar seus cálculos que a refrigeração era feita com fluido de Fluorcarbono (ou fluourinert), o mesmo utilizado em transplantes de coração, escolhido por ser incolor, inodoro, atóxico, não inflamável e ter alta estabilidade térmica e capacidade de transferência de calor. Este fluido circulava entre os circuitos para captar o calor e depois de resfriado em uma unidade externa retornava ao equipamento, mantendo assim a temperatura em níveis aceitáveis, exatamente como é feita a refrigeração dos motores dos nossos carros. Na época existiam uns trezentos supercomputadores, dos quais apenas 27 Cray-2, concentrados nos Estados Unidos, Canadá, Japão e países da Europa, que não vendiam para ninguém, e quem não tinha, esperava a vez para poder comprar. No Brasil havia pelo menos 6 empresas e instituições de pesquisa interessadas, da Petrobrás ao CTA – Centro Técnico Aeroespacial. O interessante é que este supercomputador, que custou quase 20 milhões de dólares à NASA, era 16 vezes mais lento e tinha 8 vezes menos memória que o micro com o qual escrevo este texto.

Supercomputador Cray-2 e módulo de resfriamento expostos no Computer History Museum, em Mountain View, Califórnia, USA.

Sobre a simulação dos testes de aviões, a matéria cita o projeto do Expresso do Oriente, inspirado num velho sonho americano, o X-30, que voaria a 30 mil quilômetros por hora e que, além de avião comercial, substituiria os ônibus espaciais do tipo Challenger. O Expresso do Oriente foi projetado para transportar 500 passageiros, voar a 17.000 Km/h, ou 14 vezes a velocidade do som (match 14) e ligar Washington a Tóquio em três horas, treze a menos que os jatos atuais, até o ano 2000!

Ilustração: Revista Superinteressante, pág. 30, edição nr. 3, dez 87

A realidade mostrou-se bem menos audaciosa, pois o maior avião comercial voando atualmente, vinte e sete anos após a previsão, é o A380, que transporta mais de 800 passageiros, mas com velocidade muito inferior à match 14 do Expresso! Os dois maiores limitadores da imaginação dos projetistas de aeronaves, além do custo, são o barulho gerado pelos motores e o alto consumo de combustível. O maior exemplo que temos é o fracasso comercial do Concorde, cujo último exemplar em operação encerrou as atividades em outubro de 2003, e hoje é visto apenas em museu. Ele era autorizado a voar acima de match 1 apenas sobre oceanos e grandes áreas desabitadas, como os desertos, por causa do barulho, e consumia 20.000 quilos de querosene por hora de vôo transportando apenas 100 passageiros, contra os 350 passageiros que o Boeing 747 transporta consumindo bem menos combustível.
As grandes realizações do homem nascem com um sonho, e não custa sonhar. Mas custa realizar, e por isso um sonho pode ser adiado por muito, muito tempo, até tornar-se realidade. Quem viver, verá!

16 dezembro 2007

Verborragia é isso...

Que o bimbalhar dos sinos
e o tresloucar dos gargalhões
imantem os eflúvios cumulativos peremptórios
para os perpassares antológicos
das excelsas veredas pinaculares!
Ora, se.
Adesivo colado no vidro traseiro de uma Caravan estacionada em rua central de Florianópolis em janeiro de 1978. A tradução conservadora do texto é "Feliz Natal". Há quem queira acrescentar "...e Próspero Ano Novo", mas assim também já é demais...

04 dezembro 2007

Questionar é Preciso


Sidney Harris (ScienceCartoonsPlus.com), em "A Ciência Ri" - editora Unesp

Nós Merecemos o que Queremos?

Crítica a respeito da decisão dos empregados da Caixa, agência Lages/SC, durante a greve de 2005, de interromper a paralisação iniciada apenas um dia antes. Lages, SC, outubro 2005.

Em abril deste ano recebemos pelo CaixaM@il uma mensagem do nosso colega Nelson Guimarães na qual transcrevia o texto de Aldo Novak, sobre frase de James Allen: “Por que? Por que não? Por que não eu? Por que não agora?". Naquela época, chamou-me a atenção pela sua simplicidade e pela lógica do raciocínio.
No curso de computação somos sistematicamente orientados a pensar logicamente. As coisas na nossa cabeça com o tempo tendem a se resumir em [uns e zeros], [se isto então aquilo], [falso ou verdadeiro]. Mas, claro, nem tudo é lógico. Aliás, pouca coisa o é. Gente é ilógica! Talvez isso explique o estigma que persegue e rotula como fora da casinha os que se dedicam em tempo integral à ciência informática. Para estas pessoas, é tão difícil entender e aceitar a imponderabilidade das coisas e das pessoas, que estes malucos preferem o isolamento das linhas de código e dos compiladores ao convívio pernicioso do pensamento não lógico. Ainda se fosse não pensamento lógico, vá lá...
Lembrei daquele texto hoje, ao sair da nossa assembleia que decidiu pela interrupção da greve.
Mesmo sem a preocupação com a sistemática, e sem nem nos darmos conta, na semana passada acabamos seguindo o roteiro sugerido: — Por quê? Por que estamos reunidos? Para questionar nosso presente, e discutir nosso futuro, com certeza. O que temos hoje é suficiente? É o que precisamos? É só o que a Caixa pode nos oferecer? Pior: será que é só o que merecemos? E o que queremos para nós amanhã? Sobrevivermos, simplesmente? Queremos mais dignidade, pelo menos. Mais respeito. Queremos ser ouvidos, e ser valorizados. Nada de extraordinário, só o básico. Tipo assim, pagar as contas em dia, entende? — Por que não? Por que não dizer à Caixa da nossa insatisfação, da nossa discordância? Se a Caixa mexe há tanto tempo no nosso bolso, por que não podemos mexer no bolso da Caixa? Assim seremos ouvidos, com certeza. Por que a Caixa ofende nossa inteligência ao negar um reajuste mínimo, ao mesmo tempo em que alardeia um lucro bilionário no primeiro semestre do ano? Por que temos que acreditar que quatro por cento é tudo que pode ser dado? Por que não usarmos do recurso mais radical ao nosso alcance? Por que não entrarmos em greve? — Por que não nós? Se a adesão à greve ainda não é consistente, por que não fazermos a nossa parte, mesmo que para isso tenhamos que dar o primeiro passo? Por que não podemos ser a primeira agência a fechar no interior? Por que temos que esperar pela iniciativa de Florianópolis, Chapecó, Santo Antônio da Boa Vista, Icó, Brasília ou Santana do Parnaíba? Se é o que queremos, e no que acreditamos, por que não podemos fazer? — Por que não agora? Se não fizermos nossa parte porque outro ainda não fez a sua, corremos o risco de ficarmos esperando uns pelos outros, e nada ser feito. Por que não fazemos nossa parte agora? Estaremos dando exemplo para quem espera por um, e ao mesmo tempo estaremos dizendo estamos com vocês àqueles que tomaram a iniciativa antes de nós. A força do todo é a soma do esforço de suas partes. Por menores que elas sejam.
Tomamos uma decisão madura. Cumprimos os compromissos assumidos com as gerências. Negociamos as situações imprevistas. Paralisamos a agência na segunda-feira, dez de outubro, como nunca havia sido feito, e sem tropeços, sem tumulto e sem um desgaste significativo. Fomos conscientes e responsáveis na execução daquilo que responsável e conscientemente decidimos. Mas no final da tarde...
Na minha opinião, fizemos tudo certo. Tomamos a decisão de parar, paramos, demos o nosso recado com competência. Com certeza encorajamos a parar muitos que esperavam pela iniciativa de alguém. Demos o exemplo. Chamamos para que nos acompanhassem, da mesma forma que nós abraçamos os pioneiros das capitais, parados desde a semana passada. Só que agora, mesmo sabendo da possibilidade de paralisação de várias unidades do estado, a decisão tomada em nossa assembleia do final da tarde foi de interromper a greve!
Agora passam alguns minutos das duas horas da manhã de terça-feira. Não sei o que vai acontecer hoje nas outras agências, nas outras cidades, nos outros estados. Pelo menos para mim, não importa se vão parar ou não. Independente do que aconteça em âmbito nacional, sinto que o que fizemos não passou de fogo de palha. Faltou-nos a coragem, não acreditamos o suficiente, talvez. Não cabe a mim – nem a ninguém – questionar a decisão de nenhum dos colegas presentes na assembleia. Não tenho este direito, cada um sabe os motivos da decisão que tomou – a de manter a greve, a de interrompê-la, a de abster-se também, e esta decisão deve ser respeitada por cada um de nós. O problema é que não conseguiria dormir sem externar o sentimento de frustração que me assolou, por não conseguir entender por que paramos no nosso melhor momento. Apelei para a lógica, e mesmo assim não encontrei uma resposta. Provavelmente porque não haja apenas uma resposta. Talvez ainda precisemos do exemplo e da iniciativa dos outros para apoiar nossas decisões. Talvez não sejamos maduros e conscientes o suficiente para saber o que queremos. Talvez mereçamos mesmo só o que a Caixa nos oferece.
Acenamos com um caminho, e nos contentamos com um atalho.
Alexandro Reis.
(11out2005)

6. Aventuras do Coronel

(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto olhou-se no espelho por cima do ombro, depois de frente, de lado, de frente de novo. A Tetê segurava o riso enquanto olhava lá da sala com o canto do olho. Não é que o seu Arrudão estivesse ridículo, imagina, claro que não, mas é que aquele calção vermelho, curto e bem apertado não combinava com o estilo socadinho e meio bruto do coronel. Juntando a camiseta branca, modelo regata uns três números menor que a barriga já saliente, e completando o quadro, meia social curta marrom e tênis Kichute, ficava ridículo uma bar-ba-ri-da-de!
O coronel ainda não tinha falado nada. Fazia quase hora que andava do quarto pra sala, da sala pra cozinha, voltava pro quarto. Parava em frente ao espelho, sério, desconfiado, depois saía, voltava e se olhava no espelho de novo.
— Tá preocupado com alguma coisa, amor?
— Não sei... estou me sentindo esquisito vestido assim. Não estou parecendo ridículo?
— Ca-paz, amor. Este uniforme ficou muito bem em você!
Virou o rosto e fez de conta que fazia alguma coisa, estava difícil ficar séria olhando prá ele.
O coronel se preparava para um campeonato de peteca nas terras do doutorzinho casca grossa, lá pros lados do Capão Alto. Já não tinha mais idade para atividades violentas deste tipo, mas neste caso estava abrindo uma exceção porque outros conhecidos seus também participariam. Eram todos homens calejados como ele pela dura lida das estâncias e fazendas, e mais alguns colafinas da cidade. Como os jogos seriam de duplas, decidiu convidar o arrumadinho de olho azul, com uma condição:
— Chegue amanhã bem cedo aqui na estância – disse ao telefone pro arrumadinho – no máximo às 6:00h.
— Mas o jogo é à tarde, Arrudão, por que tão cedo?
— Porque nós vamos a cavalo, homem!
— Mas são quase trinta quilômetros! Só de ida...
— Por isso mesmo temos que sair cedo. A peteca é um esporte violento, a peleja vai ser dura. E eu não vou me mixar indo de picape, isso qualquer um faz, mas eu não, eu quero chegar em grande estilo montado no rosilho.
Silêncio no outro lado da linha. Em seguida, hesitante:
— Legal... bom, então a gente se encontra lá...
— Mas de jeito nenhum, arrumadinho, vamos chegar os dois a cavalo, na hora do jogo, de uniforme e prontos para a batalha. O Vassourinha até já pintou o nome da nossa dupla com tinta a óleo na camiseta, “Os Brutos”, ficou uma beleza.
— Mas Arrudão, esqueceu o almoço lá na fazenda do doutorzinho? Ele já matou uma vaca pro churrasco...
— Esqueça o almoço. Churrasco tem todo dia. Já preparei um lambisco prá viagem suficiente prá nós dois, e olha, nem precisa me pagar. Ah!, ia me esquecendo, você vai com a Cheirosa, aquela égua tobiana lá do meu primo, ela tá meio velhinha e tropeça um pouco, mas ainda agüenta o tirão. Não se atrase!
E desligou o telefone. Do outro lado da linha, o arrumadinho suspirou fundo.
Chegaram quase quatro da tarde, os dois vestidos com o uniforme, calções vermelhos – bem apertados – e camisetas regata brancas. Já tinham perdido as duas primeiras partidas por W.O. Estavam estropiados. O arrumadinho apeou com esforço, quase teve que ser ajudado. Tirou a camiseta, e parecia que tinha outra camiseta branca por baixo, pois a pele dos braços, do pescoço e das pernas estava encarnada, torrada pelo sol. Cambaleou até o tanque e enfiou a cabeça debaixo da bica d’água, enquanto o coronel foi se justificar com o doutorzinho pelo atraso. Ele parecia mamado, pelo bafo e pelo ronco quando ria. Das cinco partidas do sábado, perderam as duas primeiras por W.O., outras duas tentando jogar, e na última o arrumadinho recusou-se a entrar em quadra. À noite, depois da janta e à custa de aspirina, sal de frutas e muita pomada para assadura, ele contou que desde as seis horas da manhã até a chegada, passaram comendo o lambisco preparado pelo coronel, dois ‘pão’ dormido, um pedaço de queijo e uma volta de lingüiça, e em cada uma das 47 porteiras do caminho tomavam um gole de branquinha, e entre uma porteira e outra iam encontrando peões e alguns casais com ou sem crianças, a pé, a cavalo ou de carro e todas essas pessoas, sem exceção, cumprimentavam e se apresentavam, e o coronel acabava descobrindo que era parente, ou parente de um parente, até afilhado esquecido encontrou, e lá ficava proseando, pedindo pelos conhecidos e mandando abraços e lembranças. Se estivesse embrulhado com arame farpado não enroscava tanto pelo caminho.
No domingo de manhã, depois do coronel ter bebido quase todo o estoque de cerveja do doutorzinho ainda no sábado, e do arrumadinho ter varado a noite sem dormir por conta dos pesadelos com porteiras e todos os parentes do Arrudão, as coisas não melhoraram. Perderam mais duas partidas e foram desclassificados antes das onze, mas em compensação, foram aclamados como “a dupla mais sensual”, e seus uniformes foram eleitos por unanimidade como “os mais atrevidos do campeonato”, com direito à faixa e estridente ovação pela torcida. Depois da premiação e do convite prá desfilar para a torcida, que foi gentilmente recusado com um tabefe nas orelhas do enrugadinho transcendental, o idealizador da premiação, o coronel disse para o arrumadinho:
— O trecho é longo. Vamos embora antes que inventem mais alguma bichice.
— Ih! Arrudão, olha, sei não, acho que não vai dar, tô meio sem condições, acho que vou com o...
— Nem pense nisso, tenho que levar os cavalos, você precisa voltar comigo – bafejou o coronel.
— Mas, escute, ainda tem o almoço, podemos sair à tarde – o arrumadinho ponderou administradoramente.
— Mas você só pensa em comida, abençoado? Fique tranqüilo, peguei umas lingüicinhas que sobraram de ontem e mais umas bananas e pronto, já podemos sair!
O arrumadinho suspirou fundo, levantou-se e caminhou em direção à Cheirosa como um condenado em direção à forca. Encilharam os animais ao som da gritaria da torcida em volta da quadra montada no pasto recém aparado um pouco além da roça de milho, e do vozerio e risadas dos homens discutindo futebol, política e outras bobagens enquanto aperitivavam e bebiam cerveja em volta dos espetos de lombo e costela assando no fogo de chão. O arrumadinho estava inconformado, mas aceitou vir a cavalo com o coronel e não podia deixá-lo na mão. Era uma obrigação voltar como viera. Olhou a sacola plástica de supermercado com as lingüicinhas e as bananas pendurada na sela do rosilho, olhou de novo aquele mundo de espeto ao redor do fogo, os tambores cheios de latas de cerveja cobertas com gelo, suspirou de novo e montou na Cheirosa, e conduziu o animal a passo seguindo o rosilho. Ladearam a churrasqueira, os amigos que bebiam e se divertiam e pediam que ficassem, a quadra com a torcida algazarrenta na partida final, seguindo ainda a passo em direção à porteira e ao Cajuru, distante Cajuru. Até sumirem da vista, o arrumadinho ia olhando para trás, com olhar comprido, daquele que diz ‘eu tô indo, mas queria mesmo era ficar’.
Uma semana depois da aventura, o arrumadinho, já recuperado fisicamente, relatou, com expressão de extrema angústia, a odisséia do retorno. Disse ele que, de novo, em cada uma das 47 porteiras tomaram um gole de branquinha, e encontraram novamente todos aqueles parentes da vinda, e mais alguns que haviam desencontrado, e todos eles cumprimentavam novamente, e passavam a contar o que haviam feito na casa dos parentes que foram visitar e as histórias de família, e a todos eles o coronel contava sobre o desafio da cavalgada, as porteiras, o campeonato, a sapecada do arrumadinho, e mandava lembranças e... nesta altura do relato, o arrumadinho começa a tremer, lacrimejar, pede um calmante e balbucia:
— Foi horrível, horrível... porque estas agruras só acontecem comigo? Ainda tenho pesadelos... nunca mais vou esquecer...
Mas o melhor do relato do arrumadinho aconteceu perto da estância do Arrudão. Já era noite alta, sem lua e sem estrelas, escura como breu, e a Cheirosa começou a ficar inquieta. O coronel conduzia o rosilho prum lado, depois voltava, ia por outro lado, a égua negaceava, bufava, o Arrudão resmungava, o arrumadinho desconfiou que alguma coisa estava errada, até que não se conteve:
— Ô Arrudão, o que é que está havendo? Perdeu o rumo?
— Era só o que me faltava! E eu sou lá homem de perder o rumo? Eu me criei nestes campos, posso cavalgar até de olhos fechados! Estes bichos é que estão esquisitos, devem estar com fome ou sede, ou viram cobra...
O arrumadinho não falou mais nada. O coronel continuou bufando, praguejando, resmungando, e nada de sair do lugar, até que deu a mão à palmatória.
— Olha, eu estou meio tonto pela branquinha...
— Ééé... beber com barriga vazia dá nisso...
— Não é isso! Eu estou dizendo é que você pode até não acreditar, mas acho que me perdi...
— Mas eu acredito, Arrudão, eu acredito.
— Ainda se tivesse uma lanterna... Bom, é o seguinte, vamos voltar até a entrada do sítio do Firmino, de lá eu encontro o...
— Arrudão, vamos soltar os animais, quem sabe eles se localizam? – o arrumadinho sugeriu, impaciente. O coronel riu e ironizou:
— Ah, tá! Eles vão acender os faróis e achar o caminho, é isso? Era só o que me faltava!
Mas a rédea solta e um tapinha no pescoço fez com que a Cheirosa desse meia volta e, seguida de perto pelo rosilho, num passo nervoso, contornasse o capão que o coronel insistia em atravessar. A velha égua cruzou a sanga que cortava o mato ralo, subiu um trecho de campo com vassouras até chegar numa taipa com pedras caídas, mais um trecho no meio de vassouras, e por entre as árvores na beira da trilha surgiram as luzes da estância do coronel!
O coronel tomou a dianteira, e resmungou o resto do caminho. O arrumadinho achou melhor ficar quieto. De vez em quando a Cheirosa bufava e o rosilho virava e balançava a cabeça, dando pequenos relinchos, como que dizendo – ‘eu sei, eu sei...’. Arrudão nunca mais tocou neste assunto, e nunca confirmou a história. Para falar a verdade, também nunca desmentiu...

24 novembro 2007

Somos o Que Fazemos


Quino, ou Joaquín Salvador Lavado, nasceu a 17 de Julho de 1932, filho de imigrantes espanhóis, andaluces, na cidade de Mendoza na Argentina.

11 novembro 2007

5. A Barganha do Coronel

(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto deu mais uma cuspida no capim molhado pela chuva na tarde sem graça daquela quinta-feira abafada. Estava há mais de hora debruçado na janela, pitando palheiro e pensando na lida parada. Tetê ressonava estirada no sofá, embalada pela televisão ao som da reprise de uma novela, e que ela jura que não perdeu nenhum capítulo. O gado pastava tranqüilo o capim viçoso entre os caraguatás, o Traíra fazia de conta que dormia com um olho fechado e outro aberto, cuidando ora do gado, ora do coronel, esticado nas pedras laje da calçada em frente à porta do galpão, e do rosilho escondido pelas moitas de vassoura do campo aparecia só o costado molhado pela chuva fina e constante, daquelas que não acabam nunca e que fazem um barulho nas telhas de barro que convidam para dormir ou tomar café com bolo frito. Um marasmo.Pois o marasmo acabou quando viu descendo a estrada que traz ao portão da estância, caminhando em passos rápidos e desviando das poças, o seu peão Vassourinha, que reconheceu logo pela piaçaba negra que cobria metade do rosto, das fuças até o queixo, e pelos longos cabelos molhados e escorridos sobre os ombros, e outro homem, que segurava sobre a cabeça abaixada uma pasta para protegê-la da chuva, e que não reconheceu até que chegassem mais perto, quando levantou a cabeça para ver o caminho até a casa. Era o advogado, aquele, aquele que nunca havia perdido uma causa! Arrepiou-se, cuspiu de novo, e empertigou o corpo, imaginando o que é que o Vassourinha estava aprontando, aparecendo na estância depois de tanto tempo sumido trazendo um advogado a tiracolo. E justo aquele advogado? Será que tinha alguma coisa a ver com o pesadelo da escritura das suas terras?
— Boa tarde, seu Coronel, desculpa atrapalhar, este é o doutor ad...
— Eu sei quem ele é! E o senhor, hein, seu Vassourinha, por onde é que andou? Esqueceu do serviço? Ganhou na loteria? Olha o campo, a desgraça que tá isso, como é que você faz uma coisa dessas e não avisa, nem dá satisfação?
Ignorou de propósito o advogado que, apesar da sua indelicadeza, cumprimentou-o, respeitoso:
— Boa tarde, seu Gumercindo. Não queremos incomodar demais o senhor, nossa conversa é rápida. O Sr. Vassourinha pediu minha ajuda para resol...
— Prá que você precisa de um advogado, Vassourinha? – interrompeu, ignorando de novo o advogado, que começou a se irritar.
— O Sr. Vassourinha – insistiu com firmeza – pediu minha ajuda para discutir a respeito dos direitos que acumulou durante todo o tempo em que trabalhou para o senhor, Sr. Gumercindo.
— Direitos? Mas de que direitos ele está falando, Vassourinha? Que história é essa?
— Hã... bom, coronel Arrudão, é que... bem, o senhor sabe, desde que... olha, coronel, na verdade foi o...
— Direitos trabalhistas, Sr. Gumercindo, direitos trabalhistas, por todo o tempo que o senhor forçou este pobre homem a um trabalho escravo. Isto é crime, e pelo que o seu peão relatou o senhor pode até perder sua estância como forma de indenização por tamanha exploração, Sr. Gumercindo.

O advogado falou firme, olhando ameaçadoramente o coronel, que percebeu naquele momento que tinha um problema sério para resolver. Um sério e bigodudo problema. O coronel era homem viajado, razoavelmente instruído e culto, de raciocínio rápido, ligado no mundo pelas antenas do seu inseparável Philco Transglobe de 9 bandas, e era conhecido na cidade e em toda região do Cajuru por duas marcantes características: uma irritante sovinice – faltava pouco para começar a lascar palito de fósforo ao meio para fazer dois, e uma habilidade incomum de convencer as pessoas sobre o que ele bem entendesse. Em outras palavras, além de avarento era mais liso que jundiá ensaboado!

— Trabalho escravo? Trabalho escravo?– repetiu o coronel, enquanto se dirigia quase correndo para a varanda, onde estavam o peão e o advogado molhando as tábuas enceradas com a água que escorria das roupas encharcadas – De onde tirou um absurdo desses? – e sem dar chance de ser interrompido, desandou a enumerar os incontáveis benefícios que o seu peão usufruía, a comida boa e bem feita, sem luxo mas sem carência, o teto e a cama de graça, o linimento e os curativos nos machucados, o elixir paregórico e os escalda-pés nos desarranjos e resfriados, o senhor e a dona Tetê sempre foram muito bons para mim coronel, e a vaca, Vassourinha, veja bem nunca lhe cobrei arrendo do campo nem a vacina da aftosa mas isso é fácil de se resolver, fico com a Quilemeio pelas despesas até hoje, está certo coronel parece justo, e o advogado não acreditava no que estava ouvindo, Vassourinha, veja bem você sempre foi tratado com sendo da família, a porta da casa nunca esteve fechada, você que sempre quis dormir no galpão e comer no banquinho de toco ali fora na calçada, é acho que sim seu coronel, se o senhor diz, e veja bem Vassourinha, nunca lhe cobrei a carona na carroceria da picape indo ou vindo da cidade, nem o uso das minhas ferramentas quando você arava e plantava o meu canteiro de arruda, nem as vassouras do campo e os caraguatás que você não arrancou, nem os dias parados por causa da chuva que você continuava comendo e dormindo de graça, nunca vou esquecer o que o senhor e a dona Tetê fizeram por mim coronel, e o advogado fechou a pasta e sapateava incrédulo não posso estar ouvindo isso, Vassourinha, veja bem, não quero que ninguém fique falando que eu não soube reconhecer sua dedicação, diga o que eu posso fazer por você como forma de compensar o trabalho de trazer o advogado até aqui prá nada, diga e eu vejo se posso atender, bem seu coronel eu sempre quis ter uma casinha só prá mim ali no meio do pomar, nem pensar Vassourinha, você andou bebendo daquela água, não seu coronel, pois então se atipe animal, então lá no fundo do campo seu coronel perto da cachoeira, esqueça Vassourinha o bostinha colafina chegou primeiro, então quem sabe uma meiágua de dois por dois lá na entrada do mato, piorou Vassourinha o arrumadinho de olho azul não vai deixar, ah! então não sei coronel, o advogado tentou falar o coronel levantou o dedo e fuzilou com o olhar, ele fechou a boca e engoliu em seco, assim é melhor se não ajuda não atrapalha, Vassourinha, veja bem, acho que não lhe devo prá tanto mas prá encerrar o assunto e você assinar aqui neste papel que está tudo bom e que não lhe devo nada, mas o papel está em branco coronel, eu sei Vassourinha depois eu preencho, veja bem prá que você não diga que sou ingrato eu lhe ofereço o cupinzeiro ali do pomar, obrigado seu coronel eu sempre gostei muito do pomar, mas não é o pomar sua anta é só o cupinzeiro, ah! é só o cupinzeiro coronel, tudo bem eu lhe agradeço muito assim mesmo, coronel, o senhor é um homem muito bom, ora Vassourinha, não precisa elogiar tanto, assine aqui, isso, assim mesmo, pronto o cupinzeiro é todo seu Vassourinha, obrigado, seu coronel muito obrigado.

Uma tentativa de aparte do advogado foi interrompida por outro olhar fuzilante do coronel Arrudão, e de novo engoliu sua incredulidade e indignação pela situação absurda que acabara de presenciar. Nunca havia passado por uma situação como aquela! Preferiu dar meia volta e sair pisando duro debaixo da chuva, em direção à porteira. A partir daquele momento, para o coronel ele deixou de ser aquele advogado que nunca perdeu uma causa...
— Tetê! – Arrudão chamou, enquanto guardava satisfeito o papel no bolso da camisa.
— Quifoi, amor? – perguntou a Tetê, sonolenta, da porta da varanda.
Acomodou-se na cadeira de balanço, suspirou fundo e pediu, olhando o peão:
— Traz uma xícara de café preto com bastante açúcar prá mim enquanto eu preparo outro palheiro, e uma água de privada bem fresquinha pro Vassourinha, pois temos muito a comemorar!

O Vassourinha dispensou o copo, e numa sentada bebeu no bico metade da jarra.
— Comemorar o que, amor, posso saber?
— Depois te conto, mulher, depois te conto...
Enquanto o coronel esticava as pernas cruzadas e acendia o palheiro, viu o seu peão Vassourinha, dedo em riste, troteando feliz da vida em direção ao cupinzeiro e chamando a multidão para que o acompanhasse na pregação da palavra divina. De hoje em diante, o cupinzeiro era seu, só seu.

10 novembro 2007

A Máquina, o Lobo do Homem?

Dissertação apresentada à disciplina Metodologia Científica do Curso de Ciência da Computação da FACIC – Faculdade de Ciência da Computação - Sociedade Lageana de Educação. Lages, SC, março 1999.
Desde muito antes da Revolução Industrial, a mecanização tem acompanhado a trajetória de glória e miséria do homem, e tornou-se, desde muito, objeto de pesquisas, estatísticas e estudos por parte das mais variadas entidades e correntes do pensamento teórico, de todas as partes do mundo industrializado. Ontem, a máquina, pura e simples; hoje, a máquina automatizada, informatizada. Mas, sempre uma máquina, a competir com o homem na atividade sustentáculo da economia: o trabalho produtivo. A máquina é o lobo do homem? A resposta a esta pergunta exige que identifiquemos exatamente quem responde, e em que contexto está inserido. Um claro exemplo desta afirmação serão as respostas do empresário que investe na automação de seus equipamentos e enxuga o quadro de pessoal, e do empregado preterido pelo equipamento automatizado. Enquanto este lamenta o seu infortúnio, creditando ao progresso, ao desenvolvimento de novas tecnologias e às leis predatórias do mercado competitivo a sua desgraça e a falta de perspectiva de encontrar novo trabalho, aquele contabiliza os lucros advindos do investimento na tecnologia enquanto disserta sobre as maravilhas do gênio criativo do homem e suas extraordinárias conquistas.
A máquina, que livra o homem de tarefas perigosas, insalubres, cansativas, repetitivas, falíveis, também pode tirar dele a garantia do trabalho, a segurança, o sustento, a auto-estima, a motivação. E assim é a lei de mercado: cruel, sádica, insensível, refratária às aspirações dos humildes, das minorias. Atropela-os, arrasa-os como aterradora avalanche, engolindo a tudo e a todos. Sem remorsos, sem lamentações. Quadros como este, que descrevem um sem número de situações cotidianas à nossa volta, e em todos os quadrantes do nosso planeta, preocupam-nos e, por vezes, atingem-nos em maior ou menor intensidade. E, como couraça protetora, escondemo-nos dentro de nós próprios, envoltos na ‘segurança’ de nossos empregos ou de nossa atividade profissional qualquer que seja - ainda ‘segura’, e seguimos engolindo a frustração, a ansiedade, até que uma nova avalanche aconteça e nos engula...
Esta atitude impede-nos de perceber, por detrás das ‘calamidades’ que acontecem quando empregos são extintos, quando profissões se tornam desnecessárias do dia para a noite, quando nossos produtos tornam-se obsoletos ou quando a exigência dos nossos clientes se nos parecem exageradas, que em tudo o que nos acontece é possível encontrarmos aspectos positivos que nos farão maiores, ou melhores. Muitas vezes, percebemos o benefício muito tempo depois do problema, ou ele se materializa após muito tempo de amarguras e ressentimentos. Mas nossa visão deve ser abrangente, temos que alargar nossa perspectiva, ir além do que sabemos e vivenciamos. Não é por acaso que o ideograma chinês que representa crise é formado pelos ideogramas problema + oportunidade. São nas adversidades que encontramos a oportunidade de crescermos, de melhorarmos. E assim ocorre com a humanidade desde que o mundo é mundo: de catástrofes em catástrofes, de obstáculos em obstáculos, a humanidade segue em frente, construindo a sua história e sua têmpera, evoluindo moral e materialmente, crescendo em todos os aspectos. Desnecessário dizer que muito mais vertiginoso é o crescimento horizontal, material, que o vertical, moral, e isto com certeza é, ou será, o fiel da balança.
Nesta linha de raciocínio, entendemos que por mais que a automação seja colocada na posição de pivô da crise do emprego (o problema), ela apenas faz parte do processo natural de evolução, e apresenta-se ao homem a oportunidade de criar alternativas, como, por exemplo, fomentar a prestação de serviços para acolher os postos de trabalho extintos, principalmente do processo produtivo, o que efetivamente já vem acontecendo. Ora, esta é uma solução que está funcionando e que, com certeza, não é a única, e o somatório de todas as alternativas dará os contornos da mudança de postura do homem do final do nosso século, frente ao redemoinho fantástico de culturas, conhecimentos e conquistas, dentro do qual turbilhonamos alucinadamente. Alvin Toffler nos dá uma idéia mais concreta quando diz que “O Futuro Chegou Hoje”:

“Se os últimos 50.000 anos de existência do homem fossem divididos em períodos de aproximadamente 62 anos cada um, terá havido aproximadamente 800 gerações. Dessas 800 gerações, 650 foram completamente passadas nas cavernas.
Apenas durante as últimas 70 gerações tem sido possível a comunicação efetiva de uma geração para outra, uma vez que a escrita possibilitou essa transposição. Apenas durante as últimas 6 gerações as massas humanas viram, pela primeira vez, a palavra impressa. Somente durante as últimas 4 gerações foi possível medir o tempo, com alguma precisão. Apenas nas 2 últimas pode alguém usar um motor elétrico. E a esmagadora maioria de todos os bens materiais que usamos cotidianamente, na nossa vida comum, desenvolveu-se dentro da presente geração, que é a de número 800.
Diante deste quadro, assombra-nos a idéia de que temos que mudar nossas atitudes, rever nosso enfoque da questão. Com certeza, em todas as grandes transformações da humanidade houve um estopim, um pivô, ou até um bode expiatório. E em todas elas o homem soube encontrar soluções. O diferencial do nosso século é a extraordinária rapidez com que as coisas acontecem, fazendo com que não nos demos conta do tanto que acontecem!

De todos os cientistas que já existiram no mundo, desde os princípios da civilização, apenas 7% viveram em gerações anteriores à nossa. Em outras palavras, 93% dos cientistas, desde que o mundo é mundo, vivem HOJE e estão produzindo HOJE novos conhecimentos científicos”.
Apesar de conhecer do homem a sua natureza irracional e a sua capacidade de destruição, acredito na sua imensa capacidade criativa, de adaptação, e de surpreender-se a si próprio. Ora, a máquina é criação do homem, e deve proporcionar, mais que riquezas a poucos, bem-estar e oportunidades a todos. Oportunidades de aprendizado, de novos conhecimentos, de lazer, de conquistas – individuais ou coletivas. Ela deve estar a nosso serviço – patrão e empregado. Deve prover, proteger, facilitar. Ao homem, cabe a tarefa de domesticá-la, impor limites à dependência cega de automatização, pois o progresso da humanidade não deve acontecer a qualquer preço. E aqui abordamos o desenvolvimento moral do homem, como peça chave, indispensável, à solução do caos do fim do século que passará, inevitavelmente, pelo refinamento das relações humanas, dos sentimentos e das atitudes – responsabilidade de cada um de nós. Se isto não acontece, não podemos responsabilizar a criação, e sim, o criador. Afinal, apesar da sua grandeza, o homem, e não a máquina, é o lobo do homem!

31 outubro 2007

Lages, Trânsito Sem Lei

Onde não há lei, não há ordem. A convivência em sociedade implica a existência de normas de conduta, que estabelecem procedimentos básicos para um relacionamento de respeito entre os indivíduos, e implica também a existência de leis, que regem as questões legais cíveis e criminais, as questões tributárias, administrativas, públicas, dentre um universo de aplicações.
Nenhuma novidade há nesta afirmativa. A questão é que para que indivíduos convivam em relativa harmonia e respeito é necessário que as normas de conduta sejam respeitadas e as leis sejam cumpridas. Sem essa condição básica, elementar, é inútil a existência de leis e dos órgãos públicos que deveriam zelar pela sua aplicação.
Um claro exemplo de leis que não são cumpridas é o trânsito de Lages. Por mais absurdo que possa parecer, uma das maiores cidades do estado não tem policiamento no trânsito. A situação, além de absurda, torna-se trágica, pois não há a menor preocupação entre os motoristas com relação a punição para qualquer atitude ilegal. Quando a lei é esquecida, esquece-se também o respeito, o senso crítico, a civilidade, a educação... Bem, na verdade, quando chega a este ponto é porque respeito e educação já foram esquecidos há muito tempo.
Os absurdos que acontecem não diferenciam motoristas de pedestres. Se você é motorista, terá que conviver com motoristas que bloqueiam a rua andando em velocidade irrisória, ou que ocupam as duas pistas das avenidas, motoristas que não sinalizam nem aos outros motoristas nem aos pedestres, motoristas que reagem tão lentamente ao sinal verde nos semáforos que poucas vezes passam mais que três carros por vez, motoristas que param em fila dupla em frente ao banco para que madames possam usar o caixa automático, como na Nereu Ramos em dias de chuva, motoristas que param seus carros ou ônibus em rua de pista única, como descendo a Frei Rogério sentido Centro–Pres. Vargas, para comprar jornal ‘bem rapidinho’, ou apanhar alunos em frente à escola, motoristas que conduzem veículos em frangalhos, sem a menor condição de segurança e trafegabilidade, colocando em risco sua própria integridade e dos demais motoristas e pedestres, motoristas que trafegam na contramão para não ter que dar a volta na quadra...
Se você é pedestre, terá que disputar espaço com carros ‘estacionados’ nas calçadas em frente às casas daqueles motoristas do parágrafo aí em cima, com carros atravessados em frente a estabelecimentos comerciais que usam a calçada como estacionamento para os clientes – experimente reclamar e será violentamente xingado como se o errado fosse você, com carros estacionados no que seria a calçada em postos de combustível, secando após a lavação enquanto aguardam seus proprietários vir buscá-los, com motos costurando entre os carros no trânsito, com bicicletas desviando das pessoas nas calçadas e calçadões e crianças e adolescentes em skates fazendo malabarismos, atropelando as pessoas e depredando prédios públicos e monumentos ao usá-los como rampas e obstáculos para sua diversão...
Isso tudo acontece sob o olhar complacente – e cúmplice por conseqüência – dos raros policiais que são vistos nas ruas. Quando a Polícia Militar era encarregada do policiamento do trânsito, alguns problemas e abusos também aconteciam, mas pelo menos havia a possibilidade dos transgressores serem punidos com multa ou apreensão do veículo, conforme o caso. Agora, nada é feito, nem pela Polícia Militar, nem pela Prefeitura, e essa omissão transforma o trânsito de Lages em terra de ninguém, e a cidade e seus cidadãos de bem permanecem reféns dos inescrupulosos e à mercê do acaso, e do descaso do Poder Público.

28 outubro 2007

4. A Benzedura do Coronel

(Esta é uma obra de pseudoficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto estava deitado de bruços no sofá da sala com o rosto virado cuidando da mulher sentada na cadeira ao seu lado, que se mexia agitada, visivelmente contrariada. Ela devia estar beirando os setenta, cabelos acinzentados, meio encardidos e ralos caindo soltos até metade das costas, e caminhava encurvada para frente carregando com dificuldade um imenso traseiro e gingando o corpo de um lado para outro, como uma gansa.
— Coroné, inté dô benzimento com o sinhô deitado ansim, mais esse gaião de arruda na zoreia tá fechano o corpo prás reza, tá sim, tem que tirá!
Arrudão tinha enrolada na cabeça uma faixa de pano ensopada com álcool e mastruço esmagado com sal, por causa de uma violenta chinelada na testa sofrida um dia antes. A perna direita da bombacha levantada na altura do joelho deixava ver o pé ainda enfaixado até a canela, como também estavam enfaixadas suas costelas, e nos quartos, na altura da sambiquira, tinha grudado um emplastro Sabiá. Um mar de pinceladas de iodo, uma para cada furo de espinho de caraguatá, quase escondia o que ainda dava prá ver do costado branquelo do coronel. Segundo Tetê, a bunda estava do mesmo jeito, toda pintada feito criança com catapora. Na mesa baixa em frente ao sofá, uma parafernália de jarra com água, copo, colher, um vidro de linimento de Sloan, analgésico, calmante, iodo, a tigela esmaltada para preparar compressa, pinça e rolos de gaze e esparadrapo, uma chaleira com água quente para os chás e infusões, e um prato fundo com canja de galinha já fria, que o coronel não havia tocado.
— Experimenta, véia!
— Amôor – acudiu a Tetê – foi você quem pediu benzimento, se ela diz que a arruda está atrapalhando então tira, qual é o problema?

Além dos pequenos acidentes sem importância que o haviam deixado no estado em que estava, de uns meses prá cá o coronel andava às voltas com roubos na estância, coisa que há muito tempo não acontecia mas que já estavam virando moda, pela quantidade de visitas e pela facilidade dos ladrões em abrir a casa e o galpão e escolher o que levar. A benzedeira era a última esperança do coronel porque a polícia não tinha resolvido nada. Se é que tinha tentado resolver, bem entendido.
— Não posso, mulher! – resmungou impaciente o coronel, cara enfiada no sofá – Se tirar, a coisa piora, é esta arruda que me protege.
— É, tô veno que potrege! – a velha ironizou e saiu rindo gingando gansamente em direção ao banheiro – Vô mijá.
— Ah, não acredito, a velha vai mijar! – o coronel esbravejou, já com meio corpo levantado no sofá – Já tô arrependido, vou é seguir os conselhos daqueles urubus, não consigo ficar parado esperando a boa vontade da polícia, me dá comichão só de pensar na incompetência desses pragas!
Tetê postou-se à sua frente, desafiante, uma mão na cintura, a outra com o dedo apontado para o coronel.
— Agora não entendi. Não foi você que se indignou com as sugestões que os seus amigos deram, que eram absurdas, que onde já se viu falarem tanta bobagem junta, se eles achavam que você tinha cara de trouxa, e nem sei mais o quê?

A cada visita dos ladrões choviam conselhos dos amigos, tantos quanto a variedade do que levavam. Alumínio e cobre eram o alvo, e assim os ladrões carregaram vários utensílios de cozinha, até o congelador de uma geladeira Steigleder azul calcinha com maçaneta do tipo de automóvel antigo, e por duas vezes levaram a fiação de luz. Para não desperdiçar a viagem, também levaram um forno elétrico e algumas ferramentas, mas só das pequenas. Outras coisas, como bujão de gás Liquinho e pratos até levavam, mas logo desistiam e deixavam largados pelo campo. As miudezas o coronel até tolerava como coisas da vida, dava-se jeito, mas a fiação de luz não. A energia elétrica na estância demorara muitas décadas para ser instalada, era o xodó do Arrudão, e ele não ia deixar por isso mesmo.

Para impedir novos furtos, o arrumadinho de olho azul sugeriu instalar uma fiação elétrica com armadilha, de modo que continuasse energizada mesmo depois de cortada, e assim os ladrões ficariam grudados nela. Foi logo descartada porque poderia causar mortes e também porque ninguém sabia como fazê-lo, apesar da sua administradora insistência que vários estudos demonstravam que era o melhor a ser feito. O bostinha cola fina, num arroubo de imaginação hollywoodiana, sugeriu a instalação de minas terrestres em locais estratégicos e sobre elas, servindo de isca, rolos inteiros de fios elétricos. Quando os ladrões os pegassem, bum! Esta sugestão nem foi considerada, pois ficou claro ser fruto de um espasmo disentérico, e apenas comprovou a sua vocação colafínica para sugestões abestadas. Muitos outros palpites pipocaram ali e acolá, do tipo deixar tábuas soltas no assoalho para que os ladrões se machucassem, ou instalar armas engatilhadas que disparariam ao abrirem a porta. Tudo bobagem!

O doutorzinho casca grossa, veja só como são as coisas, deu uma sugestão extremamente criativa e, na opinião dele, absurdamente simples. Bastava capturar um leão baio, deixá-lo sem comer por alguns dias, e depois trancá-lo dentro da sede da estância enrolado em fios elétricos, servindo de isca para os ladrões. A aceitação foi unânime, e só não foi implementada porque o fiscal do Ibama não deixou, aquele chato! Mas o supra sumo da originalidade e inteligência foram as sugestões dadas por aquele sabidinho que fala javanês, viajante de nascença, metido a entendedor de pesca com mosca e oxigenação de açudes, e fluente em idiomas indispensáveis como hotentote, aramaico, inuit, ou arikapu, que é falado por ele mais todos os seis índios da tribo Pitaguari. Primeiro, sugeriu que o coronel, em vez de ficar escondendo os utensílios domésticos e outras coisas pequenas pela casa, guardasse tudo isso numa galeota cada vez que se ausentassem, e aí a escondesse no mato perto da sede. Quando voltassem, era só buscar a galeota e recolher as coisas para seus devidos lugares. Isso realmente facilitaria tudo. Até para os ladrões, pois não teriam o menor trabalho para decidir o que levar, estaria tudo separado e empacotado, pronto para ser roubado. Arrudão não implementou porque é óbvio que foi uma brincadeira, todos se divertiram muito, o sabidinho realmente é muito divertido. Alguns meses depois, período no qual cortou relações com o Arrudão e os outros urubus, ele contatou o coronel reservadamente dizendo que, após pesquisar casos semelhantes ocorridos na região onde mora, encontrou ‘um jeito de solucionar de uma vez por todas o problema dos roubos’, e desta vez ele se superou porque ninguém acreditou que uma solução tão simples, barata e eficiente ainda não tivesse sido implementada. O coronel deveria pendurar na porteira da estância uma placa com os seguintes dizeres: “Propriedade particular. Entrada proibida”. Assim, escrito em português mesmo. E tudo resolvido!

Arrudão respirou fundo, tentando imaginar o que havia feito para merecer os amigos que tinha. Olhou a Tetê à sua frente, olhou a gansa, ou melhor, a velha voltando do banheiro, levantou hesitante o braço, tirou o pé de arruda preso à orelha esquerda e o depositou, resignado e trêmulo, no canto da mesinha ao seu lado, sentindo-se completamente nu e desprotegido. Há quem diga que nesta hora seus olhos estavam marejados de lágrimas, porém a Tetê não confirma. Ajeitou-se novamente no sofá e, tentando parecer que recobrava o controle, antes que a bruxa sequer fizesse o sinal da cruz, vociferou:
— Lavou as mãos, véia?
Para resolver o seu problema, até tirava a arruda. Mas submeter-se assim, docilmente, jamais. Não ele, o Arrudão! Mas báh!

13 outubro 2007

3. O Peão do Coronel

(Esta é uma obra de pseudoficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto arrastou devagar seu pé direito enfaixado até metade da canela, apoiado num pedaço de pelego com a lã virada para baixo, pelas tábuas enceradas da varanda da sede da estância. Alcançou claudicante a cadeira de balanço onde sentou-se meio de lado por causa da dor na sambiquira e de onde se pode ver à direita, um pouco abaixo do pomar, a lagoa formada pela água da chuva e seu quase fiel rosilho atolado até os joelhos mastigando o capim fresquinho que aflora na superfície. À sua frente o início do pinheiral um pouco além da lagoa, e numa descida, o capão que esconde a sanga que divide a sede do resto do campo que vai em direção à cachoeira. À esquerda o cocho de sal do gado coberto com eternite de cuja sombra seu totalmente traiçoeiro cachorro Traíra, sentado, olha-o desconfiado, tendo ao fundo a massa azulada dos pinheiros onde estardalhaçam gralhas quero-queros e papagaios, e virando um pouco mais o pescoço se pode ver a lavoura de milho um pouco à frente da canhada que vai dar na entrada do mato. Permeando tudo, de um extremo a outro, um mar de vassouras do campo e caraguatás como o coronel jamais havia visto tantos.
Passava um pouco das três da tarde. Arrudão já havia lavado a louça limpado a cozinha varrido a casa tirado o pó brilhado o chão cuidado prá não acordar a Tuinha que dormitava o cochilo da tarde, e ele agora pitava seu palheiro. A estância estava parada em um marasmo contagiante, o gado olhava desconfiado para o Traíra que continuava sentado à sombra do cocho do sal olhando desconfiado para o coronel que olhava embevecido o gado gordo e esquartejava o cão confiado, sentado na cadeira de balanço cutucando os vãos dos dedos do seu pé esquerdo apoiado na beirada do assento, com o indicador da mão esquerda que abraçava a perna levantada, enquanto tentava lembrar quando foi que tinha visto pela última vez o Vassourinha, seu fiel e submisso peão faz tudo, que deveria manter seu campo livre daquelas pragas.
O peão era um homem rijo, alto, magro e espadaúdo, grandes olhos escuros e face encovada emoldurados por longas melenas em desalinho, com um porte de modelo de funerária que certamente teria feito sucesso nas passarelas não fossem alguns hábitos estranhos, como cultivar com orgulho desmesurado um vasto bigode como se carregasse uma vassoura de piaçaba grudada no meio da cara, com as cerdas negras cobrindo desde o buço até metade do seu queixo másculo – daí o apelido – e também por gostar de beber água de privada. No tempo que a estância não dispunha de um banheiro e se usava a casinha a par do valo, trazia a água da cidade em um garrafão, sabe-se lá tirada de que privadas; depois do banheiro construído, de vez em quando enchia um meio copo e já no terceiro gole se transformava, e de cabisbundo e meditabaixo que era, desandava a falar em altos brados, encarapitado num imenso cupinzeiro, dedo em riste, pregando a palavra divina para multidões imaginárias. Uma tristeza!
Era bom na lida, e custava pouco. Na verdade, custava nada, pois nem carteira assinada tinha e trabalhava pela comida. Dormia no galpão, carpia a lavoura, virava a terra, abria valo em banhado e beira de estrada, fincava palanque, tratava, desverminava e despontava os animais, tirava o leite, rasqueava o rosilho, consertava telhado cerca e taipa, catava pinhão, lavava o Traíra com escova e creolina – era o único que conseguia – fazia queijo e sabão, roçava o campo, arrancava vassouras e caraguatás... O coronel deu uma cuspida e resmungou: — Mas quál... estes caraguatás já pagam imposto de tão grandes, nem o meu milharal é tão viçoso... Nessas alturas o Arrudão se incomodou com o campo sujo, com o sumiço do Vassourinha, com o Traíra olhando prá ele. Deu uns gritos para o cão sair de perto do cocho pras vacas poderem comer o sal, mas ele continuou sentado, impávido, olhando o coronel, que então calçou um chinelo de borracha que um dia havia sido uma bota Sete Léguas que teve seu cano cortado rente ao calcanhar com uma faca de serrinha. Foi quicando num pé só, desviando as vassouras, pulando os caraguatás em direção ao cão, que se ergueu e a cada pulo dava meio passo atrás e piscava os olhos, até que à distância de um cuspo disparou pros lados de onde estava o rosilho atolado na lagoa. O coronel apoiou-se no palanque de eucalipto que sustentava a cobertura do cocho para descansar o pé enfaixado e num instante foi cercado pelo gado que se espremia para alcançar o sal.
Coincidência ou não, bem ao seu lado estava a Quilemeio, uma beleza de vaca que pertencia ao Vassourinha, com pelo curto e brilhante malhado de branco e café com leite, com quase nada de berne e carrapato. Arrependeu-se de não ter cobrado do peão o arrendo do campo antes do seu sumiço. Paciência, ficava com a vaca pela despesa. Da casa ouviu a voz da Tuinha, que gritava com as mãos em concha na boca:
— O café tá pronto!
— Tetê! Ô, Tetê! – gritou, enquanto reiniciava o caminho de volta pulando num pé só.
— Quié? – gritou ela, voltando à porta da casa.
— Sabe do Vassourinha? O campo está um desastre. Não vi mais ele!
— Não, amor! – gritou ela. Arrudão deu impulso para pular um imenso caraguatá. — Mas na última vez que vi ele perguntou se eu conhecia um advogado, aí eu indiquei aquele que você disse que nunca perdeu um caso!
Todas as dúvidas do coronel dissiparam-se, a luz do entendimento brilhou alumiando as trevas do seu pesadelo fugaz, e clareou a estampa do Vassourinha recebendo a escritura das suas terras das mãos do juiz trabalhista, rindo sarcásticos e bebendo água de privada os dois, mais a horda de advogados que riam sarcásticos, todos com a mesma cara daquele advogado que nunca perdeu um caso, e que a Tuinha indicou...
Isso tudo se passou enquanto pulava a bromeliácea. Ao chegar do outro lado, os céus trovejaram, as trombetas soaram, o mundo desabou e o chão virou uma massa mole, verde e quente sob seu pé, que resvalou subindo em direção às nuvens e levando com ele o chinelo mais toda a bosta de vaca do Cajuru mais as outras três patas do coronel, que desabou de costas esparramado sobre o caraguatá espinhento! Antes que desse um gemido, um chinelo de borracha todo melecado descido dos céus esborrachou-se na sua testa e um dilúvio de estrume cobriu sua cara escondendo o narigão adunco.
Atordoado, deitado sobre um colchão de espinhos e ferido de morte em seu orgulho, o coronel ouviu um relincho e um uivo que lhe pareceram familiares. Há quem jure, e a Tuinha é uma delas, que nessa hora um cão e um cavalo bateram suas patas dianteiras direitas espalmadas, e saíram a rolar pelo capim rindo como só um quase fiel cavalo e um totalmente traiçoeiro cão sabem fazer...

07 outubro 2007

2. A Partilha das Terras do Coronel

(Esta é uma obra de pseudoficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto ajeitou o travesseiro de penas de ganso sobre o assento da cadeira de palha ao lado da mesa de tábuas antigas pintada de azul disfarçando as marcas do dia a dia da cozinha de estância por décadas a fio. Apoiou as nádegas e soltou o peso do corpo com cuidado e vagarosamente sobre o travesseiro, e gemeu com a dor na sambiquira, resquício de um acidente sem importância envolvendo o rosilho na manhã daquele dia. A bem da verdade, a dor maior era do ego, ferido no seu orgulho de peão da lida campeira, mas outras preocupações mereciam sua atenção com mais urgência. O rosilho podia esperar. Tirou do bolso da camisa um toco de fumo em rolo embrulhado em saco plástico, e da cinta um canivete Tramontina com um lado do cabo já sem a baquelita imitando marfim. Ajeitou-se no travesseiro, com as costas da mão limpou algumas migalhas de pão dormido do desjejum que acabara de tomar e começou a picar o fumo, usando a depressão na tábua no canto da mesa que se formou por anos e anos de preparo do palheiro matinal. Esticado no chão à sua frente seu cachorro Traíra, companheiro na lida mas traiçoeiro de primeira, olhava o coronel com olhar pidão. Tetê, sua companheira de muitos invernos, ainda ressonava embrulhada nas cobertas, e ele cuidava para não acordá-la.
Ela era uma mulher disposta, já nos cinquenta mas conservada e fornida, bem ao gosto do Arrudão. Acostumada com a rusticidade da estância, não tinha fricotes e tudo estava bem, desde que o coronel mantivesse a casa limpa, a louça lavada e o chão brilhando, por isso ele andava pela casa só de meias, arrastando dois pedaços de pelego com a lã virada para baixo. O que ela não gostava era do seu nome Tertulina, registrado para homenagear seu bisavô por parte de mãe, e fazia questão de ser chamada pelo apelido dos tempos de criança. O coronel, por sua vez, a tratava por Tuinha principalmente nos momentos de mais intimidade.
A primeira providência era traçar um plano de defesa de sua propriedade que acabasse de vez com as pretensões desse bando de corvos prestes a avançar crocitantes sobre a carniça. No caso, sobre as suas terras. A divisão já estava sendo feita assim, de boca, em tom de brincadeira, como se fosse piada, mas ele sentia que havia outras intenções além da troça. Aquele trecho de mato, por exemplo, a meio caminho entre a sede e a cachoeira, com a sanga e a ponte que ele fez com tanto esmero e mais adiante um açude natural, que um sabidinho que fala javanês astutamente transformou em um prolífero criadouro de peixes, já era arvorado como seu por um doutorzinho da cidade, casca grossa de nascença, metido a entendedor de anzocas e minhóis e latifundiário em outras plagas. O mato a sanga a ponte o açude e mais o pinheiral a par da sede, azul de tão fechado, que todo ano forra as bruacas do coronel com a venda do pinhão. Seu plano secreto é monopolizar a produção desta semente e de peixes na região do Cajuru.
Um bostinha da cidade, teimoso de nascença, metido a entendedor de sofituér e choque em fio de luz e nem um pouco chegado ao trabalho pesado – meio cola fina, dizem alguns – já se acha dono de todo o fundo do campo que margeia o rio Mansinho, com o capão e a cachoeira. A cachoeira e mais a sede com a casa, o galpão, a encerrinha, o pomar, tudo. Menos as ferramentas, é claro, pois não se ajeita muito bem com elas. Anda falando em instalar teleférico nos morros e lajotar a trilha da cachoeira. Já um outro arrumadinho da cidade, olho azul de nascença, metido a entendedor de ferretas e maçanolhos e mediador de discussão em reunião de condomínio, garante que já escriturou em seu nome a entrada do mato, com aquelas árvores esguias e a trilha coberta de folhas, especial para piqueniques e pileques. A entrada do mato e mais a canhada um pouco antes, quase a par da sede e à esquerda do pinheiral que – garantiu, administradoramente – ‘... vou transformar num volumoso e profundo lago e também prolífero criadouro de espécimes aquáticos sem causar nenhum dano ou prejuízo socioambiental e esta feliz iniciativa transformará a vida marginal e será opção de renda e garantia de desenvolvimento sustentado à toda uma população ribeirinha da região da recém criada Área de Preservação Ambiental do Cajuru, antigo anseio desta comunidade!’ Tem um trecho de mato, a meio caminho entre a entrada de mato do arrumadinho e o açude do doutorzinho, com uma pequena elevação numa clareira, circundada por um terreno mais baixo que o Mansinho alaga nas chuvaradas e que depois tudo fica coberto de musgo, o chão e os troncos e as pedras. Enquanto o dia passa, o sol subindo ou descendo faz um jogo de luz e sombra dum verde que não se acredita, e quando bate o sol a pino, um verde brilhante ofusca e extasia a alma de qualquer vivente que diante de tamanha beleza tira o chapéu por respeito. Puis, também já tem dono, é um esquentadinho da cidade, açucarado de nascença, metido a entendedor de tíbias perônios e voadoras, e colocador de azulejo em fundo de açude nas horas vagas. Diz que já tem projeto e licença ambiental para transformar aquele paraíso em área protegida para a prática de estudos transcendentais e exercícios aeróbicos pulmonares contínuos. Conta com a valiosa ajuda de um sócio, um enrugadinho da cidade, estudante transcendental de nascença, metido a entendedor de ervas daninhas e suas transcendências, e esforçado lanterninha em mostras de cinema e teatro, que associou-se à ele para poder dividir o trabalho porque, como o bostinha cola fina, não é muito afeito a qualquer esforço.
Ora... – resmungou, catando as últimas migalhas sobre a mesa — ... sobraram alguns corvos que não disputam nem um pedacinho da propriedade. E tem ainda aquela ‘questã’ da escritura na Junta... Respirou fundo e recostou-se na cadeira. — Muito estranho – mastigou o coronel. Absorto em seus pensamentos deu mais uma pitada e com um piparote bateu a cinza do palheiro que caiu, junto com algumas fagulhas, dentro do olho pidão do cão à sua frente. Lembrou tarde demais o motivo do nome do cachorro! O Traíra ganiu e, de um salto, abocanhou o seu pé direito com meia joanete pelego unha encravada e tudo! Deu umas nove mastigadas, e enquanto o coronel, incrédulo, segurava o pé e um grito de dor para não acordar a Tuinha, o cão ainda levantou a pata traseira, urinou na sua perna esquerda, latiu provocante e saiu porta afora, focinho erguido, vitorioso e devidamente vingado...

06 outubro 2007

1. O Pesadelo do Coronel

(Esta é uma obra de pseudoficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto apeou devagar do rosilho. Escorregou de leve o corpo pela sela e demorou a tirar a bota do estribo. Ao livrar-se do peso, o animal sacudiu a cabeça e a crina curta. O coronel – conhecido por Arrudão pelo hábito de carregar preso à orelha esquerda um galho de arruda imenso parecendo uma vassoura – correu os olhos em volta, cuidando detalhes, contando as folhas. O nariz adunco fazia sua expressão parecer mais sombria. Ele sabia que procurava o que não existia. Nunca cogitou doar nem arrendar, que dirá repartir, mas a visão de taipas, cercas e valetas dividindo as suas terras, que o assombrara durante toda a noite e tirara seu sono, estava mais viva em sua mente do que a trilha do mato e a ponte à sua frente. O sol baixo da manhã ainda não amornara o frio da madrugada, e o capim molhado e as gotas de orvalho nas teias dos arbustos, e os pássaros acordando e o cavalo imóvel pareciam entender seu desatino e se calavam solidários. Girou o corpo vagarosamente, agora contando os galhos e os troncos e as pedras para se certificar que não existia nenhuma divisão, nenhuma estaca de demarcação, nenhum buraco aberto esperando palanque.
O pesadelo era recorrente. Algumas vezes, varava a noite aloitando com cercas e taipas que surgiam do nada e se estendiam em todas as direções e ao mesmo tempo, como cobras sibilantes, loteando matos e coxilhas e apartando o gado, enquanto uma malta de engomadinhos fantasiados com botas sanfonadas, bombachas enfeitadas, chapéus e lenços no pescoço salivavam gulosamente e esfregavam as mãos enquanto repartiam os lotes, noutras vezes mãos imensas com garras afiadas no lugar dos dedos rasgavam os campos e vazavam os rios e sangas e arrancavam árvores inteiras pela raiz, comandadas por uma súcia de geófagos famintos que riam desbragadamente enquanto invernadas inteiras e pinheirais desapareciam, deixando em seu lugar buracos enormes que ele não via o fundo; em outras, tesouras cortavam campos e morros como pano verde ordinário, retalhando suas terras em incontáveis pedaços disformes pintados de todas as cores que eram montados sem qualquer rigor como um gigantesco quebra-cabeça absurdo, formando um mapa surreal com matos dentro de mangueiras que surgiam dentro de rios que subiam morros que se equilibravam em pinheirais que cobriam estradas que demarcavam divisas que escrituravam a posse entre os seres desprezíveis daquela caterva de dissimulados que riam entre dentes enquanto pilhavam. ‘O jeito, as armas e as aparências mudam' – ruminou o coronel, 'mas não mudam os algozes que se dizem amigos, e isso não admito e não muda o objetivo que é tomar o que me custa, e isso me apavora. ’ Este pensamento pareceu acordá-lo do pesadelo. Crispou os dedos e os músculos do rosto, apertou os dentes, puxou o chapéu para perto dos olhos, e ímpetos ruins fizeram estremecer seu corpo. De cabeça baixa, mão esquerda na cintura larga, o braço direito apoiado na sela, fitou suas botas por alguns segundos sem, no entanto, vê-las e depois, como que arrependido pelos maus pensamentos, ergueu a cabeça e, de olhos fechados, encheu os pulmões com o ar frio e úmido da manhã que ainda clareava e soltou-o pela boca, devagar, procurando com isso acalmar sua angústia.
Segurou a rédea e o cepilho com a mão esquerda, apoiou a bota no estribo, deu impulso e afundou nos pelegos presos sobre a sela. O coronel tinha estatura mediana, uma já visível barriga e um formato atarracado – meio socadinho, dizem alguns. O rosilho arqueou-se e reagiu bufando e baixando e levantando a cabeça. Cutucou de leve e conduziu o animal a passo pela ponte que ele, com orgulho, havia construído para a passagem do gado e da camionete, e por onde se alcança a cachoeira pela trilha que ladeia o mato que cobre as margens do rio Mansinho.
O animal continuava a passo e ele ainda ruminava as ideias para defender sua propriedade, quando saiu do mato e teve que acostumar os olhos ao brilho do dia no campo limpo. Um leve movimento de rédeas e o rosilho estacou. Arrudão lembrou-se de uma cena fugaz, intermitente, que permeava seus pesadelos. Nela, ele se via assinando a escritura de transferência de suas terras frente a um juiz trabalhista (como sabia deste detalhe?) que ria sarcástico e entregava a escritura a alguém postado ao seu lado dizendo: — Está tudo resolvido, as terras agora são suas! Neste momento, uma horda de advogados que riam sarcásticos o cercava, e ele não conseguia ver quem recebia a escritura de suas terras.
Como se o rosilho pudesse entendê-lo, vociferou em voz alta: — Nunca, nunca! Não entregaria um palmo de terra, uma pedra que fosse, um fiapo de capim, ora, se entregaria! Afoitamente, e com fome, imaginando beber um café forte com muito açúcar e pão dormido com manteiga enquanto arquitetasse um plano infalível de defesa, puxou as rédeas para a direita e cutucou o animal com vontade enquanto o açoite estalava na anca desprevenida. O rosilho bufou relinchou retesou os quartos empinou, e estabacou o coronel de bunda no capim úmido!
Não conseguiu falar nada. Ficou ali mesmo de boca aberta sentado no chão tentando entender o que havia acontecido, enquanto o rosilho relinchava balançando a cabeça provocante, e com uma leve empinada partia faceiro a trote largo rumo à sede...