(Esta é uma obra de pseudoficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)
O coronel Gumercindo Neto apeou devagar do rosilho. Escorregou de leve o corpo pela sela e demorou a tirar a bota do estribo. Ao livrar-se do peso, o animal sacudiu a cabeça e a crina curta. O coronel – conhecido por Arrudão pelo hábito de carregar preso à orelha esquerda um galho de arruda imenso parecendo uma vassoura – correu os olhos em volta, cuidando detalhes, contando as folhas. O nariz adunco fazia sua expressão parecer mais sombria. Ele sabia que procurava o que não existia. Nunca cogitou doar nem arrendar, que dirá repartir, mas a visão de taipas, cercas e valetas dividindo as suas terras, que o assombrara durante toda a noite e tirara seu sono, estava mais viva em sua mente do que a trilha do mato e a ponte à sua frente. O sol baixo da manhã ainda não amornara o frio da madrugada, e o capim molhado e as gotas de orvalho nas teias dos arbustos, e os pássaros acordando e o cavalo imóvel pareciam entender seu desatino e se calavam solidários. Girou o corpo vagarosamente, agora contando os galhos e os troncos e as pedras para se certificar que não existia nenhuma divisão, nenhuma estaca de demarcação, nenhum buraco aberto esperando palanque.
Segurou a rédea e o cepilho com a mão esquerda, apoiou a bota no estribo, deu impulso e afundou nos pelegos presos sobre a sela. O coronel tinha estatura mediana, uma já visível barriga e um formato atarracado – meio socadinho, dizem alguns. O rosilho arqueou-se e reagiu bufando e baixando e levantando a cabeça. Cutucou de leve e conduziu o animal a passo pela ponte que ele, com orgulho, havia construído para a passagem do gado e da camionete, e por onde se alcança a cachoeira pela trilha que ladeia o mato que cobre as margens do rio Mansinho.
O animal continuava a passo e ele ainda ruminava as ideias para defender sua propriedade, quando saiu do mato e teve que acostumar os olhos ao brilho do dia no campo limpo. Um leve movimento de rédeas e o rosilho estacou. Arrudão lembrou-se de uma cena fugaz, intermitente, que permeava seus pesadelos. Nela, ele se via assinando a escritura de transferência de suas terras frente a um juiz trabalhista (como sabia deste detalhe?) que ria sarcástico e entregava a escritura a alguém postado ao seu lado dizendo: — Está tudo resolvido, as terras agora são suas! Neste momento, uma horda de advogados que riam sarcásticos o cercava, e ele não conseguia ver quem recebia a escritura de suas terras.
Como se o rosilho pudesse entendê-lo, vociferou em voz alta: — Nunca, nunca! Não entregaria um palmo de terra, uma pedra que fosse, um fiapo de capim, ora, se entregaria! Afoitamente, e com fome, imaginando beber um café forte com muito açúcar e pão dormido com manteiga enquanto arquitetasse um plano infalível de defesa, puxou as rédeas para a direita e cutucou o animal com vontade enquanto o açoite estalava na anca desprevenida. O rosilho bufou relinchou retesou os quartos empinou, e estabacou o coronel de bunda no capim úmido!
Não conseguiu falar nada. Ficou ali mesmo de boca aberta sentado no chão tentando entender o que havia acontecido, enquanto o rosilho relinchava balançando a cabeça provocante, e com uma leve empinada partia faceiro a trote largo rumo à sede...