31 março 2013

Uma Tirinha no Pedaço [vinte e cinco]

FAGUNDES & ANACLETO
Clênio Souza, artista plástico,  escultor, cartunista, poeta e desenhista, originalmente publicado em O Momento.

03 maio 2012

Jorge Amado, o retrato da Bahia

Jorge Amado nasceu em 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, em Ferradas, distrito de Itabuna (BA). Filho de Amado de Faria, fazendeiro de cacau, e Eulália Leal, é o primogênito de três irmãos. Antes que completasse dois anos, ele e a família se mudaram para Ilhéus, fugindo de uma epidemia de varíola. No litoral sul da Bahia, em meio a lutas políticas e disputas pela terra, o menino Jorge Amado ganhou intimidade com o mar, elemento primordial de sua obra. A região cacaueira também se tornou um dos cenários preferidos do autor, presente em livros como Terras do sem-fim, São Jorge dos Ilhéus e Tocaia Grande.

Com onze anos foi mandado a Salvador para estudar no Colégio Antônio Vieira onde, três anos depois, conseguiu seu primeiro emprego: repórter policial no Diário da Bahia. Em seguida, passou a trabalhar em O Imparcial. Em 1928, fundou com amigos a Academia dos Rebeldes, reunião de jovens literatos que pregavam “uma arte moderna, sem ser modernista”.

Jorge Amado filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e chegou a ser preso, quatro anos depois, em 1936, no Rio de Janeiro, acusado de participar da Intentona Comunista. Naquele ano, Jorge Amado também publicou um de seus livros mais líricos, Mar Morto, que inspirou o amigo Dorival Caymmi a compor a música É doce morrer no mar.

Na década de 50, após um turbulento período de exílio na Europa, a literatura do baiano passou a dar mais relevo ao humor, à sensualidade e ao sincretismo religioso. O livro Gabriela Cravo e Canela, escrito em 1958, marca essa nova fase que, como o escritor preferia dizer, representou “uma afirmação e não uma mudança de rota”. As mulheres inventadas por Jorge Amado consagraram-se no imaginário popular e ganharam as telas da televisão e do cinema. Nas décadas de 70, 80 e 90, os livros do autor viraram filmes e novelas.

Com um quadro clínico agravado pela cegueira parcial que o deprimiu por impedi-lo de ler e escrever, o escritor morreu em agosto de 2001, poucos dias antes de completar 89 anos. Seu corpo foi cremado e as cinzas enterradas junto às raízes de uma velha mangueira, no jardim de sua casa, ao lado de um banco onde costumava descansar, à tarde, em companhia de sua mulher, Zélia Gattai.

Centenário – Neste ano em que Jorge Amado completaria 100 anos, uma série de homenagens percorrerá o Brasil. Entre as festividades estão o filme Capitães da Areia, da cineasta Cecília Amado, neta do escritor; a peça Dona Flor e seus dois maridos, que entra em cartaz no Rio de Janeiro, e o lançamento da caixa Mulheres de Jorge Amado, uma coletânea de quatro romances do escritor: Dona Flor e seus dois maridos, Tereza Batista Cansada de Guerra, Tieta do Agreste e Gabriela Cravo e Canela. Em Salvador, Jorge Amado foi tema do carnaval de 2012 no famoso circuito Barra-Ondina. As escolas Imperatriz Leopoldinense (RJ) e Mocidade Alegre (SP) também homenagearam o escritor.
Fonte: Revista Funcef, ed 56, jan/fev12.
Ilustração: André Koehne

O mundo só vai prestar
Para nele se viver
No dia em que a gente ver
Um maltês casar 
Com uma alegre andorinha
Saindo os dois a voar
O noivo e sua noivinha
Dom Gato e Dona Andorinha”

19 abril 2012

Dia do Índio: Somos Todos Parentes?

Por Carlos Henrique Magalhães e Silva

Minha mãe é uma índia da etnia Wapixana, nasceu na maloca do Xumina, ao lado da maloca da Raposa, no extremo leste da Terra Indígena da discórdia entre brancos e índios: a Reserva Raposa – Serra do Sol, em Roraima, que ganhou espaço na mídia nacional por virar objeto de antagonismo entre partes envolvidas e interessadas e outras nem tanto! Digo isso porque a discussão envolveu, na época, inclusive pessoas cujo único propósito era a autopromoção.

Quando me pego refletindo sobre isso é porque carrego, talvez, um sentimento de culpa de não ser completamente solidário com a causa indígena e porque talvez o que restou de índio em mim corresponda somente à carga genética que herdei. Minha mãe ainda cultiva alguns costumes completamente compreensíveis de sua ascendência, apesar de hoje já ser inteiramente urbanizada. Ainda gosta de comida apimentada ao extremo, comer carne de sol com xibé (farinha de mandioca misturada com água ou leite) e peixe todo santo dia, entre outros; mas também gosta da programação da TV por assinatura, que julga mais divertida, e nem pensa numa vida sem luz elétrica e água gelada. Será que existe algum problema nisso?

Li recentemente uma reportagem onde um dos seguidores dos irmãos Vilas Boas relata que após uma ausência de 15 anos voltou ao Xingu e se surpreendeu com os antigos amigos índios em roupas “brancas”, camisas e calções da Seleção Brasileira de futebol, e perguntou: “Vocês abandonaram seus costumes de andarem nus e agora vestem as roupas dos homens brancos?” e lhe responderam: “E você, porque não usa mais as roupas do tempo de Cabral?”. Creio que o amigo índio quis dizer é que não existe nada de corrupto em assimilar algo que lhe traga mais conforto. Uma coisa é a preservação dos costumes e da cultura, da medicina, da culinária, dos ritos festivos e crenças, etc., e outra completamente diferente é abrir mão do crescimento que vem da miscigenação e do usufruto daquilo que queremos e gostamos. Não existe nada de errado em usar o Google ou outro meio de pesquisa da Internet e nem em ter opção de escolha na programação da TV por assinatura.

Sou suspeito, no entanto. Ao mesmo tempo em que me apego ao sentimento preservacionista do índio insistente em mim, não consigo abrir mão das benesses da urbanidade. Meu espírito sangra com as notícias de não sei quantos campos de futebol de matas virgens dão lugar às plantações mecanizadas por dia, que assisto nos telejornais, porque estou convicto que poderíamos viver com menos. Já pensaram que existem plantações de arroz na China que são do mesmo tamanho há milhares de anos?

Não tenho nenhuma dúvida de que os nativos brasileiros têm paixão pela sua terra, e que cuidam dela com muito mais zelo que a maioria. Isso é próprio do indígena: pescar só o que vai consumir, preservando os estoques pesqueiros na certeza de aquilo poderá faltar no futuro caso seja explorado em demasia; caçar só o suficiente para o sustento da família, na firme certeza de agindo assim suas fontes de proteínas estarão garantidas; desmatar somente a parcela que a natureza não reclamará, enfim, se orientar pela certeza que seus descendentes também têm o direito de usufruir dos recursos naturais que ele mesmo já desfruta. Isso não é a ideia de Sustentabilidade?

Ainda não me dei por derrotado. Sou naturalmente otimista! O respeito que tenho por essas ideias me guia na certeza que podemos fazer algo melhor por nosso planeta. Que poderemos dormir mais tranquilos sem ter pesadelos com tsunamis, enchentes, quedas de barreiras, neve nos trópicos e toda sorte de esquisitices de alterações climáticas (e tudo resultado da intervenção desajeitada do homem). Poderemos sonhar com um futuro melhor se ressuscitarmos o espírito preservacionista que um dia todos tivemos, resgatarmos o índio primitivo de cada um, pois se eles estavam aqui antes de todos, é razoável pensar que de algum modo todos somos parentes. Enfim, ser um pouco índio todo dia e não somente no dia 19 de abril.

Carlos Henrique Magalhães e Silva é gerente geral da Agência Asa Branca, da Caixa Econômica Federal, em Roraima.

Publicado in: Jornal da Caixa (intranet).

08 março 2012

Uma Tirinha no Pedaço [vinte e quatro]

FAGUNDES & ANACLETO
Clênio Souza, artista plástico,  escultor, cartunista, poeta e desenhista, originalmente publicado em O Momento.

19 fevereiro 2012

11. O Coronel e as Certezas da Vida

(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto deu um pulo para trás tamanho o susto que levou. Não fosse a parede de tábuas do galpão teria se estatelado na mangueira. Engasgou com o baque.
— Que foi que você disse? – gaguejou, com o queixo tremelicando e as pernas frouxas.
Du bist zu dick, schmerzt mein Rücken, Rufen sie die roan!1 – repetiu, impaciente, a Cheirosa.
— Ai, minha Nossa Senhora do Bom Parto! Você está falando?!?! – o coronel estava com falta de ar.
Und wer noch?2 – bufou, olhando para os lados.
— Tetê! Tetê! Me acuda, mulher!
— Ela disse que você precisa emagrecer. Vai ter que encilhar o Rosilho. – disse o Traíra lá de dentro do galpão.
— Ah! É? E como é que você sabe, seu espertinho? Por acaso você fala esta língua esquisita?
O coronel nem se deu conta que estava falando com um cachorro.
— Esta língua esquisita é alemão, coronel. E sim, eu falo alemão.
— Ah! É? E posso saber onde foi que você aprendeu alemão?
— Na escola, coronel. Onde mais?
O coronel baqueou de vez, e desabou num banquinho com os olhos arregalados, arritmia e tremelique, balbuciando:
— Mas... mas... mas você também fala? Tetê! Tetê! Corra, mulher, acuda aqui! Ai, minha Santa Bárbara Manjerona, é o fim do mundo!
— É São Gerônimo...
— Uquêêê? – esganiçou o coronel, escorregando de lado no banquinho.
— São Gerônimo! Santa Bárbara e São Gerônimo! – corrigiu o Traíra.
O coronel desabou, e ficaram os dois com os pés pra cima. Ele e o banquinho.

Acordou com o Traíra e a Cheirosa decidindo quem ia chamar o primo Ptolomeu, vizinho do Arrudão e veterinário afamado.
— Eu tô bem, não precisa chamar veterinário... – levantou-se com as mãos nos quartos, gemendo – e vamos esclarecer direito essa história. Que raio de escola é essa? Onde é que fica?
A cor já estava voltando, e quase nem tremelicava.
— Ah! Fica logo ali, no caminho para a cachoeira, não tem como errar!
— Pois quero ver com meus próprios olhos. Traíra, traz o Rosilho aqui para eu encilhar!
— Olha, coronel, talvez não seja uma boa hora prá... 
— Não é boa hora prá que, cão?
— É que o Rosilho está na lagoa agora, e não gosta de ser incomodado... – disse o Traíra, se afastando de lado.
— Rosiiilho! – berrou o coronel — Mas credo, era só o que faltava agora, bicho ter hora prá ser montado! Rosilho! Vem já aqui, animal!
Calm down, scream is bad for your health, and to my ears!3 – já veio dizendo de longe o Rosilho.
— E agora, o que é isso? O que ele disse? – perguntou ao Traíra, como se o cão tivesse a obrigação de traduzir tudo o que os outros bichos diziam.
— É inglês, coronel, e ele disse que gritar não é legal.
— Inglês? Você sabe inglês também? Ai, meu Santo Onofre, vou ter um troço!
And then, my tasty filly! Are you fine?4 – o Rosilho fungou no pescoço da Cheirosa, que retribuiu o dengo rindo baixinho, maliciosa.
Ich bin besser, meine Hengst schamlose!5
— E agora? – perguntou, jogando o baixeiro no costado do Rosilho.
— Ãh... melhor não saber, coronel.

Descendo a trilha em direção ao mato, encontraram a Quilemeio subindo.
Via libera Im ascensus!6
— E aí, Traíra... vai esperar que eu pergunte?
— É latim, coronel. Quer que a gente saia da frente para ela poder subir.
— Latim? Mas... mas ela é uma vaca! Uma vaca, falando latim! – explodiu o coronel – Ah! Nãão! E você também fala latim?!?! E aprendeu na mesma escola! Ai, minha Santa Gertrudes, proteja as minhas coronárias!
Longum erit?7 – perguntou a Quilemeio, plantada no meio da trilha.
— Ela está com pressa, coronel.
— Pois ela que saia do caminho, ou dê a volta!
Primatus est ascendere!8
— Ela invocou uma lei de trânsito. E nem é estudante de direito...
O coronel Arrudão desistiu de discutir com a Quilemeio, afinal, era só uma vaca... Saiu da trilha para ela passar, e depois continuou a descida calado. Aquilo não podia estar acontecendo, vaca não fala latim, deve até ser pecado, já imaginou o que o padre vai dizer quando ele contar a história?
— Vou ser excomungado! – suspirou.
סגור9
O coronel se assustou, e retesou a rédea, fazendo o Rosilho escorregar as patas no barro da trilha estreita. Só olhou para o Traíra, que entendeu o recado.
— É hebraico, coronel. Ele é o porteiro, e disse que a escola está fechada!
— Porco, falando hebraico? Justo um porco? Não falta mais nada... ai, minha úlcera duodenal, valei-me meu São Policarpo! Que estrovenga é essa aí na frente? E cadê o morro que tinha aqui? O que é que...
אם אתה רוצה לדבר עם המנהל שוב בשבוע הבא. אחר הצהריים.10
Foi interrompido pelo porco com voz de locutor constipado.
— É para o senhor voltar na semana que vem para falar com o diretor. É que ele viaja muito, sabe como é...
— Não, Traíra, eu não sei como é... E quem disse que eu quero falar com o diretor? Nem sei quem é esse cara! Aliás... quem é esse cara?        
— Amigo seu, coronel, o sabidinho q...
— O sabidinho que fala javanês?!?! – atropelou o coronel. – Foi ele que fez isso aí? – e apontou com o queixo e o beiço esticado a muralha cinzenta de salpico grosso de três metros e meio de altura e ornada com uma espiral de arame farpado em toda a extensão, com um portão de ferro de duas folhas, fechadas à solda com chapa metálica antimíssil, com três dobradiças em cada lado e cinco trancas reforçadas, cada uma com um cadeado maior que o outro, encimado por uma câmera de segurança mirando o narigão do Arrudão, na frente de onde o porco se postava qual guarda da rainha britânica, com o queixo levantado e um molho de chaves imensas pendurado num cinto militar que quase cortava em dois seu barrigão pelado cor-de-rosa.
— “Isso aí”, coronel, é a escola.
— Mas como pode ser? Aqui tinha um morro, agora tá achatado feito um campo de futebol! E quem plantou aqueles eucaliptos lá fechando a trilha da cachoeira? Falando nisso... como é que eu vou para a cachoeira agora?
 הבמאי צריך לחכות שוב. בשבוע הבא. אחר הצהריים.11
— Tem que passar pela escola, coronel, é só pagar uma taxinha prá ir, outra prá voltar. Mas o porco só libera depois de falar com o diretor. Semana que vem.
O Arrudão entrou em parafuso, bufou e corcoveou, enquanto despejava impropérios dirigidos ao mundo inteiro, incluindo o porco, o Traíra e o sabidinho, e esbravejava espalhando perdigotos:
— Como assim pagar para usar a trilha da cachoeira? É a minha cachoeira!! Com que autorização o sabidinho acabou com o morro? É o meu morro!! Quem mandou ele erguer este muro horroroso? É o meu terreno!! O que que ele...
— O senhor vendeu o morro pro sabidinho, coronel. Não lembra mais? – interrompeu o Traíra, enquanto tentava desviar da baba do Arrudão.
— Como assim vendi o morro? Como assim vendi o morro? Não vendi o morro coisa nenhuma!! – estava quase em pé na sela – É bem capaz mesmo que eu vou vender o morro, seu... seu... mas nem que a vaca tussa em latim vou me desfazer de um palmo que seja das minhas terras!! Nunca, nunca, eu prefiro a morte, prefiro a mor...

— Marido, acorda! Acooorda!! Que gritaria é essa? – assustou-se a Tetê com os gritos e chutes do Arrudão, embolado no tapete – Quié que tá fazendo aí no chão, homem? Eu te avisei que torresmo na janta só pode dar em pesadelo! – ralhou enquanto se protegia com as mãos dos perdigotos que voavam em sua direção.
— O morro... a vaca... – o coronel suava de esguichar, sentado no chão piscando os olhos estralados no pretume do quarto enquanto gaguejava e babava com os beiços tremendo.  
— O quié que tem a vaca? – perguntou a Tetê.
— O morro... o morro tá achatado... eu vendi o morro pro sabidinho?? Me diga, vendi, vendi?? Ele achatou o morro... tem uma escola de bicho... o Traíra dá aula...  tem eucalipto na trilha... tem muro farpado... não passa nem formiga... tem que pagar prá ir na cachoeira... prá voltar também...  os bichos tudo falam que nem a gente... e a vaca... a vaca...
— O quié que tem a vaca, homem? – insistiu a Tetê.
— A vaca fala latim!
A dentadura acertou bem no meio da testa do Arrudão, que quase se afogou com a água do copo que a Tetê juntou da mesinha de cabeceira e jogou no seu rosto prá ver se ele acordava do pesadelo. 
—  Fale coisa com coisa, homem, não estou entendendo nada!

E o coronel Arrudão descreveu, no atropelo, ainda soluçando e tentando controlar a respiração depois da dentadurada, o sonho que teve com os bichos da estância.
— Vendi ou não vendi Tetê? Já não sei mais o que eu fiz, tô muito confuso, Tetê, me ajude... – implorou, com os olhos arregalados.
Então a Tetê puxou o coronel de volta para a cama e o aninhou em seu colo, como uma mãe a um filho carente.
— O seu primo Ptolomeu gosta muito das terras dele, não é mesmo?
— Quê? – soluçou.
— Seu primo. Tem um amor muito grande pela terra, não tem?
— Nossa... demais, Tetê. Ele nem me deixa ajeitar a estrada com máquina porque pode estragar o campo! Mas o que tem a ver o meu primo com...
— Você acha que algum dia ele plantaria pinnus nos campos onde as vacas dele engordam?
— Jamais, mulher, jamais. Ele morre antes que isso aconteça.
— Pois o seu amor pela sua terra é muito maior, marido! Eu sei, e todo mundo também sabe, que você não venderia sua terra a ninguém, um pedacinho que fosse por dinheiro nenhum no mundo.
— Um pedacinho que fosse... – repetiu o coronel, já ressonando.
— Então, marido, sossegue. Os campos do seu primo já estariam cobertos de pinnus antes que você sequer pensasse em vender um palmo desta terra que você ama tanto – e o coronel aninhou-se no colo da Tetê. – Sossegue, marido, sossegue, foi só um pesadelo.

A Tetê acordou assustada com a campainha estridente do telefone quase no seu ouvido, e derrubou o fone dentro do penico ainda vazio.
— Alô! – grunhiu.
— Quem? – rosnou.
— Não, é claro que eu não estou bem! Isso são horas prá assustar os outros? Você sabe que horas são? Você não dorme aí onde voc... – Aqui ainda é madrugada
O marido teve um pesadelo... e você estava nele!
— Quem é? – bocejou o Arrudão.
— É o sabidinho, lá de não sei onde – e passou o fone.
— Fala, sabidinho... Quê? Não, não apareceu ning... Trator de esteira? Vai fazer o que no morro? Hmmm... Vai ladrilhar até onde? Unhum... Não, não, tudo bem, agora é teu mesmo... Caçamba do quê? Ahh... Sei...
— Puis... Olha, sabidinho, não sei se a caçamba chega... Se bem que... Dá pra gente usar o trator de esteira pra arrumar o morro? Sabe como é, tão cortando os pinnus do Ptolomeu, e os caminhões acabaram com a estrada!

Glossário:

1- Você está muito gordo, minhas costas doem, chame o Rosilho!
2- Quem mais seria?
3- Acalme-se, gritar faz mal para a sua saúde, e para os meus ouvidos!
4- E aí, minha potranquinha gostosa! Você está bem?
5- Já estou melhor, meu garanhão safado!
6- Sai da frente, que eu estou subindo.
7- Vai demorar muito?
8- A preferência é de quem sobe!
9- Está fechada!
10- Se querem falar com o diretor, voltem semana que vem. Período da tarde.
11- Tem que esperar o diretor voltar. Semana que vem. Período da tarde.

06 janeiro 2012

Uma Tirinha no Pedaço [vinte e três]

FAGUNDES & ANACLETO
Clênio Souza, artista plástico,  escultor, cartunista, poeta e desenhista, originalmente publicado em O Momento.

26 novembro 2011

Cinco Patas a Menos!


Este texto é uma atualização deste aqui. Foi necessário escrevê-lo para atualizar a quantidade de bichos, que às vezes por aqui, duma hora para outra, muda rapidamente. A gatinha branca manchada de amarelo e preto, que ainda era uma criança mas já estava maior que a mãe, nem três semanas depois daquela postagem morreu atropelada em frente à nossa casa. Fato, aliás, que já virou rotina, afinal, não há como confinar um gato numa casa, e nem o faríamos, se fosse possível. Nossos bichanos têm total liberdade para entrar e sair de casa e do terreno, para passear na rua ou nos telhados da vizinhança. Eles sabem que a qualquer tempo sempre haverá uma porta ou fresta de janela abertas, um canto sossegado e um prato com ração e água à disposição. Com exceção do Pepe, que foi espantado pelos cachorros, e um ou dois que sumiram sem se despedir, todos voltam e permanecem conosco até morrerem de velhos, ou... atropelados!

Essa realidade merece atenção. Com o passar dos anos, a observação do comportamento de dezenas de gatos, e mais recentemente, de dois cachorros que se associaram aos gatos na propriedade da nossa casa, fez-me elaborar a seguinte tese: gatos não sabem atravessar rua!

Duvida?

Pois eu sustento que não importa o tamanho, ou o movimento, ou o tipo de calçamento, atravessar uma rua é uma odisséia para os gatos. É algo acima de seu entendimento, uma atitude temerária e reprovada até mesmo pelos anjos da guarda felinos, um instante em que nem a lei das sete vidas vigora. Na verdade, é o instante em que ela é mais frequentemente derrogada. Não digo que eles são burros, não, pelo contrário. Está mais para alienação, ou incapacidade de raciocínio à beira de uma calçada. Funciona assim: o gato decide que o outro lado da rua é o paraíso, onde pululam ratos gordinhos em tocas feitas de queijo, e tenros filhotes de passarinho se oferecem em rasantes suicidas. No momento que ele pisa no meio-fio, acontecem duas coisas. Primeiro, um bloqueio mental, quando o candidato a omelete fica surdo e só enxerga o outro lado da rua e, em seguida, o anjo da guarda se arrepia e grita enquanto volta correndo prá dentro de casa:
— Vai atravessar? Tô fora, maluco!

Cachorros são diferentes. Claro, se bobearem também são atropelados, mas eles se cuidam mais. Normalmente olham para os lados e esperam os carros passarem. Mesmo aqueles mais tansinhos, que se atiram de qualquer jeito rua adentro, ao perceberem qualquer outra coisa que represente um perigo desviam, ou estaqueiam, ou voltam, ou aceleram, tentando evitar o atropelamento. Quase sempre dá certo.

Gatos, não!

Naquele instante do bloqueio mental e a fuga do anjinho, o omelet... quer dizer, o gato está surdo e só enxerga o outro lado da rua, lembram? Então. Nada mais no mundo importa, ele só sabe que tem que chegar do outro lado, que ele vê como se olhasse por dentro de um tubo, nada mais no mundo existe, apenas aquela rua entre ele e os ratos e o queijo e os filhotes, aí ele se atira em direção ao paraíso, se descabelando numa correria desatinada que só termina lá do outro lado... quando não fica pelo caminho, claro! E quando esta correria começa ainda de dentro do terreno, a travessia vira uma roleta russa, e as chances de virar omelete aumentam consideravelmente.

É ou não tese de doutorado? Alguém se habilita?

E como um atropelamento só é pouco...
No aniversário da filha mais nova, numa terça-feira à noite do início de outubro, a mãe desta gatinha atropelada, uma gata nanica preta com manchas brancas, irrequieta, zanzou entre nós o tempo todo. Na quinta-feira, dei-me conta que não tinha mais visto a gata desde então. No sábado, demos a gata como desaparecida de vez. Mas, na madrugada de domingo, ao chegarmos em casa vindo de um jantar, encontramos os cachorros alvoroçados sob uma janela. No lado de fora, entre o vidro e a grade de ferro, estava a gatinha, enrolada, quieta, com os olhos arregalados. Ao trazê-la para dentro de casa, nos deparamos com um ferimento aberto, enorme, logo acima da pata traseira encolhida, e com um osso quebrado saltando para fora conforme o movimento que o bicho fazia. Nenhum gemido, apenas os olhos arregalados.

Foi medicada e permaneceu em observação na clínica veterinária até na terça-feira seguinte, para ver se reagiria aos antibióticos. O osso quebrado, o fêmur, já estava morto. Na quarta-feira, já mais forte e com a infecção sobre controle, teve sua pata traseira esquerda amputada.

O que aconteceu com ela nunca saberemos ao certo. Supomos que tenha sido atropelada na terça, na noite do aniversário, e o ferimento ter sido causado pelo choque com alguma saliência do assoalho do carro. Onde ela ficou até no domingo de madrugada não sabemos, nem o que passou para evitar os cães que infestam nossa rua. Provavelmente buscou um lugar alto, pois o cheiro do ferimento a denunciaria facilmente. Nem os nossos cães, que todos os dias saem à rua e frequentam os terrenos baldios em frente à nossa casa, a encontraram. E só imaginamos o esforço e a dor para sair do seu esconderijo e voltar à nossa casa e, mais que isso, conseguir subir até a soleira da janela passando pela grade de ferro.

Apesar da agonia de ver um bicho mutilado tentando retomar sua rotina, impressiona sua capacidade de adaptação à nova realidade. Continua irrequieta e caiu algumas vezes, mas rapidamente vai conseguindo saltar e correr, desviando de cadeiras e pés de mesa, com a mesma agilidade de sempre. A única diferença mais visível, além da pata faltando, é que parece mais quieta que o habitual. O miado, raro, é pouco mais que um sopro. Ah, sim! E com uma pata a menos ficou um pouco mais nanica que antes!
Fotos: Francis
Ilustração: Colafina

21 agosto 2011

Uma Tirinha no Pedaço [vinte e dois]

FAGUNDES & ANACLETO
Clênio Souza, artista plástico, escultor, cartunista, poeta e desenhista, originalmente publicado em O Momento.

06 julho 2011

Moacyr Scliar, Entre o Humanismo e o Realismo Literário

"Acredito, sim, em inspiração, não como uma coisa que vem de fora, que 'baixa' no escritor, mas simplesmente como o resultado de uma peculiar introspecção, que permite ao escritor acessar histórias que já se encontram em embrião no seu próprio inconsciente e que costumam aparecer sob outras formas – o sonho, por exemplo. Mas só inspiração não é suficiente."

A opinião é do médico e escritor, Moacyr Jaime Scliar, que desde pequeno lia sobre medicina e dizia que em sua casa poderia até faltar comida, mas livro, jamais! Pelas ruas de Bom Fim, em Porto Alegre (RS), era conhecido como o 'menino-escritor'. Aos sete anos escreveu uma autobiografia em papel de embrulho de pão, mas ficou frustrado ao ver que a história não cabia em meia folha.

Filho de imigrantes russos, Scliar nasceu no dia 23 de março de 1937, em Porto Alegre. Foi alfabetizado pela mãe, que era professora primária, e em 1943 passou a estudar na Escola de Educação e Cultura. Em 1955 começou o curso de Medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde se formou, em 1962. Ainda na graduação, publicou Histórias de um médico em formação e, em 1968, O carnaval dos animais, que ganhou prêmio da Academia Brasileira de Letras.

Moacyr Scliar iniciou a carreira em 1963, com a residência em clínica médica. Trabalhou no Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência (SAMDU), de Porto Alegre. Passou a atender os desassistidos da cidade e lutou contra a tuberculose, muito comum à época. Essa experiência o ensinou a lidar com a dor e a esperança. Mesmo cuidando da saúde do povo, Scliar não parou de escrever, tornando-se, em 1993, professor visitante da Brown University (no Departamento de Português e Estudos Brasileiros e na Universidade do Texas, nos EUA).

Devido ao seu caráter humanista, o escritor tinha fama de comunista sem nunca ter se filiado a nenhum partido. “Sou incapaz de fazer mal a uma mosca. Posso ser bonzinho na vida real, mas não na literatura. O escritor tem que assumir a sua crueldade e não mascarar a realidade com finais felizes”, dizia.

Autor de 74 livros entre romances, contos, ensaios, crônicas, ficção, infanto-juvenil e textos para imprensa, Scliar deixou um legado que marcou fortemente a literatura brasileira na segunda metade do século 20. O escritor ocupou a cadeira nº 31 da Academia Brasileira de Letras. Em sua carreira, ganhou vários prêmios, entre eles: Brasília (1977), Mário Quintana (1999) e Jabuti (1988, 1993, 2000 e 2009).

O médico-escritor faleceu em 27 de fevereiro de 2011, em Porto Alegre, aos 73 anos,vítima de um acidente vascular cerebral.
Fonte: Revista Funcef, ed 52, mai/jun11.



Lágrimas e testosterona
(Último texto, publicado no caderno Ciência, 7 de Janeiro de 2011)

Atenção, mulheres, está demonstrado pela ciência: chorar é golpe baixo. As lágrimas femininas liberam substâncias, descobriram os cientistas, que abaixam na hora o nível de testosterona do homem que estiver por perto, deixando o sujeito menos agressivo. Os cientistas queriam ter certeza de que isso acontece em função de alguma molécula liberada — e não, digamos, pela cara de sofrimento feminina, com sua reputação de derrubar até o mais insensível dos durões. Por isso, evitaram que os homens pudessem ver as mulheres chorando. Os cientistas molharam pequenos pedaços de papel em lágrimas de mulher e deixaram que fossem cheirados pelos homens. O contato com as lágrimas fez a concentração da testosterona deles cair quase 15%, em certo sentido deixando-os menos machões.  (Continua aqui).

30 junho 2011

Uma Tirinha no Pedaço [vinte e um]

FAGUNDES & ANACLETO
Clênio Souza, artista plástico,  escultor, cartunista, poeta e desenhista, originalmente publicado em O Momento.