29 outubro 2010

Era uma vez...

...o zeloso pai de uma pura mocinha, que astutamente capturou o audaz mocinho que audaciosamente escalava a inexpugnável torre do inexpugnável castelo na inexpugnável montanha para uma inesquecível noite de tórrido romance com a quase virginal donzela.

O incauto amante foi impiedosamente jogado numa fétida masmorra e covardemente pendurado por pesadas correntes na úmida parede de sombrias pedras, onde dolorosamente passou o brevíssimo resto da sua brevíssima vida de desafortunado ex-quase-genro.

Esqualidamente nem bem morto nem muito vivo, em concorrida comemoração à intocada honra da empoeirada princesa, teve suas mirradas costelas saborosamente temperadas e cuidadosamente espetadas num curioso paliteiro e lentamente assadas no apinhado pátio do real castelo e vorazmente roídas pelos esfomeados súditos do seu cruel ex-quase-sogro.

Fim.
Foto: Raquel Cesário, publicada aqui.
Recorte&Edição: Colafina.

14 setembro 2010

10. O Coronel e seu Cavalo Gancho, Aquele Mal Educado!

(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto mateava pensativo, lagarteando ao sol outonal de uma manhã de domingo, sentado no banquinho de madeira presente do seu compadre com as pernas cruzadas esticadas e as costas apoiadas na parede de tábuas do galpão. Olhava o vazio enquanto o brilho morno esquentava as pedras da calçada estreita e os pés sem meia sobre os chinelos de couro. Nem percebeu a Tetê chegar trazendo outro banquinho que ajeitou nas pedras irregulares, e sentar-se ao seu lado com um suspiro sonolento.
— Quié que tá tão quieto, marido? – perguntou enquanto enchia a cuia ainda na mão do coronel.
— O Gancho entende o que eu falo... – deixou a frase no ar, quase um sussurro, o olhar ainda longe.
— Ora, é claro que entende. É um cavalo velho, está aqui desde potrilho, tem que entender...
— Mas não assim, Tetê, essas coisas de todo dia, que os bichos aprendem pelo costume. Não estou dizendo isso. Estou dizendo que o Gancho entende as palavras, as frases, as coisas que a gente fala...
— iiih... A troco do quê isso agora?
— Eu nunca me dei conta disso. Mas ontem à noite, enquanto a gente proseava ali no galpão com o primo Ptolomeu, lembra? O Gancho tava ali fora perto do galpão. Continuamos proseando depois que você foi deitar, entre um palheiro e outro, até quase meia noite. Puis, quando me dei conta o Gancho estava com o pescoço todo prá dentro do galpão, por cima do portão, e acompanhava a conversa olhando prum lado e pro outro, acompanhando quem estava falando. Volta e meia balançava a cabeça pra cima e pra baixo concordando com o assunto, às vezes pros lados, decerto dizendo que não era bem assim, sei lá. Não comentei nada com o primo pra ele não pensar que eu estava variando. Te juro, Tuinha, ele até ria com os causos mais engraçados...
— Mas que bobagem, homem, é bem capaz mesmo um bicho entender as palavras! Rir de piada, então, era só o que faltava... É melhor mesmo não falar com mais ninguém sobre isso, vão querer te internar!
Levantou-se rindo.
— Vou dar milho para as galinhas. Se mexa, senão daqui a pouco o pessoal chega e não tem nada arrumado...
Aquele domingo prometia ser movimentado.

Ali pelas nove e meia chegaram o arrumadinho de olho azul, o esquentadinho da cidade e o doutorzinho casca grossa, todos trazendo suas respectivas famílias incluindo cachorros, genros e noras. O enrugadinho transcendental apareceu trazendo a namorada nova e, de carona, o engatadinho tântrico que há tempos andava desaparecido. Segundo seu relato, que durou seis horas sem parar, andou por lugares incertos e impróprios para menores atrás de novas experiências tântricas, místicas e esotéricas, e que numa dessas andanças encontrou um chazinho maneiro com cor de água suja que é ótimo para limpar o trato digestivo, desde a entrada até a saída. O único problema, disse ele, é que depois você não lembra muito bem como é que as coisas aconteceram. Fora isso, tudo bem.

O bostinha colafina chegou mais tarde pra parecer mais importante que os outros só porque tem a chave do portão. O sabidinho que fala javanês, vindo da Groelândia, não apareceu porque teve que ir atrás da bagagem dele que foi despachada pro Zimbábue, na conexão em Cochabamba. Um dia, quem sabe, ele consegue chegar à estância.

Depois do churrasco assado pelo Vassourinha embebido em água de privada – o Vassourinha, não o churrasco – e muita cerveja no ponto, o povo todo esparramou-se no gramado pra aproveitar o sol uns, e curar a ressaca outros. Bem perto, o Gancho pastava absorto a grama curta. A conversa corria solta e sem compromisso até que um daqueles genros arriscou:
— Seu coronel, podemos dar umas voltas a cavalo?
— Mas é claro. Vassourinha, encilha o Gancho pro vivente aqui...
O cavalo trocou orelhas pressentindo a roubada que se avizinhava.
— Me leva na garupa, amor? – suplicou dengosa a filha correspondente ao genro aquele.
O Gancho arregalou os olhos e parou de mastigar, mas com os beiços ainda roçando o capim ralo. O coronel percebeu a reação e fez um sinal com a cabeça para a Tetê, e ficaram os dois olhando atentos o animal.
— Também quero andar nele! – guinchou um guri gordinho.
Levantou a cabeça e uma das patas dianteiras deslizou devagar para trás. Nem respirava.
— Depois sou eu! – determinou um dos esparramados.
O bicho deu um passo atrás já olhando pro lado.
— Tô na vez! – alertou outro, coçando o barrigão.
A passo lento, meio disfarçado e olhando de revesgueio, o cavalo velho começou a se afastar, e o jeitão dele chamou a atenção dos amigos do Arrudão, que também ficaram cuidando do Gancho até chegar em frente ao portão.
— Prondié que ele tá indo, tio? – guinchou de novo o gurizote.
— Prá lugar nenhum, piá, não tá vendo que o portão está fechado?

Então, todos os olhos se voltaram para o cavalo parado em frente ao portão que estava fechado. Ele olhou devagar para trás como se pedisse “– Me deixem sair daqui!“. Como ninguém se mexeu, voltou novamente a cabeça, e sob a clara luz do sol daquele dia de céu limpo todos testemunharam boquiabertos o Gancho enfiar o focinho entre as duas tábuas mais de cima, abocanhar a travessa com os dentes, levantá-la até desencaixar da trava no palanque, deslizá-la para o lado liberando o portão, depois soltá-la e, com todo cuidado, tirar o focinho dentre as tábuas e dar uma olhada rápida para trás, como se desdenhasse “– Tudo bem, eu mesmo abro!“. Ainda de queixos caídos, viram o Gancho empurrar de leve o portão com a testa, passar para o lado de fora e começar a subir a passo em direção ao capão da Santinha. Lá em cima do morrote o Gancho parou, virou-se para o bando de pasmados, relinchou debochado, deu meia volta, empinou o rabo e o topete e saiu a galopito, rindo descaradamente da fila de trouxas que esperavam um cavalo para passear, como se dissesse “– Eu, hein? No meu lombo não, violão!”.

Há quem diga que nem o coronel acreditou no que o Gancho tinha acabado de fazer, mas a Tetê desconversa e não confirma! A verdade é que o coronel nunca tinha visto mesmo o Gancho fazer aquilo. Mas... ele era o coronel Arrudão!  Conversador incansável desde nascença e exímio contador de causos acontecidos e outros nem tanto, é claro que não ia deixar escapar uma chance dessas de reforçar a fama que o precedia em toda a região da Coxilha Rica e dos Campos da Vacaria. Aprumou o queixo caído e, se fazendo de nervoso, deu alguns passos na direção do cavalo que chispava faceiro campo afora, estaqueou e virou-se com as mãos na cintura apontando o narigão adunco para a Tetê:

— Tetê, precisamos ter uma conversa séria com o Gancho, aquele mal educado! Não é que ele deixou o portão aberto... de novo?

31 agosto 2010

Uma Tirinha no Pedaço [treze]

FAGUNDES & ANACLETO
Clênio Souza, artista plástico, escultor, cartunista, poeta e desenhista, originalmente publicado em O Momento.

18 agosto 2010

Banzai, filho do Tigre

Nossos filhos, ainda pequenos, encontraram debaixo de uma pilha de tábuas o filhote de gato que miava em desespero desde o dia anterior. Era o mais legítimo representante dos vira-latas felinos. Cinza encardido e listrado, parecendo um filhote de tigre. Mais comum impossível. E o batizaram de... Tigre!

De uma feita, logo que se tornou adulto, fugiu da clínica veterinária para onde foi levado para se tratar de uma pereba qualquer. Onze dias depois, com as crianças já resignadas com a sua falta, reapareceu na porta da nossa casa miando gemido, magro, estropiado e descabelado. Recuperado e paparicado, tornou-se um gato enorme, chegando a pesar quase cinco quilos, e com a Lelé, uma gata pequena, cinza encardido e listrada, tiveram três filhotes, todos cinzas encardidos e listrados. Receberam o nome das hienas do Rei Leão, Ed, Banzai e Shenzi. Não lembramos mais como o Tigre saiu de nossas vidas, mas a Shenzi, tal como o pai, fugiu da mesma clínica, só que nunca mais voltou. Ed simplesmente sumiu de casa, provavelmente correndo atrás de algum rabo peludo, e também nunca mais voltou. O Banzai nunca fugiu, nem mesmo da clínica, paciente assíduo que era.

Nosso relacionamento era amistoso, mas arredio. Tínhamos um trato, eu não o incomodava muito, e ele me ignorava. Da dona da casa e das crianças aceitava bem os cafunés e ficava por perto, quando queria. Em alguns momentos, chegava a ser carinhoso e ronronava até cochilar encostado em alguma delas, noutros deixava numa bochecha ou pescoço a marca das unhas quando exageravam nos carinhos. Banzai nunca foi o único gato do pedaço, mas era o mais fiel, e ao mesmo tempo o mais independente de todos os gatos nos quais eu tropeçava pela casa toda.

Teve vários filhos, e sobreviveu a dois atropelamentos. Um de fato, pelas rodas do nosso carro na rampa da garagem, e que lhe custou a fíbula direita, e outro por suposição, depois de passar várias dias andando de lado, gemendo e mancando. Levou uma vida devassa, de arruaças constantes e brigas homéricas de acordar a vizinhança, e que no dia seguinte obrigavam a dona da casa levá-lo ao veterinário para ser medicado e costurado. Tantas lanhadas e mordidas renderam-lhe um incômodo emaranhado de cicatrizes sob o pelo. Com o tempo ele aos poucos foi sossegando, e ao chegar à terceira idade a maturidade falava mais alto que o ímpeto de macho dominante, e passou a preferir o conforto do sofá ao entrevero noturno nos quintais alheios. No inverno, dormia na porta aberta do forno do fogão enquanto estivesse ligado. Depois, tomava o rumo da nossa cama onde dormia até amanhecer.

Acabamos esquecendo o antigo trato e, de arredio, nosso relacionamento passou a ser afetuoso. Dormia ao meu lado no sofá, aceitava com satisfação um agrado, e até me recebia ao fim do dia se enroscando nas minhas pernas, desde, é claro, que eu não estivesse usando boina preta ou óculos escuros, quando então fazia um risco e sumia do meu alcance. E, por muito tempo, brindou-nos com um escândalo matinal que só terminava quando lhe era servido uma tigela com leite morno, que sorvia avidamente. Até ontem.

Há alguns meses o mau funcionamento dos rins o obrigava a visitas periódicas à clinica para tratamento. Sua aparência estava horrível, pois o pelo ouriçado e desgrenhado não disfarçava a magreza extrema, e sua saúde se debilitava a cada dia. Hoje pela manhã não teve o escândalo habitual pelo leite morno, nem mesmo um gemido. Estava prostrado, e despedi-me dele com um agrado que aceitou esticando o pescoço e fechando os olhos. No fim da tarde, sem que nada mais pudéssemos fazer por ele, o Banzai foi sacrificado, depois de treze anos completados no início deste mês dividindo conosco nossa casa e nossas vidas.

Foto & Edição: Francis

05 agosto 2010

Intercâmbio Culinário

No mês de junho recebi o convite de uma amiga, por email, para participar de um intercâmbio de receitas culinárias. Como decididamente não sou conhecido pelos meus dotes culinários, fica claro que só recebi o convite porque ela precisava enviar para 20 pessoas para não quebrar a corrente. O curioso é que, apesar da minha mediocridade panelística, por algum motivo que desconheço sou constantemente solicitado por amigos cozinheiros, e até pela minha mãe e minha sogra, a experimentar o tempero dos pratos principais que estejam fazendo. Infelizmente, minha fama nas redondezas não passa disso, um mero provador de tempero.

Apesar disso, se precisar cozinhar não morro de fome. Meu conhecimento de cozinha, porém, resume-se a pratos simples, rústicos, que não exigem receitas escritas e que aprendi fazendo ou perguntando como fazer, e apenas em ocasiões específicas, invariavelmente envolvendo os amigos. Além dos pratos básicos como misto quente, sopa de caneca e ovo frito, consigo preparar sem muita dificuldade uma macarronada, arroz com galinha, arroz com lingüiça, paçoca de pinhão, carreteiro, bife no disco com legumes e verduras, peixe frito, churrasco... ou seja, todos pratos bem aceitos pela maioria das pessoas, e nada muito elaborado.

Mas aquele convite mexeu com os meus brios. A busca por uma receita especial para a minha amiga me fez pensar na relação que tenho com as panelas, e como este relacionamento interfere na rotina das formigas cortadeiras que fazem ninho nas trincas da calçada, daí percebi que não posso passar o resto da vida como provador oficial do tempero do prato dos outros – atividade de alto risco, por sinal. Resolvi, então, investir na minha imagem gourmética, e saí à procura da receita ideal. Optei por um prato típico das regiões de altitude aqui do sul, bem tradicional, preparado desde a era sapozóica, mas os poucos relatos que encontrei não estavam à altura da importância dos meus objetivos ego-culinários. Por isso, passei os últimos 47 dias redigindo com muito esmero esta receita, que acredito será do agrado dela, pois, como se pode perceber, é um prato muito simples, de poucos ingredientes e de facílimo preparo.


Crestamento de Estruturas Embrionárias Araucariáceas

Ingredientes
- Área desartificiosa não dimensionada, com ou sem extrato arbóreo significante;
- Espécime feminino fanerógamo gimnospérmico araucariáceo, com ocorrência de infrutescências em favorável estágio de maturação;
- Rejeitos de extremidades arbóreas com órgãos laminares pungentes em adiantado estado de desidratação;
- Estruturas embrionárias araucariáceas em sobejidão;
- Espessos protetores digitais, optativos;
- Receptáculo de faces retangulares provido de hastes com extremidades inflamantes;

Preparo
- Valendo-se da fímbria dos membros superiores com ou sem o auxílio de protetores digitais, colija os rejeitos de extremidades arbóreas com órgãos laminares pungentes em adiantado estado de desidratação, dispersamente prostrados sobre as ciperáceas por ação direta de forças eólicas, e lance-os de mão em minguada área erigindo murundu de eminência não fixada, embora bastante para o inteiro crestamento do universo das estruturas embrionárias que se intenta amealhar. Por mero e exacerbado zelo e com singular escopo impediente de um abrasamento tal que prive a sua exeqüibilidade de consumo, reporte-se que o conjunto de conhecimentos específicos focados no ato objeto deste relato, a se constituir de vantajosa aquisição acumulada pelo exercício histórico desta prática, orienta que seu cume situe-se apropinquadamente a três quartos de milhar de milímetros do nível das ciperáceas.

- Superpostamente ao murundu, precipite aspersadamente as estruturas embrionárias araucariáceas previamente esbagoadas das infrutescências favoravelmente maturadas ou coligidas por entre as ciperáceas circundantes;

- Excite a reação ígnea dos rejeitos monticulares consequentemente à ignescência de uma ou mais hastes com extremidades inflamantes, em disposição geodesicamente propícia aos movimentos eólicos de rajadas, similarmente aos de repiquetes, precavendo-se de inapropriada assimilação bronco alveolar das emanações carbônico-gasosas oriundas da massa incendida;

- Ato contínuo ao completório da atividade ignescente, com o prudente auxílio de ramúsculo de dimensão longitudinal apropriada tal que permita esgaravatar acauteladamente a borralha plúmbea queimosa e as substâncias combustíveis sólidas incandescentes resultantes da combustão incompleta dos materiais orgânicos envolvidos, colija as estruturas embrionárias araucariáceas crestadas e aboque-as, precedendo diligente subtração do cascabulho e breve entibiamento.

Sugestão
- Aprestamento e consumpção em ambiência amical recrudescem o saibo intrínseco.

Saborida apetência!

31 julho 2010

A Minha Pátria

Amélia Rodrigues

Pátria... se todo o ouro e todas as riquezas
Que o universo contém: tronos, palmas, grandezas,
Prá fazer-me trair-te, alguém trouxesse aqui,
Nada disso, jamais, eu trocaria por ti...

Se fosses a mais pobre, a mais desamparada
De todas as nações, cativa, desolada,
Sem recursos, na treva, exausta, a definhar,
Quereria eu morrer para te libertar.

Se não pudesses dar-me o refúgio do teto,
Um pedaço de pão, o beijo de um afeto...
Se os sacrifícios meus desprezasses, enfim,
Eu te amaria ainda assim...

Quando às vezes contemplo e percorro na mente
Mares, terras d’além, não descubro, realmente,
Nada que comparar se possa ao brilho teu...
Pátria... melhor que tu apenas vejo o céu...

Quando alguém junto a mim teu nome pronuncia,
Sinto um gosto de mel... ressaibos de ambrosia...
É que me vem à boca, em doce comoção,
O amor que te consagro e me enche o coração.

Quando a tua bandeira esplêndida tremula,
Minha alma corre a ela, extasiada a oscula,
Num transporte de amor a enrola toda em si,
E julga e sonha e crê que se fundiu em ti...

Pátria formosa e grande... a teus pés prisioneira
Aqui tens, prá servir-te, a minha vida inteira...
És minha mãe... aceita o que eu valer e for
Pois tudo é teu, só teu, Pátria do meu amor...

nasceu na Fazenda Campos, Freguesia de Oliveira dos Campinhos, Município de
Santo Amaro da Purificação, Estado da Bahia em 26 de maio de 1861.
Foi notável poetisa, professora emérita, escritora consagrada,
teatróloga, legítimo expoente cultural das Letras da Bahia.

14 julho 2010

Os Dez Mandamentos do Chimarrão

Texto: Pércio de Moraes / Jornal “Tchê”
Ilustrações: Clóvis Medeiros 
I – NÃO PEÇAS AÇÚCAR NO MATE
O gaúcho aprende desde piazito que e por que o chimarrão se chama também mate amargo ou, mais intimamente, amargo apenas. Mas, se tu és dos que vêm de outros pagos, mesmo sabendo poderás achar que é amargo demais e cometer o maior sacrilégio que alguém pode imaginar neste pedaço do Brasil: pedir açúcar. Pode-se pôr água, ervas exóticas, cana, frutas, cocaína, feldspato, dólar, etc., mas jamais açúcar. O gaúcho pode ter todos os defeitos do mundo, mas não merece ouvir um pedido desses. Portanto, tchê, se o chimarrão te parece amargo demais, não hesites, pede uma Coca-Cola com canudinho, tu vais te sentir bem melhor!

II – NÃO DIGAS QUE O CHIMARRÃO É ANTI-HIGIÊNICO
Tu podes achar que é anti-higiênico pôr a boca onde todo mundo põe. Claro que é. Só que tu não tens o direito de proferir tamanha blasfêmia em se tratando de chimarrão. Repito: pede uma Coca-Cola com canudinho. O canudo é puro como água de sanga (pode haver coliformes fecais e estafilococos dentro da garrafa. Não nele).

III – NÃO DIGAS QUE O MATE ESTÁ QUENTE DEMAIS
Se todos estão chimarreando sem reclamar da temperatura da água, é porque ela é perfeitamente suportável por pessoas normais. Se tu não és uma pessoa normal, assume e não te fresqueies. Se, porém, te julgas perfeitamente igual às demais, faze o seguinte: vai para o Paraguai. Tu vais adorar o chimarrão de lá.

IV – NÃO DEIXES UM MATE PELA METADE
Apesar da grande semelhança que existe entre o chimarrão e o cachimbo da paz, há diferenças fundamentais. Com o cachimbo da paz cada um dá uma tragada e passa-o adiante. Já com chimarrão, não. Tu deves tomar toda a água servida, até ouvir o ronco da cuia vazia. A propósito, leia logo o mandamento seguinte.

V – NÃO TE ENVERGONHES DO RONCO NO FIM DO MATE
Se, ao acabar o mate, sem querer fizeres a bomba “roncar”, não te envergonhes. Está tudo bem, ninguém vai te julgar um mal-educado. Este negócio de chupar sem fazer barulho vale para a Coca-Cola com canudinho, que tu podes até tomar com o dedinho levantado.

VI – NÃO MEXAS NA BOMBA
A bomba do chimarrão pode muito bem entupir, seja por culpa dela mesmo, da erva ou de quem preparou o mate. Se isso acontecer, tens todo o direito de reclamar. Mas, por favor, não mexas na bomba. Fale com quem lhe ofereceu o mate ou com quem lhe passou a cuia. Mas não mexas na bomba, não mexas na bomba e, sobretudo, não mexas na bomba.

VII – NÃO “DURMAS” COM A CUIA NA MÃO
Tomar mate solito é um excelente meio de meditar sobre as coisas da vida. Tua mateias sem pressa, matutando... E às vezes te surpreendes até imaginando que a cuia não é cuia, mas o quente seio moreno daquela chinoca faceira que apareceu no baile do Gaudênio... Agora, tomar chimarrão numa roda é muito diferente. Aí o fundamental não é meditar e sim integrar-se à roda. Numa roda de chimarrão tu falas, discutes, ris, xingas, enfim, tu participas de uma comunidade em confraternização. Só que esta tua participação não pode ser levada ao extremo de te fazer esquecer da cuia que está em tua mão. Fala quanto quiseres, mas não esqueças de tomar teu mate, que a moçada está esperando.

VIII – NÃO ALTERES A ORDEM EM QUE O MATE É SERVIDO
Roda de chimarrão funciona como cavalo de leiteiro. A cuia passa de mão em mão, sempre na mesma ordem. Para entrar a roda qualquer hora serve mas, depois de entrares, espera sempre a tua vez e não queiras favorecer ninguém, mesmo que seja a mais prendada prenda do Estado.
 
IX – NÃO CONDENES O DONO DA CASA POR TOMAR O 1º MATE
Se tu julgas o dono da casa um grosso por preparar o chimarrão e tomar ele próprio o primeiro, saibas que o grosso és tu. O pior mate é o primeiro, e quem o toma está te prestando um favor.

X – NÃO DIGAS QUE O CHIMARRÃO DÁ CÂNCER NA GARGANTA
Pode até dar. Mas não vais ser tu, que pela primeira vez pegas na cuia, que irás dizer, com ar de entendido, que chimarrão é cancerígeno. Se aceitaste o mate que te ofereceram, toma e esquece o câncer. Se não der para esquecer, faze o seguinte: pede uma Coca-Cola com canudinho que ela... etc., etc..

08 julho 2010

Uma Casa

Minha mãe conheceu aquele que seria o seu marido quando morava nesta casa, na distante década de quarenta, na pacata e litorânea Itajaí. Há muito ele já se foi, e da casa, diz ela, resta apenas um pequeno pedaço. Mas as lembranças, certamente, restam todas. E numa recente e costumeira reunião familiar de domingo, esta senhora de 83 anos nos surpreendeu com um desenho que reproduz a casa onde morou, até sair para viver ao lado do meu pai nos campos de cima da serra.

Foi a primeira vez que a vi assim, inteira. Até então, só conhecia alguns detalhes que apareciam como fundo de fotografias, como as janelas laterais e a pequena mureta embaixo onde ela posou sentada junto a primos, o jardim florido onde fez pose de mocinha comportada, e a porta da frente com a escada de dois ou três degraus onde posou ao lado do seu noivo.

Naquele domingo em que descobrimos seu escondido talento artístico, ela nos disse que precisava achar um lápis mais macio para desenhar e que já tinha uma folha de papel quadriculado onde faria outro desenho, “... mais retinho e na proporção certa”. Antes que ela percebesse, o original já estava comigo e só o devolvi no outro dia, depois de digitalizado. Hoje, assim, como quem não quer nada, comentei sobre os lápis de cor, ao que me respondeu que estavam todos em ordem, sem faltar nenhum.

Então está tudo certinho, mãe. Aguardamos por mais lembranças suas!
Gravura: D. Néli (lápis sobre papel vegetal)

07 julho 2010

Uma Tirinha no Pedaço [doze]

FAGUNDES & ANACLETO
Clênio Souza, artista plástico, escultor, cartunista, poeta e desenhista, originalmente publicado em O Momento.

26 junho 2010

Cecília Meireles, uma Brasileira (1901-1964)

Entre o verso e o engajamento, Cecília Meireles fez de sua obra legado para a educação e para as letras, se afirmando como uma das maiores vozes poéticas da língua portuguesa. Nascida no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro, em 1901, Cecília Benevides de Carvalho Meireles teve uma infância trágica, marcada pela morte prematura de seus pais. Ela mesma narraria mais tarde: “Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos.” Criada pela avó materna, se torna professora primária em 1917, atividade a que se dedica durante longo período. A estréia literária acontece aos 18 anos com o livro de poemas Espectros, o primeiro de uma obra que tem como marcas o virtuosismo da forma, a intimidade, a intuição. Artista de seu tempo, flerta com a revolução estética do movimento modernista brasileiro, inaugurado em 1922, e se torna figura ativa da cena cultural brasileira, encontrando no país, no seu folclore, na sua gente e nas suas paisagens material para sua criação.

A partir de 1925, dedica ainda maior entusiasmo à vocação de educadora. Encampa uma luta em prol a renovação do sistema educacional vigente. Entre 1930 e 1933 tem como arma a página de educação que dirige no jornal carioca Diários de Notícia, onde deixa evidente sua postura política democrata e seu espírito contestador.

Coleciona, durante esses anos, inimigos e desafetos. Ao lado do marido, o pintor português Fernando Correia Dias, inaugura no Rio de Janeiro, em 1934, a primeira biblioteca infantil especializada no país. Ainda no início da década de 30, inicia um produtivo período de conferências no exterior, apresentando na Europa e nos Estados Unidos, as diversas faces da cultura brasileira. De volta ao país, em 1935, enfrenta mais um momento trágico, o suicídio de seu marido. Retorna ao magistério, lecionando na Universidade do Distrito Federal (atual UFRJ), e à atividade jornalística, escrevendo sobre folclore no jornal A Manhã e crônicas para o Correio Paulista. Em 1940 casa-se com o professor e engenheiro agrônomo Heitor Vinícius da Silveira Grilo.

Em 1939, recebe da Academia Brasileira de Letras (ABL) o Prêmio de Poesia Olavo Bilac, pelo livro Viagem. Em sua vasta produção literária destacam-se títulos como Baladas para El Rei (1924), Mar absoluto (1945), Romanceiro da inconfidência (1953), além de importantes obras sobre literatura infantil, educação, folclore e ainda traduções.

Aposenta-se como diretora de escola, em 1951, mas continua atuante, escrevendo e ainda produzindo e editando programas para rádio. Morre em 1964, na cidade onde nasceu. Tendo sempre o verso como espelho interior, Cecília Meireles manteve a liberdade como condição permanente de sua criação: “...Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”.

Fonte: Revista Funcef ed 25 mar08

Lua Adversa

Tenho fases, como a lua,
fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...).
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...


Canção do Sonho Acabado

Já tive a rosa do amor
- rubra rosa, sem pudor.
Cobicei, cheirei, colhi.
Mas ela despetalou
E outra igual, nunca mais vi.

Já vivi mil aventuras,
Me embriaguei de alegria!
Mas os risos da ventura,
No limiar da loucura,
Se tornaram fantasia...

Já almejei felicidade,
Mãos dadas, fraternidade,
Um ideal sem fronteiras
Cecília Meireles desembarcando em Lisboa, em outubro de 1934.  Bico de pena do seu primeiro marido, Fernando Correia Dias.- utopia! Voou ligeira,
Nas asas da liberdade.

Desejei viver. Demais!
Segurar a juventude,
Prender o tempo na mão,
Plantar o lírio da paz!
Mas nem mesmo isto eu pude.

Tentei, porém nada fiz...
Muito, da vida, eu já quis.
Já quis... mas não quero mais...

Cecília Meireles desembarcando em Lisboa, em outubro de 1934.
Bico de pena do seu primeiro marido, Fernando Correia Dias.