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14 setembro 2013

Beiçudo

Escarafunchando uma papelada encontrei, numa pasta antiga cheia de lembranças, um envelope verde garrafa. Foi endereçado a mim, há 37 anos, por uma de minhas irmãs enquanto eu, seu irmão mais novo, servia o Exército na cavalaria em Brasília. Eu estava lá há pouco mais de duas semanas quando ela escreveu aquela carta de 3 páginas contando as novidades, e no final, em vez de um P.S., anexou uma meia folha onde desenhou como ela imaginava os cavalos lá do 1º Regimento de Cavalaria de Guarda Dragões da Independência.
Óóóóiiiiinnnnnn!!! Que fofos! Não são uma gracinha?
Pois é... O problema é que a realidade era um pouquinho diferente. Obriguei-me, então, a mostrar-lhe como as coisas realmente aconteciam por lá. Não me perguntem como a resposta à carta de minha irmã está comigo, eu não faço ideia. Mas o importante é que os fatos ficaram devidamente esclarecidos. Ou não?


Prá facilitar as coisas, vou mostrar um por um. Por favor, não reparem o estilo, o que realmente conta é a clareza da situação dos récos – ou, os conscritos, como são chamados os viventes antes de se tornarem soldados! – nas seis primeiras semanas de um período de treinamento puxado e muito, muito dolorido!


Ô, saudade!

26 novembro 2011

Cinco Patas a Menos!


Este texto é uma atualização deste aqui. Foi necessário escrevê-lo para atualizar a quantidade de bichos, que às vezes por aqui, duma hora para outra, muda rapidamente. A gatinha branca manchada de amarelo e preto, que ainda era uma criança mas já estava maior que a mãe, nem três semanas depois daquela postagem morreu atropelada em frente à nossa casa. Fato, aliás, que já virou rotina, afinal, não há como confinar um gato numa casa, e nem o faríamos, se fosse possível. Nossos bichanos têm total liberdade para entrar e sair de casa e do terreno, para passear na rua ou nos telhados da vizinhança. Eles sabem que a qualquer tempo sempre haverá uma porta ou fresta de janela abertas, um canto sossegado e um prato com ração e água à disposição. Com exceção do Pepe, que foi espantado pelos cachorros, e um ou dois que sumiram sem se despedir, todos voltam e permanecem conosco até morrerem de velhos, ou... atropelados!

Essa realidade merece atenção. Com o passar dos anos, a observação do comportamento de dezenas de gatos, e mais recentemente, de dois cachorros que se associaram aos gatos na propriedade da nossa casa, fez-me elaborar a seguinte tese: gatos não sabem atravessar rua!

Duvida?

Pois eu sustento que não importa o tamanho, ou o movimento, ou o tipo de calçamento, atravessar uma rua é uma odisséia para os gatos. É algo acima de seu entendimento, uma atitude temerária e reprovada até mesmo pelos anjos da guarda felinos, um instante em que nem a lei das sete vidas vigora. Na verdade, é o instante em que ela é mais frequentemente derrogada. Não digo que eles são burros, não, pelo contrário. Está mais para alienação, ou incapacidade de raciocínio à beira de uma calçada. Funciona assim: o gato decide que o outro lado da rua é o paraíso, onde pululam ratos gordinhos em tocas feitas de queijo, e tenros filhotes de passarinho se oferecem em rasantes suicidas. No momento que ele pisa no meio-fio, acontecem duas coisas. Primeiro, um bloqueio mental, quando o candidato a omelete fica surdo e só enxerga o outro lado da rua e, em seguida, o anjo da guarda se arrepia e grita enquanto volta correndo prá dentro de casa:
— Vai atravessar? Tô fora, maluco!

Cachorros são diferentes. Claro, se bobearem também são atropelados, mas eles se cuidam mais. Normalmente olham para os lados e esperam os carros passarem. Mesmo aqueles mais tansinhos, que se atiram de qualquer jeito rua adentro, ao perceberem qualquer outra coisa que represente um perigo desviam, ou estaqueiam, ou voltam, ou aceleram, tentando evitar o atropelamento. Quase sempre dá certo.

Gatos, não!

Naquele instante do bloqueio mental e a fuga do anjinho, o omelet... quer dizer, o gato está surdo e só enxerga o outro lado da rua, lembram? Então. Nada mais no mundo importa, ele só sabe que tem que chegar do outro lado, que ele vê como se olhasse por dentro de um tubo, nada mais no mundo existe, apenas aquela rua entre ele e os ratos e o queijo e os filhotes, aí ele se atira em direção ao paraíso, se descabelando numa correria desatinada que só termina lá do outro lado... quando não fica pelo caminho, claro! E quando esta correria começa ainda de dentro do terreno, a travessia vira uma roleta russa, e as chances de virar omelete aumentam consideravelmente.

É ou não tese de doutorado? Alguém se habilita?

E como um atropelamento só é pouco...
No aniversário da filha mais nova, numa terça-feira à noite do início de outubro, a mãe desta gatinha atropelada, uma gata nanica preta com manchas brancas, irrequieta, zanzou entre nós o tempo todo. Na quinta-feira, dei-me conta que não tinha mais visto a gata desde então. No sábado, demos a gata como desaparecida de vez. Mas, na madrugada de domingo, ao chegarmos em casa vindo de um jantar, encontramos os cachorros alvoroçados sob uma janela. No lado de fora, entre o vidro e a grade de ferro, estava a gatinha, enrolada, quieta, com os olhos arregalados. Ao trazê-la para dentro de casa, nos deparamos com um ferimento aberto, enorme, logo acima da pata traseira encolhida, e com um osso quebrado saltando para fora conforme o movimento que o bicho fazia. Nenhum gemido, apenas os olhos arregalados.

Foi medicada e permaneceu em observação na clínica veterinária até na terça-feira seguinte, para ver se reagiria aos antibióticos. O osso quebrado, o fêmur, já estava morto. Na quarta-feira, já mais forte e com a infecção sobre controle, teve sua pata traseira esquerda amputada.

O que aconteceu com ela nunca saberemos ao certo. Supomos que tenha sido atropelada na terça, na noite do aniversário, e o ferimento ter sido causado pelo choque com alguma saliência do assoalho do carro. Onde ela ficou até no domingo de madrugada não sabemos, nem o que passou para evitar os cães que infestam nossa rua. Provavelmente buscou um lugar alto, pois o cheiro do ferimento a denunciaria facilmente. Nem os nossos cães, que todos os dias saem à rua e frequentam os terrenos baldios em frente à nossa casa, a encontraram. E só imaginamos o esforço e a dor para sair do seu esconderijo e voltar à nossa casa e, mais que isso, conseguir subir até a soleira da janela passando pela grade de ferro.

Apesar da agonia de ver um bicho mutilado tentando retomar sua rotina, impressiona sua capacidade de adaptação à nova realidade. Continua irrequieta e caiu algumas vezes, mas rapidamente vai conseguindo saltar e correr, desviando de cadeiras e pés de mesa, com a mesma agilidade de sempre. A única diferença mais visível, além da pata faltando, é que parece mais quieta que o habitual. O miado, raro, é pouco mais que um sopro. Ah, sim! E com uma pata a menos ficou um pouco mais nanica que antes!
Fotos: Francis
Ilustração: Colafina

06 maio 2011

Espelho, Espelho Meu...

Nem sempre nos damos conta do quanto as pessoas com as quais convivemos nos conhecem, ou conhecem nossos hábitos, ou sabem do que acontece na nossa vida. Até que alguns colegas de trabalho montam um cartaz de felicitações representando algumas coisas que fazem parte da nossa vida e que, de uma forma ou de outra, nos identificam perante eles. E eu ganhei um cartaz assim.

Nele estão dois cães, a Zazu, uma cadela monocromática cor de pinhão, trazida para casa ainda filhote por nossa filha mais nova, e o Amarelo, um cão branco com grandes manchas amarelas que estacionou já adulto em frente à nossa casa por quase um mês, encostado à grade cobiçando a Zazu até que foi aberto o portão, depois a porta da casa, e que agora se esparrama no nosso sofá.

Também tem um tatu, o Dasypus Hybridus, mamífero desdentado da família dos dasipodídeos, este com apenas três anéis, também conhecido aqui na região como mulito e que, num desenho estilizado pelas mãos do meu filho mais velho, serve como logomarca deste blogue.

Estão ali também as figuras de três gatos e meio. Na verdade, três gatas e meio gato. A primeira é a Marica, uma gata quase toda preta, gorda e felpuda, que as meninas insistem em dizer que é Marie e que se pronuncia Marrrrí-í com biquinho a la francesa! As outras duas são mãe e filha, ainda sem nome pois estão destinadas à doação, apesar de já estarem aqui em casa há mais tempo do que eu gostaria. A mãe, uma gata nanica preta com manchas brancas que apareceu por aqui num dia, e no outro já havia parido dentro do guarda-roupa uma gatinha branca manchada de amarelo e preto, [ATUALIZAÇÃO] que ainda é uma criança mas já está maior que a mãe. E o meio gato é o Pepe, preto de cara a rabo que chegou aqui em casa na mesma época da Marica, mas não se acertou muito bem com a Zazu, e depois menos ainda com o Amarelo. Foi quando resolveu se rebelar e só aparecer de madrugada para comer e dormir dentro de casa, enquanto os cães dormem na garagem. Ultimamente, nem isso tem feito mais, e não atende mais nosso chamado quando o vemos na rua, lá de vez em quando. Acho que já o perdemos para a vizinhança.

Figuras que retratam meu principal passatempo também estão ali, como mãos digitando, micros 386, quiçá um 486 DX4 100, e um moderníssimo disquete de 3,5 polegadas. Fui escancaradamente chamado de antigo. Tomara que seja só porque sou mais velho que eles.

Mas, se por um lado a criatividade dos colegas criou um presente divertido e que demonstra seu bem querer, por outro uma coisa me preocupou demais. É aquela figurinha lá no canto superior direito. Tanta preocupação que já marquei consulta no oftalmologista. E no psicólogo também, só por precaução. Sério, eu não sabia que estava assim tão acabado! Juro!

15 novembro 2010

Ninguém Mexe no Meu Liguste!

O Ligustro é uma árvore perenifólia, que chega a 10 m de altura. Quando criança, eu a chamava de liguste e depois, mais crescido, legustre. Rústica, resistente a podas e intempéries, e de crescimento rápido. Um uso muito comum aqui em nossa região é como cerca viva, quando plantada em fileiras com as mudas próximas, e podada constantemente. Plantei uma destas árvores na calçada em frente de casa, e outras na calçada dos fundos, que dá para uma avenida, mas estas já foram derrubadas.

Fotos de Lages do final do século 19 e do início do século 20 mostram estas árvores (vide atualização abaixo) plantadas fora das calçadas, em torno de um metro dentro das ruas de chão batido, provavelmente para permitir o "estacionamento" das montarias. Aconteceu que cresci vendo estas árvores nas [infelizmente] poucas ruas arborizadas de nossa cidade, a maioria no centro. E de alguns anos para cá tenho observado uma campanha silenciosa de combate ao seu plantio acompanhada de uma gradual derrubada pela secretaria do Meio Ambiente, para substituição por outras espécies, nativas e de crescimento menos agressivo. A maior crítica ao ligustro é que as raízes da árvore adulta acabam destruindo calçadas e muros, o que, além do incômodo, encarece sua manutenção pois exige constantes cuidados e reparações em seu entorno. Outra crítica é que, ao que parece, a maioria das pessoas a considera uma árvore feia e que provoca muita sujeira, pois seus frutos dão em cachos com pequenas bolotinhas roxas que mancham as calçadas na época da maturação.

Apesar destes inconvenientes, a considero uma árvore muito bonita. Onde crescem livremente, como parques ou áreas amplas, elas se impõem pelo porte grandioso e a copa volumosa com sua folhagem perene. Mas reconheço que o meu caso é de amor antigo. Quando pequeno usava seus galhos para construir fundas, arcos e flechas, suas copas como esconderijo, as bolotinhas roxas como munição de zarabatana e as cercas vivas como cavernas. Aprendi a gostar delas.

Pois hoje, nem sete e meia da manhã – madrugada, pois – fui acordado ao som de uma motosserra. Era a vizinha do lado derrubando os dois ligustros da calçada em frente à sua casa. Assisti da janela do meu quarto com o coração apertado, e depois corri para bater a foto do 'meu liguste', ainda adolescente. Vai que alguém da secretaria do Meio Ambiente passa por aqui com uma motosserra debaixo do braço! Melhor não facilitar... Tô de olho!
Fotos: 1. Acervo do MTC
2. Colafina

AtualizaçãoHá uma outra foto no acervo do MTC mostrando a Rua Correia Pinto no inverno com estas árvores todas "peladas", indicando que aquelas árvores plantadas fora da calçada não são ligustros, e sim plátanos. Os ligustros foram plantados somente em meados da década de 40. Outra foto, datada de jul/45, mostra a Nereu Ramos com ligustros em torno de dois metro de altura, ainda com as estacas de proteção.  

18 agosto 2010

Banzai, filho do Tigre

Nossos filhos, ainda pequenos, encontraram debaixo de uma pilha de tábuas o filhote de gato que miava em desespero desde o dia anterior. Era o mais legítimo representante dos vira-latas felinos. Cinza encardido e listrado, parecendo um filhote de tigre. Mais comum impossível. E o batizaram de... Tigre!

De uma feita, logo que se tornou adulto, fugiu da clínica veterinária para onde foi levado para se tratar de uma pereba qualquer. Onze dias depois, com as crianças já resignadas com a sua falta, reapareceu na porta da nossa casa miando gemido, magro, estropiado e descabelado. Recuperado e paparicado, tornou-se um gato enorme, chegando a pesar quase cinco quilos, e com a Lelé, uma gata pequena, cinza encardido e listrada, tiveram três filhotes, todos cinzas encardidos e listrados. Receberam o nome das hienas do Rei Leão, Ed, Banzai e Shenzi. Não lembramos mais como o Tigre saiu de nossas vidas, mas a Shenzi, tal como o pai, fugiu da mesma clínica, só que nunca mais voltou. Ed simplesmente sumiu de casa, provavelmente correndo atrás de algum rabo peludo, e também nunca mais voltou. O Banzai nunca fugiu, nem mesmo da clínica, paciente assíduo que era.

Nosso relacionamento era amistoso, mas arredio. Tínhamos um trato, eu não o incomodava muito, e ele me ignorava. Da dona da casa e das crianças aceitava bem os cafunés e ficava por perto, quando queria. Em alguns momentos, chegava a ser carinhoso e ronronava até cochilar encostado em alguma delas, noutros deixava numa bochecha ou pescoço a marca das unhas quando exageravam nos carinhos. Banzai nunca foi o único gato do pedaço, mas era o mais fiel, e ao mesmo tempo o mais independente de todos os gatos nos quais eu tropeçava pela casa toda.

Teve vários filhos, e sobreviveu a dois atropelamentos. Um de fato, pelas rodas do nosso carro na rampa da garagem, e que lhe custou a fíbula direita, e outro por suposição, depois de passar várias dias andando de lado, gemendo e mancando. Levou uma vida devassa, de arruaças constantes e brigas homéricas de acordar a vizinhança, e que no dia seguinte obrigavam a dona da casa levá-lo ao veterinário para ser medicado e costurado. Tantas lanhadas e mordidas renderam-lhe um incômodo emaranhado de cicatrizes sob o pelo. Com o tempo ele aos poucos foi sossegando, e ao chegar à terceira idade a maturidade falava mais alto que o ímpeto de macho dominante, e passou a preferir o conforto do sofá ao entrevero noturno nos quintais alheios. No inverno, dormia na porta aberta do forno do fogão enquanto estivesse ligado. Depois, tomava o rumo da nossa cama onde dormia até amanhecer.

Acabamos esquecendo o antigo trato e, de arredio, nosso relacionamento passou a ser afetuoso. Dormia ao meu lado no sofá, aceitava com satisfação um agrado, e até me recebia ao fim do dia se enroscando nas minhas pernas, desde, é claro, que eu não estivesse usando boina preta ou óculos escuros, quando então fazia um risco e sumia do meu alcance. E, por muito tempo, brindou-nos com um escândalo matinal que só terminava quando lhe era servido uma tigela com leite morno, que sorvia avidamente. Até ontem.

Há alguns meses o mau funcionamento dos rins o obrigava a visitas periódicas à clinica para tratamento. Sua aparência estava horrível, pois o pelo ouriçado e desgrenhado não disfarçava a magreza extrema, e sua saúde se debilitava a cada dia. Hoje pela manhã não teve o escândalo habitual pelo leite morno, nem mesmo um gemido. Estava prostrado, e despedi-me dele com um agrado que aceitou esticando o pescoço e fechando os olhos. No fim da tarde, sem que nada mais pudéssemos fazer por ele, o Banzai foi sacrificado, depois de treze anos completados no início deste mês dividindo conosco nossa casa e nossas vidas.

Foto & Edição: Francis

08 julho 2010

Uma Casa

Minha mãe conheceu aquele que seria o seu marido quando morava nesta casa, na distante década de quarenta, na pacata e litorânea Itajaí. Há muito ele já se foi, e da casa, diz ela, resta apenas um pequeno pedaço. Mas as lembranças, certamente, restam todas. E numa recente e costumeira reunião familiar de domingo, esta senhora de 83 anos nos surpreendeu com um desenho que reproduz a casa onde morou, até sair para viver ao lado do meu pai nos campos de cima da serra.

Foi a primeira vez que a vi assim, inteira. Até então, só conhecia alguns detalhes que apareciam como fundo de fotografias, como as janelas laterais e a pequena mureta embaixo onde ela posou sentada junto a primos, o jardim florido onde fez pose de mocinha comportada, e a porta da frente com a escada de dois ou três degraus onde posou ao lado do seu noivo.

Naquele domingo em que descobrimos seu escondido talento artístico, ela nos disse que precisava achar um lápis mais macio para desenhar e que já tinha uma folha de papel quadriculado onde faria outro desenho, “... mais retinho e na proporção certa”. Antes que ela percebesse, o original já estava comigo e só o devolvi no outro dia, depois de digitalizado. Hoje, assim, como quem não quer nada, comentei sobre os lápis de cor, ao que me respondeu que estavam todos em ordem, sem faltar nenhum.

Então está tudo certinho, mãe. Aguardamos por mais lembranças suas!
Gravura: D. Néli (lápis sobre papel vegetal)

01 fevereiro 2010

Sobre Velório e Inquietude

Acabo de ler o texto no qual o Rafael Galvão descreve em seu último parágrafo, em três linhas, o que para ele foi o enterro mais pungente de sua vida, e lembrei-me daquele que para mim foi o velório mais inquietante, e do qual fui apenas um fugaz expectador. Infelizmente não saberei ser tão sucinto quanto ele.

Há alguns anos, voltando para casa após uma festa de aniversário na casa de um amigo, por volta das 3:00h da madrugada gelada de um domingo de inverno, passamos em frente a uma capela mortuária na rua ao lado do principal cemitério da cidade. Em frente à capela não havia ninguém, e na rua nenhum carro estacionado. No interior da capela iluminada, podia-se ver pela porta de vidro fechada, na sala cercada de cadeiras vazias, um caixão, com duas velas grandes acesas aos pés de um ornamento metálico na parede ao fundo, e nenhuma coroa de flores ou outro arranjo de qualquer tipo. À esquerda, na primeira cadeira encostada à parede, uma única pessoa velava aquele corpo. Sentado com as pernas e os braços cruzados, protegido do frio encolhido dentro de um pesado casaco com as golas levantadas e com um gorro de lã que cobria as orelhas, um homem dormia com o queixo afundado no peito. Um arrepio estremeceu todo meu corpo naquele momento, e não foi pelo frio da madrugada.

A angústia que senti ao ver a absurda solidão daquela cena perdurou por semanas, e retorna com a mesma intensidade sempre que a relembro, mais ainda agora em que a descrevo. Sempre me questionei se a existência daquela criatura sendo velada foi tão vazia quanto seu velório, ou se alguma outra obscura circunstância desenhou tão amargurado quadro. Nunca o saberei.

27 dezembro 2009

Orquestra Sapofônica do Cajuru

Noite quente de um sábado de primavera, no mágico estio após um aguaceiro no fim da tarde. A poucos metros à direita, uma lagoa rasa formada pelas águas da chuva e de um banhado no terreno vizinho, do outro lado da taipa de pedras meio submersa que corta a lagoa ao longo da divisa do campo. A mesma lagoa onde o Rosilho atolava até os joelhos para pastar o capim aflorando à superfície, e onde hoje pasta sozinha a Alazana.

O nome mais apropriado para a orquestra seria grilofônica, ou talvez cigarrafônica, mas ao vivo, pisando o capim molhado lá pertinho da lagoa, o coaxar se sobressaía aos cricrilos que, nesta gravação, porém, destacaram-se sobremaneira. Então, aumente o volume e saboreie um som que quase não se ouve mais na cidade, a barulheira de bichos na natureza. O som do mato.

Com vocês, a Orquestra Sapofônica do Cajuru!

12 novembro 2009

De Cavalheirismo e Guerra Fria

Às 10 horas da manhã do dia 12 de fevereiro de 1908, em New York, seis carros  alinham-se na rua 43 entre a Broadway e a Sétima Avenida. Três franceses, um italiano, um alemão e um norte-americano, todos abertos, com seus tripulantes expostos ao tempo frio e nevoso daquele dia de inverno. Aguardam o sinal de partida para uma corrida  que os levará à Paris. De New York até São Francisco, de lá por mar até Vladivostock, com pequeno trecho em estrada no Alaska, e prosseguindo através da Rússia até Moscou, depois Berlim e, finalmente, Paris

À época, fora dos limites urbanos as estradas eram apenas “... caminhos carroçáveis que quebravam os rins, arrancavam dentes, sacudiam os ossos, mesmo em pleno verão – e estávamos num mês de fevereiro cheio de neve, com temperatura em torno de 0°C.” [Revista Esso – 1956, nº 4]. Contrariando até mesmo as previsões mais otimistas, apenas dois carros não superaram os desafios da aventura que entraria para a história como A Grande Corrida .


A gravura de Peter Helck  ilustra o momento em que a equipe americana, pilotando o Thomas Flyer, socorre o Protos, da equipe alemã, atolado na lama nas cercanias de Vladivostok. Depois de dividirem uma garrafa de vinho, as equipes tornaram a se acomodar em seus carros e recomeçaram a corrida, rumo à distante Paris.

A lembrança que tenho desta gravura remonta aos primeiros anos da década de 60, e no seu transcorrer, durante minha infância e pré-adolescência, a esta lembrança foram se somando as histórias sobre os conflitos da época, principalmente uma dita guerra fria  entre russos e americanos. Na minha cabeça infantil, a gravura então passou a ter outros significados, como o exemplo de altruísmo e – também, e principalmente – cavalheirismo entre os competidores. No auge da guerra fria, na minha imaginação, custava a acreditar que pudesse haver tamanho desprendimento entre aqueles homens cujos governos estavam em permanente e perigosa disputa. Este sentimento de incredulidade e admiração aflorava cada vez que folheava a Revista Esso, que ainda guardo, ou mesmo à simples lembrança da gravura quando o assunto surgia nas conversas em família, ou com amigos.

Passaram-se alguns anos até que a razão colocasse ordem nos sentimentos relacionados à gravura. Foi quando, entrando na fase adulta, me dei conta que, em primeiro lugar, o Protos era um carro alemão e pilotado por alemães, não russos. Em segundo, este encontro aconteceu em 1908, muito antes dos conflitos envolvendo americanos e alemães, e naquela época a guerra fria entre russos e americanos não existia nem em sonho. Mas de nada adiantou o ordenamento, aqueles significados confusos estavam por demais entranhados na memória, gravados desde a infância e permaneceram vivos por toda minha vida adulta. E é por ainda hoje despertarem tão boas lembranças que decidi publicá-las. A gravura, e as lembranças. Estou satisfeito por isso!

Quem ganhou a corrida ? Quase seis meses depois da largada, completaram a prova o Thomas Flyer  americano com 26 dias de vantagem sobre o Protos  alemão, 35 dias sobre o Zust  italiano e 56 dias sobre o De Dion  francês. Dos outros carros franceses, o Sizaire-Naudin  abandonou a prova logo após a largada e o Moto-Bloc  desistiu antes de chegar a São Francisco. Deles todos, o Thomas Flyer é o único ainda existente, exposto  no National Automobile Museum, em Reno, Nevada, USA.

29 março 2009

Sobre Sótãos, Escritórios e Outras Lembranças!

Aproximadamente 400 volumes de livros e revistas que um dia fizeram parte da biblioteca de meu pai estão hoje, por empréstimo à família, à minha frente, mal acomodados nas prateleiras de duas estantes que ocupam toda uma parede do escritório aqui de casa. Por empréstimo, pois ainda são da família, estão aqui porque fiz questão de mantê-los comigo e também porque nenhum dos meus irmãos tinha espaço suficiente para acomodá-los.

Cresci enfurnado no escritório[1] apertado da casa de meus pais, onde se misturavam livros, revistas, mesa para desenho, banqueta, rolos de papel vegetal, escrivaninha, cadeira, uma caixa enorme para guardar as plantas com projetos arquitetônicos, réguas de todo tipo e tamanho e, ocupando quase meia parede, prateleiras lotadas de canetas e penas para desenho, vidros de tinta nanquim, lápis, borrachas e tudo o mais que se utilizava na época em desenho técnico, a maioria acondicionada em caixinhas de metal com tampas de dobradiças, que originalmente embalaram lápis >>LOTUS<<, da Johann Faber. Uma destas caixinhas está aqui ao lado do teclado, com algumas canetas para nanquim com cabos coloridos, e um compasso tira linhas. A última vez que usei uma destas canetas bico de pena foi em meados da década de 70, durante uns três ou quatro dias em que fiquei de molho num quarto do sótão[2] por conta de uma virose qualquer dos tempos de juventude, quando rabisquei uma folha de cartolina que acabou virando um quadro, pendurado na parede atrás de mim.

Ainda hoje estes livros, tão familiares, com capas descoradas, amareladas, muitas delas estragadas pelo uso ou carcomidas pelo tempo – são livros das décadas de 30, 40 e 50 – trazem à memória a lembrança de bons momentos passados naquele canto muito especial da nossa casa, lendo vários destes mesmos livros hoje na minha estante, folheando revistas, navegando pelo mundo e pelo espaço nas páginas dos atlas[3] e devorando Seleções do Reader’s Digest.

Por estes dias, acabei folheando novamente uma daquelas revistas, a Revista Esso, uma publicação bimestral da Esso Standard do Brasil Inc., com Théo de Castro Drummond como Redator-Responsável. A melhor analogia que me ocorre é que ela seria uma espécie de Superinteressante daquela época, com a diferença de haver muitos artigos sobre obras do governo e sobre trabalhos de pesquisa e desenvolvimento da própria Esso. Tenho comigo 19 números, do 3º bimestre de 1956 ao 4º bimestre de 1960, com 7 números faltando neste intervalo. Em média 12 matérias em 24 páginas de folhas grossas, já meio amareladas. O que desencadeou estas memórias foi uma matéria no exemplar do 3º bimestre de 1957 – exatamente da minha idade, portanto – sob o assunto “Pioneiros da Indústria: Aparelhos de Ótica e Precisão”, que transcrevo literalmente:

"Em 1940, um rapaz de Santos (S. Paulo) escreveu ao Pre­sidente da República, apresentando um novo modêlo de telêmetro de depressão se propondo a fabricar aquêle ins­trumento – que até então era importado – para a Artilharia de Costa. Seis meses depois, era chamado à presença do Ministro da Guerra, para explicar detalhes do projeto. E demonstrou tamanha convicção da exequibilidade de seu plano, que voltou à sua terra com ajuda oficial para iniciar o trabalho. Seu nome: Décio Fernandes Vasconcelos.

Surgiu, aí, o primeiro grande problema: o rapaz tinha idéias, tinha mesmo algum dinheiro, mas não tinha onde fa­bricar o telêmetro, nem pessoal especializado. Isso, porém, não seria obstáculo. Décio lembrou-se de que, em 1922, com 13 anos de idade, fabricara no porão da casa de seus pais um rádio-receptor. Por sinal, na época, aquêle aparelho era privativo do Exército e por isso o pai do "inventor" teve de dar explicações à Justiça. Em segui­da, Décio (que tinha um comportamento "diferente" dos meninos de sua idade) foi levado pelo progenitor a um médico, para saber como andavam suas faculdades mentais...

Agora, para fabricar um aparelho ótico que se rivalizasse com o importado, era preciso um pouco mais do que um simples porão. Tratou de mudar-se para São Paulo e comprou oficina, na rua Mauá, onde começou o trabalho. Tempos depois, voltou à presença das autoridades mi­litares, levando debaixo do braço o primeiro telêmetro fa­bricado no Brasil. E o aparelho, submetido à prova, demons­trou ser tão bom ou melhor do que o importado.

Hoje, aquêle moço de Santos possui a única fábrica sul­-americana (e sétima, em importância, de todo o mundo) de aparelhos de ótica e precisão. Ali, sob a supervisão do próprio Décio, perto de quinhentos operários e dezenas de en­genheiros especializados produzem, além do telêmetro de precisão, 81 outros produtos, entre os quais binóculos, lunetas oftálmicas, teodolitos, lentes para projeção de cinemascópio, máquinas fotográficas e o poliópticon – um brinquedo muito interessante e de múltiplas aplicações, cuja licença para fa­bricação na América do Norte já foi solicitada por duas conhecidas firmas especializadas dos Estados Unidos.”

Eis que, ao bater o olho na foto da linha de montagem, algo chamou a atenção: aquelas caixinhas com cara de bonecos de olhos e boca arregalados não me eram estranhas! Pois, ali estava registrado para o futuro a linha de montagem das máquinas fotográficas modelo Kapsa, do tipo caixinha, e eu tenho comigo uma dessas, também herdada de meu pai, embalada em sua caixa original e devidamente acompanhada do seu manual!

Liguei para minha mãe, e ela confirmou que muitas das fotos antigas que ela tem guardadas em álbuns e caixas, foram batidas com esta máquina. Fabricada na década de 50, era robusta e resistente a quedas. De funcionamento simples, apenas três ajustes manuais de abertura do diafragma e duas velocidades de disparo, uma delas também manual, determinada pelo tempo que se mantém o disparador pressionado, e para ver a imagem pelos visores era necessário segurá-la na altura da barriga.

Está em bom estado de conservação e, apesar de um pouco de poeira, nenhum dano aparente em seu mecanismo e suas peças. Acredito que ainda deve bater boas fotos, se encontrar o filme recomendado. E é claro, também precisa descobrir quem o revele! Quem sabe um dia, quando bater novamente a nostalgia de um tempo muito bom, de tantas e tão boas lembranças!


_________________________Notas de rodapé:
[1] – A simples palavra escritório exerce sobre mim um fascínio difícil de explicar. Sempre me lembrou livros, pesadas mesas com muitos papéis, lápis, canetas, luminária de mesa e máquina de escrever que, de uns tempos pra cá, foi substituída pelo computador. Acho estranho uma casa sem escritório, senão uma peça exclusiva, mas pelo menos um canto com prateleiras, livros e uma mesa para trabalho.
[2] – Tenho fascínio também por sótãos, e isso é uma coisa mal resolvida na minha vida! Morei em uma casa com sótão por poucos anos durante a juventude, e depois de adulto morei ano e pouco num quarto de pensão, também no sótão. Depois disso, casa, apartamento e casa novamente, com dois pisos, mas sem sótão. Acabei privando meus filhos de sentir o prazer de dormir num sótão, embalado pelo barulho de chuva em telhas de barro. Terei que conviver com isso para todo o sempre!
[3] – Atlas é caso de obsessão mesmo, tenho vários, desde aqueles da minha infância até os adquiridos mais recentemente, quando imaginei que meus filhos herdariam o gosto. Mas aí apareceu um tal de computador e uma tal de Internet, e nada mais aconteceu como combinado. Eles até folhearam seus atlas escolares, que acabei herdando deles, mas não passaram disso. Pena, também não sentiram o prazer de descobrir o mundo e o universo nas mágicas páginas de um atlas.

08 março 2009

Quem Disse Que Escrever Esclarece?

É comum falarmos uma coisa e as pessoas entenderem outra. Constantemente temos que repetir, chamar a atenção, explicar uma, duas, várias vezes. Às vezes, é como se fôssemos alienígenas, por mais que nos expliquemos menos nos entendem. Bem, na verdade não sei se é assim com todo mundo, mas comigo é. Tenho tendência a ser prolixo nas minhas argumentações ou narrativas. Sinto necessidade de explicar como as coisas chegaram até aquele ponto ao qual me refiro, considero importante situar o objeto da discussão. Essa característica já virou folclore entre meus amigos de convívio mais próximo. Já quando escrevo consigo me policiar, mesmo porque posso pensar o texto como um todo, reler, reescrever, reordenar o pensamento, enfim, trabalhar com calma aquilo que quero exprimir. Este deve ser um dos motivos pelos quais escrevo tão pouco, ou bem menos do que gostaria.
Há poucas semanas, depois de acalorada discussão sobre um assunto muito caro a mim e a um grupo de bons amigos, com quase quatro décadas de convivência, senti a necessidade de registrar no papel aquilo que eu pensava sobre o assunto em questão. Aquela não era a primeira vez que discutíamos, e a cada vez, menos nos entendíamos. Como de certa forma eu fui o pivô da discussão, e de tanto discutirmos meus argumentos iniciais já estavam com sentido completamente oposto à realidade, peguei do papel, ou melhor, do teclado, registrei para a posteridade e enviei por email o meu sentimento sobre os problemas que motivaram nossos desentendimentos, literalmente do tipo discutindo a relação!
Bem, aqui entra o motivo do post. Enquanto escrevia aquela carta aberta, numa verdadeira batalha com as palavras para que não restasse uma única possibilidade de dúvida quanto ao meu posicionamento, lembrei de alguns autores que, por competência e genialidade, escreveram com o objetivo oposto, ou seja, para não esclarecer, no intuito de protestar, como fez Zé da Luz no início do século passado, quando escreveu o poema Ai! Se Sesse!, dizem, “... de tanto ouvir as pessoas dizerem que para escrever um poema de amor deveria fazê-lo com o português correto e palavras rebuscadas...”, ou com a clara e manifesta intenção de instigar os sentimentos [como costuma dizer um professor de literatura que conheço, “... para dar um soco na boca do estômago do leitor!”], como fez Jorge de Sena [mais sobre ele aqui] ao escrever uma obra prima chamada Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena.
Nas palavras do autor, o significado semântico das palavras nos sonetos dá lugar à percepção de sentidos pela imagem e pela sonoridade, e ele não poderia ter sido mais feliz em seu objetivo. Claro que as pessoas os percebem de maneiras distintas, enquanto alguns se emocionam ao lê-los, como eu, outros se valem da lógica ou da lingüística para tentar entendê-los. Não importa. Não quero aqui discorrer sobre esta obra, que já foi objeto até de dissertação de mestrado, centenas de outros já o fizeram com muita propriedade. Eu a transcrevo apenas como forma de registro do que se pode fazer com as palavras quando se sabe escrever.
I
PANDEMOS
Dentífona apriuna a veste iguana
de que se escalca auroma e tentavela.
Como superta e buritânea amela
se palquitonará transcêndia inana!


Que vúlcios defuratos, que inumana
sussúrica donstália penicela
às trícotas relesta demiquela,
fissivirão boíneos, ó primana!


Dentívolos palpículos, baissai!
Lingâmicos dolins, refucarai!
Por manivornas contumai a veste!


E, quando prolifarem as sangrárias,
lambidonai tutílicos anárias,

tão placitantos como o pedipeste.
II
ANÓSIA
Que marinais sob tão pora luva
de esbanforida pel retinada
não dão volpúcia de imajar anteada
a que moltínea se adamenta ocuva?

Bocam dedetos calcurando a fuva
que arfala e dúpia de antegor tutada,
e que tessalta de nigrors nevada.
Vitrai, vitrai, que estamineta cuva!

Labiliperta-se infanal a esvebe,
agluta, acedirasma, sucamina,
e maniter suavira o termidodo.

Que marinais dulcífima contebe,
ejacicasto, ejacifasto, arina!...
Que marinais, tão pora luva, todo...
III
URÂNIA
Purília emancivalva emergidanto,
imarculado e róseo, alviridente,
na azúrea juventil conquinomente
transcurva de aste o fido corpo tanto...

Tenras nadáguas que oculvivam quanto
palidiscuro, retradito e olente
é mínimo desfincta, repente,
rasga e sedente ao duro latipranto.

Adónica se esvolve na ambolia
de terso antena avante palpinado.
Fimbril, filível, viridorna, gia

em túlida mancia, vaivinado.
Transcorre uníflo e suspentreme o dia
noturno ao lia e luçardente ao cado.
IV
AMÁTIA
Timbórica, morfia, ó persefessa,
meláina, andrófona, repitimbídia,
ó basilissa, ó scótia, masturlídia,
amata cíprea, calipígea, tressa
de jardinatas nigras, pasifessa,
luni-rosácea lambidando erídia,
erínea, erítia, erótia, erânia, egídia,
eurínoma, ambológera, donlessa.
Áres, Hefáistos, Adonísio, tutos
alipigmaios, atilícios, futos
da lívia damitada, organissanta,
agonimais se esforem morituros,
necrotentavos de escancárias duros,
tantisqua abradimembra a teia canta.
E no que deu o que escrevi? Pois, as coisas ainda não ficaram totalmente esclarecidas! Mas, pelo menos, saio da empreitada com um consolo e uma certeza. Consolo, por saber que, a qualquer momento, posso dizer que as minhas palavras estão lá, escritas, preto no branco, para que não restem dúvidas. E a certeza que ainda tenho um longo caminho a percorrer até aprender a me comunicar com mais clareza.

PS.: Se me dão licença, vou ali no canto ler Machado de Assis e outros notáveis para ver se aprendo alguma coisa. Pode ser que eu demore um pouco a voltar...

01 janeiro 2009

Qualidade de Vida – ou ‘Os Ratos da Cidade Vão ao Campo Passear!’

É sábado, 27 de dezembro, início da tarde. A estrada sinuosa forrada de pedras, cortando um campo amarelado de trigo recém colhido, obriga um ritmo lento e cuidadoso. A ansiedade agora é de chegar o quanto antes, para aproveitar melhor o fim de semana. Saindo da estrada logo depois da ponte e tomando um caminho estreito em subida, quase uma trilha no meio de campo e matos, deixamos para trás esta vista do trigal ao longe, que disputa espaço com plantações de pinheiro americano. Nada é perfeito. É pena, pois nesta região de uma beleza sem igual, o pinus se alastra como peste.

Junto conosco, minha esposa e eu, estão nossa filha mais nova e um grande amigo, irmão de coração, momentaneamente desgarrado da sua família. Estamos a caminho do sítio de outro bom amigo que, por excesso de confiança, há tempos nos deu cópia das chaves dos portões que fecham os terrenos vizinhos que temos de atravessar. Da casa não nos deu cópia da chave porque a porta permanece fechada, mas não trancada. Quem chega, gira a maçaneta e entra. Ele e a esposa ficarão por lá até início de janeiro e nos convidaram a aparecer, mas não sabem que estamos indo. Reforçamos a despensa e a cerveja já vai no isopor com gelo. Nem precisa avisar, somos sempre bem vindos.
Estes momentos no sítio, que chamamos de estância, não têm preço. O valor da paisagem, da natureza intacta, da boa companhia, da conversa fácil, descompromissada, séria ou bem humorada, regada a café, cerveja gelada ou chimarrão, não se mede nem se conta. São momentos que existem e pronto. Nós os vivemos, usufruímos, eles nos alimentam e nos unem, e crescemos como gente e como amigos. Simples assim.
Ainda no sábado, final de tarde, quase sete horas, uma caminhada de 20 minutos até a cachoeira para desenferrujar as juntas. O sol estava baixo e não iluminava mais a cachoeira [por isso a má qualidade das fotos], com seus paredões de pedra no formato de uma ferradura e a queda d’água com uns 9 metros de altura. Água rala, muito tempo sem chuva consistente, mas ainda assim uma bela vista. Ajeitar-se nas pedras e pensar na vida ouvindo a música da cachoeira foi um convite pro cochilo, que não aconteceu por causa das pedras jogadas na água para molhar os incautos! Coisa de crianças cinquentonas... Em tempos normais, as pedras onde eu me encontrava ficam cobertas pela água, e o espetáculo da cachoeira é de extasiar.

No domingo de manhã, sob um sol cozinhante, o trabalho pesado de reforçar o portão antigo de madeira bruta pintada de branco e substituir os palanques que o sustentam, e esticar os fios de arame farpado. Terminamos exaustos, mas satisfeitos pelo serviço bem feito. À tarde, depois de um arroz com galinha preparado no capricho pelo nosso amigo desgarrado, um banho de chuva – coisa de crianças, claro – que caiu só o suficiente para amenizar um pouco o calor.

A volta para casa foi como sempre é, um tanto melancólica, pois sempre queremos ficar mais um pouco, e também muito tranqüila, pela satisfação da saída da rotina, do convívio amigo e fraterno, e da paisagem de um fim de tarde de verão, que proporciona, entre tantas coisas, um olhar diferente sobre aquela imagem da vinda no dia anterior.

Como sempre se despede o Brancaleone, um assíduo freqüentador da blogosfera, para fazer inveja a nós, ratos da cidade, só resta dizer:
— Sorry, urbanóides!