26 novembro 2013

12. O Coronel e o Estranho Caso da Muda

O coronel Gumercindo Neto pigarreou, tirou o palheiro do canto da boca e deu uma última cuspida na poeira do chão batido do galpão, que respingou na bota do Vassourinha, antes de repetir, irritado:
— Já disse que não sei onde está a muda! – levantou-se do banquinho e deu dois passos até o portão que dá para a mangueira – Só porque ela estava aqui na estância não quer dizer que eu tenha que saber onde anda!
Cuspiu de novo e acertou o Traíra passando, que estaqueou do susto, depois olhou de canto, rosnando, e foi esfregar a cara na grama para limpar a baba grudenta.
— Mas não é possível que não saiba, Arrudão, você mora aqui! – o sabidinho que fala javanês andava de um lado pro outro tropicando nos buracos do chão do galpão.
— Claro que moro, ora essa! Mas já perguntou pros outros, por acaso? Eles não saem daqui, parecem uns carrapatos, só falta virem de muda!
— Eles viram a muda?
— Mas quem disse que eles viram a muda? Eu não disse que eles viram a muda, eu disse que só falta eles virem de muda! Mu-dan-ça... – soletrou rosnando – Trazer as tralhas, o cachorro, a sogra... Entendeu, sabidinho?
— É uma indireta? – perguntou o arrumadinho de olho azul, sentado com as pernas boleadas num banquinho do outro lado do galpão, batendo a brasa do palheiro com a unha do mindinho. Nem esperou a resposta do Arrudão:
— Por que se for, diga, que eu já tenho outro sítio pra ir, é dum parente meu lá no Campo Belo, ele disse que não precisa nem pedir, é só aparecer. Não tem nem portão prá abrir...
— Báh... Mas nem vou comentar, arrumadinho, era só o qu... áááái!! Mas o que é que deu neste bicho? Traíra dos infernos, o que é que deu em você, demonhento? – o Traíra fez um risco por baixo do portão, e sumiu, vingado pela cuspida no olho – Vocês viram isso? Viram isso? Me mordeu o garrão esse cusco imprestável!
— Não mude de assunto, Arrudão... E então, ninguém tem nada pra dizer?
— Uma muda? De quem é que vocês estão falando? – perguntou o esquentadinho da cidade.
— Eu até tinha... – assoprou o enrugadinho transcendental, afundado na rede, junto com a fumaça dum palheiro de carqueja brava – Mas tô meio sem vontade!
— Pois desembucha, enrugadinho, prá ver se esta criatura para de incomodar com essa história de sumiço!
— Então tá, então eu digo. Mas só porque o Arrudão pediu. Ó, a última vez que eu vi a muda ela tava encostada ali na cerca da mangueira, perto do portão. Daí, foi só o tempo d’eu virar, quando vi, não vi mais ela... puf!, tinha sumido. E ó, não quero fazer fofoca, mas eu acho que foi o sabidinho mesmo que carregou ela ali pros lado da lagoa. Pediram, né, falei!
— Claro que fui eu, sua anta, e deixei ela lá embaixo perto do pontilhão, e não tá mais lá! Um de vocês deu sumiço nela, só pode! O colafina, por exemplo, desde o primeiro dia foi contra eu trazer a mu...
— Mas quem é essa muda de que vocês estão falando? – insistiu o esquentadinho da cidade, atalhando o sabidinho.
— Quero deixar bem claro que estou chegando agora, não sei de nada, e nunca vi essa tal de muda, nem mais gorda nem mais magra – emendou o engatadinho tântrico, equilibrando-se num pé só e aloitando com um palheiro que mais parecia um charuto.
— Ser contra não significa que eu tenha sumido com ela, sabidinho! Afinal, que direito eu tenho? A vida é tua, você faz o que quiser com ela, e com a muda.

As circunstâncias pesavam contra o bostinha colafina. Desde que o sabidinho declarou suas intenções, ele questionou a sua utilidade, demonstrando que existem formas mais práticas de resolver suas necessidades, ainda mais que é coisa pro futuro, só para quando ele vier morar por aqui depois de aposentado. Mas o sabidinho, depois que encasqueta, quem convence?

— Ó, não é que eu queira semear a cizânia, mas o colafina foi várias vezes lá pros lados do pontilhão, sozinho, facãozão na cintura, e tal, sei lá, mas ó, aí tem coisa. Veja bem, não que eu tenha visto, não, isso não, só me disseram, de fonte fidedigna, entende? – emendou o enrugadinho.
— Fidedigna, né? – ironizou o bostinha colafina. – O doutorzinho cascagrossa também foi praqueles lados, então por que não perguntam pra ele?
— Eu já disse antes que o sabidinho fez bobagem, mas a vida é dele, ele é maior de idade e faz do jeito que quiser, então eu não me meto. Mas que fez bobagem, isso fez! – vaticinou o doutorzinho, com os braços cruzados e balançando a cabeça com o beiço esticado na direção do sabidinho.
— O sabidinho fez bobagem com uma muda? – perguntou o esquentadinho, já meio nervoso por ninguém responder suas perguntas.
— Fez bobagem coisa nenhuma! Fez bobagem coisa nenhuma! – pulou lá do canto o vassourinha pro meio do galpão abraçado num garrafão de água de privada – Tá certo o sabidinho! Daqui um tempo, quando ele precisar, a muda vai estar crescida, encorpada, roliça, daí é só usar, e ninguém vai ter nada com isso! Tá certo o sabidinho!
— Volta pro canto, ô sua fonte fidedigna! Pensa que não sei que é você que está enchendo a cabeça do sabidinho, dizendo que eu estou envolvido no caso dessa muda? Até o enrugadinho já pensa que fui eu que...
— Você está tendo um caso com uma muda, colafina? Minha nossa! Logo você, casado, todo certinho? Cara, só porque é muda não quer dizer que não seja filha de Deus, poxa vida, não esperava isso...
— Do que é que você está falando, esquentadinho? ‘Cê tá louco? – e o colafina virou pro sabidinho – Viu só o que você está fazendo, sabidinho? Viu? Tá contente? Essa bobagem já está virando um entrevero de facão no escuro!
— Mas eu é quem trouxe a muda, ninguém podia mexer com ela! Era minha, pro meu uso! – protestou o sabidinho no meio do galpão, abrindo os braços, exaltado.



— Óuuunnnnn... Óuuunnnnn... – o engatadinho tântrico levitava na posição de lótus, surgindo dentre a fumaceira sobre a rede onde o enrugadinho carquejava, enquanto entoava um mantra entre uma baforada e outra do palheirão – Vamos todos respirar profundamente. Inspirem... cóf! Acalmem os ânimos... Expirem... Pacifiquem a alma... Inspirem... cóf! Harmonizem o espírito... vamos lá, agora expir...
— Mas ela não pode ter sumido por conta própria? Não pode? – questionou o bostinha colafina, enquanto o engatadinho continuava falando prá ninguém. — Por que algum de nós tem que estar envolvido no sumiço dela? Você não acha que...
— Afinal, alguém, por-fa-vor, pode me dizer quem é essa muda? Como é o nome dela? Não tem família? Ninguém viu ela, um parente, vizinho, sei lá, alguém que possa informar onde ela se meteu?
— Como assim o nome dela, família, vizinho? Deixa de ser tanso, esquentadinho! – estrilou o sabidinho – Nós estamos falando de eucalipto. Eu-ca-lip-to! Árvore, entendeu?
— Eucalipto? Como assim, eucalipto? Esse bochincho todo por causa de uma... muda de eucalipto?
— Mas é claro! Você pensou que fosse o qu...
O banquinho acertou de prancha a testa do sabidinho, que caiu de comprido no chão do galpão, levantando poeira!

O esquentadinho não apareceu mais na estância do Arrudão desde que levou um corridão de lá, imediatamente após o acontecido. O sabidinho continua com a marca do nó da madeira na testa, e jura que não sabe o porquê, para sorte do esquentadinho.

Até hoje, o sumiço da muda continua um mistério.
Ilustração: Colafina