01 fevereiro 2010

Sobre Velório e Inquietude

Acabo de ler o texto no qual o Rafael Galvão descreve em seu último parágrafo, em três linhas, o que para ele foi o enterro mais pungente de sua vida, e lembrei-me daquele que para mim foi o velório mais inquietante, e do qual fui apenas um fugaz expectador. Infelizmente não saberei ser tão sucinto quanto ele.

Há alguns anos, voltando para casa após uma festa de aniversário na casa de um amigo, por volta das 3:00h da madrugada gelada de um domingo de inverno, passamos em frente a uma capela mortuária na rua ao lado do principal cemitério da cidade. Em frente à capela não havia ninguém, e na rua nenhum carro estacionado. No interior da capela iluminada, podia-se ver pela porta de vidro fechada, na sala cercada de cadeiras vazias, um caixão, com duas velas grandes acesas aos pés de um ornamento metálico na parede ao fundo, e nenhuma coroa de flores ou outro arranjo de qualquer tipo. À esquerda, na primeira cadeira encostada à parede, uma única pessoa velava aquele corpo. Sentado com as pernas e os braços cruzados, protegido do frio encolhido dentro de um pesado casaco com as golas levantadas e com um gorro de lã que cobria as orelhas, um homem dormia com o queixo afundado no peito. Um arrepio estremeceu todo meu corpo naquele momento, e não foi pelo frio da madrugada.

A angústia que senti ao ver a absurda solidão daquela cena perdurou por semanas, e retorna com a mesma intensidade sempre que a relembro, mais ainda agora em que a descrevo. Sempre me questionei se a existência daquela criatura sendo velada foi tão vazia quanto seu velório, ou se alguma outra obscura circunstância desenhou tão amargurado quadro. Nunca o saberei.

4 comentários:

  1. Minha vó, quando faleceu, só teve o corpo liberado já de tardezinha, quando não se podia mais sepultá-la no mesmo dia.
    Todos estavam cansados e tristes e conforme a noite foi avançando, um por um acabou indo para casa pois, afinal, nossa vida não findou.
    Conversamos com o responsável do velório e ele nos assegurou que podíamos ir para casa, que ele trancaria a salinha.
    É meio estranho deixar um corpo para trás. Mas fomos embora.

    No dia seguinte levamos o maior sermão de uma vizinha que achou um absurdo deixarmos nossa vó lá sozinha. Ela quem ficou a noite toda velando o corpo.

    Não abandonamos nossa avó, ela já estava morta, era apenas um corpo. Velá-la com choro, desespero e tal não é proporcional ao amor que sentíamos por ela. Isso está em outra parte do corpo ou alma, sei lá, mas acho que esse ritual, que sempre me pergunto o porquê, não está com nada...

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  2. Oi, Nhé!
    Vc está certa quando diz que no caixão existe somente um corpo sem vida. A atitude de sua família foi de ordem prática e racional. Aos meus olhos não foi absurda, como disse aquela vizinha.

    Mas convenhamos que não é uma atitude comum, corriqueira. A maioria consideraria, no mínimo, muito estranha e desrespeitosa, baseando-se principalmente na tradição e em crenças religiosas.

    Acredita-se que este ritual tenha se originado na Europa durante a Idade Média, como forma de evitar enterrar viva uma pessoa com narcolepsia. Mas também é para dar tempo de amigos e parentes despedirem-se do morto, e consolar aos familiares. Deve ser isso...

    Muito bom te ver por aqui!

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  3. Me fizeste lembrar de meu Sombrio com seus velórios, no salão paroquial ou em casas, com os homens fumando na rua, as mulheres na cozinha, passando o indefectível café ou puxando uma reza em torno do caixão; em alguns lugares do estado existe a tradição das '7 excelências' que foi descrita inclusive por Camara Cascudo. Em rodas conta-se histórias e anedotas do falecido-para darmos conta de relembrarmos todos os causos de meu avô, começamos cedo e tivemos que acelerar e emendar um noutro pra que o caixão não fosse fechado com algum pela metade, tantas fez o velho Pedro Borba.
    Há também aqueles que estão em todos os velórios, de conhecidos ou não, consolando a família ou apenas como discreta figura neste ritual.
    De quando em quando passa um prato com uma fritada de pastéis, ou roscas de polvilho que são bem molhadas na caneca de café preto...

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  4. Puis, Torero! Causos quase sempre rolam, principalmente se o passamento não foi muito traumático. Mas, que eu me lembre, nos velórios que compareci nunca teve mais que cafezinho preto e bolacha recheada "... no balcãozinho ali na entrada!" :-)

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