29 março 2009

Sobre Sótãos, Escritórios e Outras Lembranças!

Aproximadamente 400 volumes de livros e revistas que um dia fizeram parte da biblioteca de meu pai estão hoje, por empréstimo à família, à minha frente, mal acomodados nas prateleiras de duas estantes que ocupam toda uma parede do escritório aqui de casa. Por empréstimo, pois ainda são da família, estão aqui porque fiz questão de mantê-los comigo e também porque nenhum dos meus irmãos tinha espaço suficiente para acomodá-los.

Cresci enfurnado no escritório[1] apertado da casa de meus pais, onde se misturavam livros, revistas, mesa para desenho, banqueta, rolos de papel vegetal, escrivaninha, cadeira, uma caixa enorme para guardar as plantas com projetos arquitetônicos, réguas de todo tipo e tamanho e, ocupando quase meia parede, prateleiras lotadas de canetas e penas para desenho, vidros de tinta nanquim, lápis, borrachas e tudo o mais que se utilizava na época em desenho técnico, a maioria acondicionada em caixinhas de metal com tampas de dobradiças, que originalmente embalaram lápis >>LOTUS<<, da Johann Faber. Uma destas caixinhas está aqui ao lado do teclado, com algumas canetas para nanquim com cabos coloridos, e um compasso tira linhas. A última vez que usei uma destas canetas bico de pena foi em meados da década de 70, durante uns três ou quatro dias em que fiquei de molho num quarto do sótão[2] por conta de uma virose qualquer dos tempos de juventude, quando rabisquei uma folha de cartolina que acabou virando um quadro, pendurado na parede atrás de mim.

Ainda hoje estes livros, tão familiares, com capas descoradas, amareladas, muitas delas estragadas pelo uso ou carcomidas pelo tempo – são livros das décadas de 30, 40 e 50 – trazem à memória a lembrança de bons momentos passados naquele canto muito especial da nossa casa, lendo vários destes mesmos livros hoje na minha estante, folheando revistas, navegando pelo mundo e pelo espaço nas páginas dos atlas[3] e devorando Seleções do Reader’s Digest.

Por estes dias, acabei folheando novamente uma daquelas revistas, a Revista Esso, uma publicação bimestral da Esso Standard do Brasil Inc., com Théo de Castro Drummond como Redator-Responsável. A melhor analogia que me ocorre é que ela seria uma espécie de Superinteressante daquela época, com a diferença de haver muitos artigos sobre obras do governo e sobre trabalhos de pesquisa e desenvolvimento da própria Esso. Tenho comigo 19 números, do 3º bimestre de 1956 ao 4º bimestre de 1960, com 7 números faltando neste intervalo. Em média 12 matérias em 24 páginas de folhas grossas, já meio amareladas. O que desencadeou estas memórias foi uma matéria no exemplar do 3º bimestre de 1957 – exatamente da minha idade, portanto – sob o assunto “Pioneiros da Indústria: Aparelhos de Ótica e Precisão”, que transcrevo literalmente:

"Em 1940, um rapaz de Santos (S. Paulo) escreveu ao Pre­sidente da República, apresentando um novo modêlo de telêmetro de depressão se propondo a fabricar aquêle ins­trumento – que até então era importado – para a Artilharia de Costa. Seis meses depois, era chamado à presença do Ministro da Guerra, para explicar detalhes do projeto. E demonstrou tamanha convicção da exequibilidade de seu plano, que voltou à sua terra com ajuda oficial para iniciar o trabalho. Seu nome: Décio Fernandes Vasconcelos.

Surgiu, aí, o primeiro grande problema: o rapaz tinha idéias, tinha mesmo algum dinheiro, mas não tinha onde fa­bricar o telêmetro, nem pessoal especializado. Isso, porém, não seria obstáculo. Décio lembrou-se de que, em 1922, com 13 anos de idade, fabricara no porão da casa de seus pais um rádio-receptor. Por sinal, na época, aquêle aparelho era privativo do Exército e por isso o pai do "inventor" teve de dar explicações à Justiça. Em segui­da, Décio (que tinha um comportamento "diferente" dos meninos de sua idade) foi levado pelo progenitor a um médico, para saber como andavam suas faculdades mentais...

Agora, para fabricar um aparelho ótico que se rivalizasse com o importado, era preciso um pouco mais do que um simples porão. Tratou de mudar-se para São Paulo e comprou oficina, na rua Mauá, onde começou o trabalho. Tempos depois, voltou à presença das autoridades mi­litares, levando debaixo do braço o primeiro telêmetro fa­bricado no Brasil. E o aparelho, submetido à prova, demons­trou ser tão bom ou melhor do que o importado.

Hoje, aquêle moço de Santos possui a única fábrica sul­-americana (e sétima, em importância, de todo o mundo) de aparelhos de ótica e precisão. Ali, sob a supervisão do próprio Décio, perto de quinhentos operários e dezenas de en­genheiros especializados produzem, além do telêmetro de precisão, 81 outros produtos, entre os quais binóculos, lunetas oftálmicas, teodolitos, lentes para projeção de cinemascópio, máquinas fotográficas e o poliópticon – um brinquedo muito interessante e de múltiplas aplicações, cuja licença para fa­bricação na América do Norte já foi solicitada por duas conhecidas firmas especializadas dos Estados Unidos.”

Eis que, ao bater o olho na foto da linha de montagem, algo chamou a atenção: aquelas caixinhas com cara de bonecos de olhos e boca arregalados não me eram estranhas! Pois, ali estava registrado para o futuro a linha de montagem das máquinas fotográficas modelo Kapsa, do tipo caixinha, e eu tenho comigo uma dessas, também herdada de meu pai, embalada em sua caixa original e devidamente acompanhada do seu manual!

Liguei para minha mãe, e ela confirmou que muitas das fotos antigas que ela tem guardadas em álbuns e caixas, foram batidas com esta máquina. Fabricada na década de 50, era robusta e resistente a quedas. De funcionamento simples, apenas três ajustes manuais de abertura do diafragma e duas velocidades de disparo, uma delas também manual, determinada pelo tempo que se mantém o disparador pressionado, e para ver a imagem pelos visores era necessário segurá-la na altura da barriga.

Está em bom estado de conservação e, apesar de um pouco de poeira, nenhum dano aparente em seu mecanismo e suas peças. Acredito que ainda deve bater boas fotos, se encontrar o filme recomendado. E é claro, também precisa descobrir quem o revele! Quem sabe um dia, quando bater novamente a nostalgia de um tempo muito bom, de tantas e tão boas lembranças!


_________________________Notas de rodapé:
[1] – A simples palavra escritório exerce sobre mim um fascínio difícil de explicar. Sempre me lembrou livros, pesadas mesas com muitos papéis, lápis, canetas, luminária de mesa e máquina de escrever que, de uns tempos pra cá, foi substituída pelo computador. Acho estranho uma casa sem escritório, senão uma peça exclusiva, mas pelo menos um canto com prateleiras, livros e uma mesa para trabalho.
[2] – Tenho fascínio também por sótãos, e isso é uma coisa mal resolvida na minha vida! Morei em uma casa com sótão por poucos anos durante a juventude, e depois de adulto morei ano e pouco num quarto de pensão, também no sótão. Depois disso, casa, apartamento e casa novamente, com dois pisos, mas sem sótão. Acabei privando meus filhos de sentir o prazer de dormir num sótão, embalado pelo barulho de chuva em telhas de barro. Terei que conviver com isso para todo o sempre!
[3] – Atlas é caso de obsessão mesmo, tenho vários, desde aqueles da minha infância até os adquiridos mais recentemente, quando imaginei que meus filhos herdariam o gosto. Mas aí apareceu um tal de computador e uma tal de Internet, e nada mais aconteceu como combinado. Eles até folhearam seus atlas escolares, que acabei herdando deles, mas não passaram disso. Pena, também não sentiram o prazer de descobrir o mundo e o universo nas mágicas páginas de um atlas.

5 comentários:

  1. Impressionante,

    Lendo e vivendo cada momento, cada situação, cada imagem do escritório antigo, da coleção agora em novo lugar, da máquina e das Seleções, que tanto li.

    Este post é pra colocar em livro.

    Parabéns, sinceros parabéns.

    ResponderExcluir
  2. Roberto Garcia31/8/09 19:19

    Foi uma grata surpresa encontrar essa bem-escrita matéria sobre Décio Vasconcelos, de quem sou parente distante e com quem tive a honra de conviver durante alguns poucos anos quando morei em SP. Trabalhando sob seu comando na DFV, no início dos anos 70, pude absorver muito da sabedoria desse homem singular, cuja história era contada na família. Vejo aqui, com indizível prazer, uma parte dessa história publicada, inclusive com detalhes que desconhecia. Muito obrigado ao autor. Ficaria feliz em receber mais informações sobre o assunto

    Roberto Garcia
    paragon_br@yahoo.com

    ResponderExcluir
  3. Roberto,
    Infelizmente, não tenho muita coisa a mais, o texto em itálico é transcrição literal da reportagem original da Revista Esso, da qual enviarei à você uma reprodução, por email.

    Obrigado pela visita, apareça sempre!
    Um abraço.

    ResponderExcluir
  4. Olá.

    Depois de muito tempo pesquisando sobre a DFV, e teodolito vasconcelos e buscando alguma informação sobre essa pessoa singular que foi Décio Fernandes Vasconcelos para uma pesquisa na Universidade Federal do Paraná. Venho encontrar aqui, grandes e preciosas informações sobre a importância da DFV no cenário nacional. Obrigada por essa publicação!

    Quase dois anos se passaram e pode ter certeza que essa publicação será muito comentada na universidade e seu blog também!

    Ficaria muito grata em receber mais informações se possivel. (paulagoulart@ufpr.br)

    ResponderExcluir
  5. Quantas histórias de vida não teve a fabrica na avenida Indianopolis!

    ResponderExcluir