24 dezembro 2007

Viagem no Tempo

O exemplar nº 0 (zero) da revista Superinteressante foi publicado em setembro de 1987 com poucas páginas e apenas 3 matérias, pois era uma apresentação da revista propriamente dita que seria publicada no mês seguinte. Em meados de 1988 eu fiz a assinatura da revista, que mantenho até hoje, apesar de ter à minha disposição uma coleção de CD’s com todas as edições desde o início até junho de 2005, lançados em comemoração aos 18 anos da revista. Do lançamento à assinatura, adquiria os exemplares na banca.
No ano de 2000, com a intenção de organizar e proteger as revistas resolvi acondicioná-las em pastas do tipo Polionda, e neste trabalho descobri que faltavam seis edições na coleção. Em poucos meses, encontrei cinco delas em sebos da cidade. Hoje, dia 21 de dezembro de 2007, após quase sete anos de busca, encontrei a única edição que ainda me faltava, a nrº 3, coincidentemente publicada em dezembro de 1987, há exatos 20 anos! Como acontece todo mês ao receber o exemplar da revista, mas com o sabor especial de ter em mãos uma raridade e a satisfação de tê-la encontrado, devorei a edição em pouco mais de uma hora.
Na seção Grandes Idéias, a matéria ‘O computador’ conta resumidamente em duas páginas a história da máquina que começava a se tornar conhecida do grande público, do usuário leigo, e a entrar em suas casas nas suas versões mais primitivas, e na seção Cartas dos Leitores depoimentos da adida de imprensa do Consulado Geral dos EUA em São Paulo e do ministro da Ciência e Tecnologia elogiavam a iniciativa da Editora Abril e a qualidade da revista.
Mas em uma matéria de tecnologia, ‘O Computador Levanta Vôo’, experimentei a sensação ímpar de comprovar o acerto – e também o desacerto – de algumas afirmativas e previsões. O texto fala de um supercomputador instalado na NASA que simula testes de aviões, o Cray-2, com 8 processadores, clock de 2 GHertz e memória de 256 MB, que esquentava tanto para realizar seus cálculos que a refrigeração era feita com fluido de Fluorcarbono (ou fluourinert), o mesmo utilizado em transplantes de coração, escolhido por ser incolor, inodoro, atóxico, não inflamável e ter alta estabilidade térmica e capacidade de transferência de calor. Este fluido circulava entre os circuitos para captar o calor e depois de resfriado em uma unidade externa retornava ao equipamento, mantendo assim a temperatura em níveis aceitáveis, exatamente como é feita a refrigeração dos motores dos nossos carros. Na época existiam uns trezentos supercomputadores, dos quais apenas 27 Cray-2, concentrados nos Estados Unidos, Canadá, Japão e países da Europa, que não vendiam para ninguém, e quem não tinha, esperava a vez para poder comprar. No Brasil havia pelo menos 6 empresas e instituições de pesquisa interessadas, da Petrobrás ao CTA – Centro Técnico Aeroespacial. O interessante é que este supercomputador, que custou quase 20 milhões de dólares à NASA, era 16 vezes mais lento e tinha 8 vezes menos memória que o micro com o qual escrevo este texto.

Supercomputador Cray-2 e módulo de resfriamento expostos no Computer History Museum, em Mountain View, Califórnia, USA.

Sobre a simulação dos testes de aviões, a matéria cita o projeto do Expresso do Oriente, inspirado num velho sonho americano, o X-30, que voaria a 30 mil quilômetros por hora e que, além de avião comercial, substituiria os ônibus espaciais do tipo Challenger. O Expresso do Oriente foi projetado para transportar 500 passageiros, voar a 17.000 Km/h, ou 14 vezes a velocidade do som (match 14) e ligar Washington a Tóquio em três horas, treze a menos que os jatos atuais, até o ano 2000!

Ilustração: Revista Superinteressante, pág. 30, edição nr. 3, dez 87

A realidade mostrou-se bem menos audaciosa, pois o maior avião comercial voando atualmente, vinte e sete anos após a previsão, é o A380, que transporta mais de 800 passageiros, mas com velocidade muito inferior à match 14 do Expresso! Os dois maiores limitadores da imaginação dos projetistas de aeronaves, além do custo, são o barulho gerado pelos motores e o alto consumo de combustível. O maior exemplo que temos é o fracasso comercial do Concorde, cujo último exemplar em operação encerrou as atividades em outubro de 2003, e hoje é visto apenas em museu. Ele era autorizado a voar acima de match 1 apenas sobre oceanos e grandes áreas desabitadas, como os desertos, por causa do barulho, e consumia 20.000 quilos de querosene por hora de vôo transportando apenas 100 passageiros, contra os 350 passageiros que o Boeing 747 transporta consumindo bem menos combustível.
As grandes realizações do homem nascem com um sonho, e não custa sonhar. Mas custa realizar, e por isso um sonho pode ser adiado por muito, muito tempo, até tornar-se realidade. Quem viver, verá!

16 dezembro 2007

Verborragia é isso...

Que o bimbalhar dos sinos
e o tresloucar dos gargalhões
imantem os eflúvios cumulativos peremptórios
para os perpassares antológicos
das excelsas veredas pinaculares!
Ora, se.
Adesivo colado no vidro traseiro de uma Caravan estacionada em rua central de Florianópolis em janeiro de 1978. A tradução conservadora do texto é "Feliz Natal". Há quem queira acrescentar "...e Próspero Ano Novo", mas assim também já é demais...

04 dezembro 2007

Questionar é Preciso


Sidney Harris (ScienceCartoonsPlus.com), em "A Ciência Ri" - editora Unesp

Nós Merecemos o que Queremos?

Crítica a respeito da decisão dos empregados da Caixa, agência Lages/SC, durante a greve de 2005, de interromper a paralisação iniciada apenas um dia antes. Lages, SC, outubro 2005.

Em abril deste ano recebemos pelo CaixaM@il uma mensagem do nosso colega Nelson Guimarães na qual transcrevia o texto de Aldo Novak, sobre frase de James Allen: “Por que? Por que não? Por que não eu? Por que não agora?". Naquela época, chamou-me a atenção pela sua simplicidade e pela lógica do raciocínio.
No curso de computação somos sistematicamente orientados a pensar logicamente. As coisas na nossa cabeça com o tempo tendem a se resumir em [uns e zeros], [se isto então aquilo], [falso ou verdadeiro]. Mas, claro, nem tudo é lógico. Aliás, pouca coisa o é. Gente é ilógica! Talvez isso explique o estigma que persegue e rotula como fora da casinha os que se dedicam em tempo integral à ciência informática. Para estas pessoas, é tão difícil entender e aceitar a imponderabilidade das coisas e das pessoas, que estes malucos preferem o isolamento das linhas de código e dos compiladores ao convívio pernicioso do pensamento não lógico. Ainda se fosse não pensamento lógico, vá lá...
Lembrei daquele texto hoje, ao sair da nossa assembleia que decidiu pela interrupção da greve.
Mesmo sem a preocupação com a sistemática, e sem nem nos darmos conta, na semana passada acabamos seguindo o roteiro sugerido: — Por quê? Por que estamos reunidos? Para questionar nosso presente, e discutir nosso futuro, com certeza. O que temos hoje é suficiente? É o que precisamos? É só o que a Caixa pode nos oferecer? Pior: será que é só o que merecemos? E o que queremos para nós amanhã? Sobrevivermos, simplesmente? Queremos mais dignidade, pelo menos. Mais respeito. Queremos ser ouvidos, e ser valorizados. Nada de extraordinário, só o básico. Tipo assim, pagar as contas em dia, entende? — Por que não? Por que não dizer à Caixa da nossa insatisfação, da nossa discordância? Se a Caixa mexe há tanto tempo no nosso bolso, por que não podemos mexer no bolso da Caixa? Assim seremos ouvidos, com certeza. Por que a Caixa ofende nossa inteligência ao negar um reajuste mínimo, ao mesmo tempo em que alardeia um lucro bilionário no primeiro semestre do ano? Por que temos que acreditar que quatro por cento é tudo que pode ser dado? Por que não usarmos do recurso mais radical ao nosso alcance? Por que não entrarmos em greve? — Por que não nós? Se a adesão à greve ainda não é consistente, por que não fazermos a nossa parte, mesmo que para isso tenhamos que dar o primeiro passo? Por que não podemos ser a primeira agência a fechar no interior? Por que temos que esperar pela iniciativa de Florianópolis, Chapecó, Santo Antônio da Boa Vista, Icó, Brasília ou Santana do Parnaíba? Se é o que queremos, e no que acreditamos, por que não podemos fazer? — Por que não agora? Se não fizermos nossa parte porque outro ainda não fez a sua, corremos o risco de ficarmos esperando uns pelos outros, e nada ser feito. Por que não fazemos nossa parte agora? Estaremos dando exemplo para quem espera por um, e ao mesmo tempo estaremos dizendo estamos com vocês àqueles que tomaram a iniciativa antes de nós. A força do todo é a soma do esforço de suas partes. Por menores que elas sejam.
Tomamos uma decisão madura. Cumprimos os compromissos assumidos com as gerências. Negociamos as situações imprevistas. Paralisamos a agência na segunda-feira, dez de outubro, como nunca havia sido feito, e sem tropeços, sem tumulto e sem um desgaste significativo. Fomos conscientes e responsáveis na execução daquilo que responsável e conscientemente decidimos. Mas no final da tarde...
Na minha opinião, fizemos tudo certo. Tomamos a decisão de parar, paramos, demos o nosso recado com competência. Com certeza encorajamos a parar muitos que esperavam pela iniciativa de alguém. Demos o exemplo. Chamamos para que nos acompanhassem, da mesma forma que nós abraçamos os pioneiros das capitais, parados desde a semana passada. Só que agora, mesmo sabendo da possibilidade de paralisação de várias unidades do estado, a decisão tomada em nossa assembleia do final da tarde foi de interromper a greve!
Agora passam alguns minutos das duas horas da manhã de terça-feira. Não sei o que vai acontecer hoje nas outras agências, nas outras cidades, nos outros estados. Pelo menos para mim, não importa se vão parar ou não. Independente do que aconteça em âmbito nacional, sinto que o que fizemos não passou de fogo de palha. Faltou-nos a coragem, não acreditamos o suficiente, talvez. Não cabe a mim – nem a ninguém – questionar a decisão de nenhum dos colegas presentes na assembleia. Não tenho este direito, cada um sabe os motivos da decisão que tomou – a de manter a greve, a de interrompê-la, a de abster-se também, e esta decisão deve ser respeitada por cada um de nós. O problema é que não conseguiria dormir sem externar o sentimento de frustração que me assolou, por não conseguir entender por que paramos no nosso melhor momento. Apelei para a lógica, e mesmo assim não encontrei uma resposta. Provavelmente porque não haja apenas uma resposta. Talvez ainda precisemos do exemplo e da iniciativa dos outros para apoiar nossas decisões. Talvez não sejamos maduros e conscientes o suficiente para saber o que queremos. Talvez mereçamos mesmo só o que a Caixa nos oferece.
Acenamos com um caminho, e nos contentamos com um atalho.
Alexandro Reis.
(11out2005)

6. Aventuras do Coronel

(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto olhou-se no espelho por cima do ombro, depois de frente, de lado, de frente de novo. A Tetê segurava o riso enquanto olhava lá da sala com o canto do olho. Não é que o seu Arrudão estivesse ridículo, imagina, claro que não, mas é que aquele calção vermelho, curto e bem apertado não combinava com o estilo socadinho e meio bruto do coronel. Juntando a camiseta branca, modelo regata uns três números menor que a barriga já saliente, e completando o quadro, meia social curta marrom e tênis Kichute, ficava ridículo uma bar-ba-ri-da-de!
O coronel ainda não tinha falado nada. Fazia quase hora que andava do quarto pra sala, da sala pra cozinha, voltava pro quarto. Parava em frente ao espelho, sério, desconfiado, depois saía, voltava e se olhava no espelho de novo.
— Tá preocupado com alguma coisa, amor?
— Não sei... estou me sentindo esquisito vestido assim. Não estou parecendo ridículo?
— Ca-paz, amor. Este uniforme ficou muito bem em você!
Virou o rosto e fez de conta que fazia alguma coisa, estava difícil ficar séria olhando prá ele.
O coronel se preparava para um campeonato de peteca nas terras do doutorzinho casca grossa, lá pros lados do Capão Alto. Já não tinha mais idade para atividades violentas deste tipo, mas neste caso estava abrindo uma exceção porque outros conhecidos seus também participariam. Eram todos homens calejados como ele pela dura lida das estâncias e fazendas, e mais alguns colafinas da cidade. Como os jogos seriam de duplas, decidiu convidar o arrumadinho de olho azul, com uma condição:
— Chegue amanhã bem cedo aqui na estância – disse ao telefone pro arrumadinho – no máximo às 6:00h.
— Mas o jogo é à tarde, Arrudão, por que tão cedo?
— Porque nós vamos a cavalo, homem!
— Mas são quase trinta quilômetros! Só de ida...
— Por isso mesmo temos que sair cedo. A peteca é um esporte violento, a peleja vai ser dura. E eu não vou me mixar indo de picape, isso qualquer um faz, mas eu não, eu quero chegar em grande estilo montado no rosilho.
Silêncio no outro lado da linha. Em seguida, hesitante:
— Legal... bom, então a gente se encontra lá...
— Mas de jeito nenhum, arrumadinho, vamos chegar os dois a cavalo, na hora do jogo, de uniforme e prontos para a batalha. O Vassourinha até já pintou o nome da nossa dupla com tinta a óleo na camiseta, “Os Brutos”, ficou uma beleza.
— Mas Arrudão, esqueceu o almoço lá na fazenda do doutorzinho? Ele já matou uma vaca pro churrasco...
— Esqueça o almoço. Churrasco tem todo dia. Já preparei um lambisco prá viagem suficiente prá nós dois, e olha, nem precisa me pagar. Ah!, ia me esquecendo, você vai com a Cheirosa, aquela égua tobiana lá do meu primo, ela tá meio velhinha e tropeça um pouco, mas ainda agüenta o tirão. Não se atrase!
E desligou o telefone. Do outro lado da linha, o arrumadinho suspirou fundo.
Chegaram quase quatro da tarde, os dois vestidos com o uniforme, calções vermelhos – bem apertados – e camisetas regata brancas. Já tinham perdido as duas primeiras partidas por W.O. Estavam estropiados. O arrumadinho apeou com esforço, quase teve que ser ajudado. Tirou a camiseta, e parecia que tinha outra camiseta branca por baixo, pois a pele dos braços, do pescoço e das pernas estava encarnada, torrada pelo sol. Cambaleou até o tanque e enfiou a cabeça debaixo da bica d’água, enquanto o coronel foi se justificar com o doutorzinho pelo atraso. Ele parecia mamado, pelo bafo e pelo ronco quando ria. Das cinco partidas do sábado, perderam as duas primeiras por W.O., outras duas tentando jogar, e na última o arrumadinho recusou-se a entrar em quadra. À noite, depois da janta e à custa de aspirina, sal de frutas e muita pomada para assadura, ele contou que desde as seis horas da manhã até a chegada, passaram comendo o lambisco preparado pelo coronel, dois ‘pão’ dormido, um pedaço de queijo e uma volta de lingüiça, e em cada uma das 47 porteiras do caminho tomavam um gole de branquinha, e entre uma porteira e outra iam encontrando peões e alguns casais com ou sem crianças, a pé, a cavalo ou de carro e todas essas pessoas, sem exceção, cumprimentavam e se apresentavam, e o coronel acabava descobrindo que era parente, ou parente de um parente, até afilhado esquecido encontrou, e lá ficava proseando, pedindo pelos conhecidos e mandando abraços e lembranças. Se estivesse embrulhado com arame farpado não enroscava tanto pelo caminho.
No domingo de manhã, depois do coronel ter bebido quase todo o estoque de cerveja do doutorzinho ainda no sábado, e do arrumadinho ter varado a noite sem dormir por conta dos pesadelos com porteiras e todos os parentes do Arrudão, as coisas não melhoraram. Perderam mais duas partidas e foram desclassificados antes das onze, mas em compensação, foram aclamados como “a dupla mais sensual”, e seus uniformes foram eleitos por unanimidade como “os mais atrevidos do campeonato”, com direito à faixa e estridente ovação pela torcida. Depois da premiação e do convite prá desfilar para a torcida, que foi gentilmente recusado com um tabefe nas orelhas do enrugadinho transcendental, o idealizador da premiação, o coronel disse para o arrumadinho:
— O trecho é longo. Vamos embora antes que inventem mais alguma bichice.
— Ih! Arrudão, olha, sei não, acho que não vai dar, tô meio sem condições, acho que vou com o...
— Nem pense nisso, tenho que levar os cavalos, você precisa voltar comigo – bafejou o coronel.
— Mas, escute, ainda tem o almoço, podemos sair à tarde – o arrumadinho ponderou administradoramente.
— Mas você só pensa em comida, abençoado? Fique tranqüilo, peguei umas lingüicinhas que sobraram de ontem e mais umas bananas e pronto, já podemos sair!
O arrumadinho suspirou fundo, levantou-se e caminhou em direção à Cheirosa como um condenado em direção à forca. Encilharam os animais ao som da gritaria da torcida em volta da quadra montada no pasto recém aparado um pouco além da roça de milho, e do vozerio e risadas dos homens discutindo futebol, política e outras bobagens enquanto aperitivavam e bebiam cerveja em volta dos espetos de lombo e costela assando no fogo de chão. O arrumadinho estava inconformado, mas aceitou vir a cavalo com o coronel e não podia deixá-lo na mão. Era uma obrigação voltar como viera. Olhou a sacola plástica de supermercado com as lingüicinhas e as bananas pendurada na sela do rosilho, olhou de novo aquele mundo de espeto ao redor do fogo, os tambores cheios de latas de cerveja cobertas com gelo, suspirou de novo e montou na Cheirosa, e conduziu o animal a passo seguindo o rosilho. Ladearam a churrasqueira, os amigos que bebiam e se divertiam e pediam que ficassem, a quadra com a torcida algazarrenta na partida final, seguindo ainda a passo em direção à porteira e ao Cajuru, distante Cajuru. Até sumirem da vista, o arrumadinho ia olhando para trás, com olhar comprido, daquele que diz ‘eu tô indo, mas queria mesmo era ficar’.
Uma semana depois da aventura, o arrumadinho, já recuperado fisicamente, relatou, com expressão de extrema angústia, a odisséia do retorno. Disse ele que, de novo, em cada uma das 47 porteiras tomaram um gole de branquinha, e encontraram novamente todos aqueles parentes da vinda, e mais alguns que haviam desencontrado, e todos eles cumprimentavam novamente, e passavam a contar o que haviam feito na casa dos parentes que foram visitar e as histórias de família, e a todos eles o coronel contava sobre o desafio da cavalgada, as porteiras, o campeonato, a sapecada do arrumadinho, e mandava lembranças e... nesta altura do relato, o arrumadinho começa a tremer, lacrimejar, pede um calmante e balbucia:
— Foi horrível, horrível... porque estas agruras só acontecem comigo? Ainda tenho pesadelos... nunca mais vou esquecer...
Mas o melhor do relato do arrumadinho aconteceu perto da estância do Arrudão. Já era noite alta, sem lua e sem estrelas, escura como breu, e a Cheirosa começou a ficar inquieta. O coronel conduzia o rosilho prum lado, depois voltava, ia por outro lado, a égua negaceava, bufava, o Arrudão resmungava, o arrumadinho desconfiou que alguma coisa estava errada, até que não se conteve:
— Ô Arrudão, o que é que está havendo? Perdeu o rumo?
— Era só o que me faltava! E eu sou lá homem de perder o rumo? Eu me criei nestes campos, posso cavalgar até de olhos fechados! Estes bichos é que estão esquisitos, devem estar com fome ou sede, ou viram cobra...
O arrumadinho não falou mais nada. O coronel continuou bufando, praguejando, resmungando, e nada de sair do lugar, até que deu a mão à palmatória.
— Olha, eu estou meio tonto pela branquinha...
— Ééé... beber com barriga vazia dá nisso...
— Não é isso! Eu estou dizendo é que você pode até não acreditar, mas acho que me perdi...
— Mas eu acredito, Arrudão, eu acredito.
— Ainda se tivesse uma lanterna... Bom, é o seguinte, vamos voltar até a entrada do sítio do Firmino, de lá eu encontro o...
— Arrudão, vamos soltar os animais, quem sabe eles se localizam? – o arrumadinho sugeriu, impaciente. O coronel riu e ironizou:
— Ah, tá! Eles vão acender os faróis e achar o caminho, é isso? Era só o que me faltava!
Mas a rédea solta e um tapinha no pescoço fez com que a Cheirosa desse meia volta e, seguida de perto pelo rosilho, num passo nervoso, contornasse o capão que o coronel insistia em atravessar. A velha égua cruzou a sanga que cortava o mato ralo, subiu um trecho de campo com vassouras até chegar numa taipa com pedras caídas, mais um trecho no meio de vassouras, e por entre as árvores na beira da trilha surgiram as luzes da estância do coronel!
O coronel tomou a dianteira, e resmungou o resto do caminho. O arrumadinho achou melhor ficar quieto. De vez em quando a Cheirosa bufava e o rosilho virava e balançava a cabeça, dando pequenos relinchos, como que dizendo – ‘eu sei, eu sei...’. Arrudão nunca mais tocou neste assunto, e nunca confirmou a história. Para falar a verdade, também nunca desmentiu...