24 novembro 2007

Somos o Que Fazemos


Quino, ou Joaquín Salvador Lavado, nasceu a 17 de Julho de 1932, filho de imigrantes espanhóis, andaluces, na cidade de Mendoza na Argentina.

11 novembro 2007

5. A Barganha do Coronel

(Esta é uma obra de pseudo-ficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto deu mais uma cuspida no capim molhado pela chuva na tarde sem graça daquela quinta-feira abafada. Estava há mais de hora debruçado na janela, pitando palheiro e pensando na lida parada. Tetê ressonava estirada no sofá, embalada pela televisão ao som da reprise de uma novela, e que ela jura que não perdeu nenhum capítulo. O gado pastava tranqüilo o capim viçoso entre os caraguatás, o Traíra fazia de conta que dormia com um olho fechado e outro aberto, cuidando ora do gado, ora do coronel, esticado nas pedras laje da calçada em frente à porta do galpão, e do rosilho escondido pelas moitas de vassoura do campo aparecia só o costado molhado pela chuva fina e constante, daquelas que não acabam nunca e que fazem um barulho nas telhas de barro que convidam para dormir ou tomar café com bolo frito. Um marasmo.Pois o marasmo acabou quando viu descendo a estrada que traz ao portão da estância, caminhando em passos rápidos e desviando das poças, o seu peão Vassourinha, que reconheceu logo pela piaçaba negra que cobria metade do rosto, das fuças até o queixo, e pelos longos cabelos molhados e escorridos sobre os ombros, e outro homem, que segurava sobre a cabeça abaixada uma pasta para protegê-la da chuva, e que não reconheceu até que chegassem mais perto, quando levantou a cabeça para ver o caminho até a casa. Era o advogado, aquele, aquele que nunca havia perdido uma causa! Arrepiou-se, cuspiu de novo, e empertigou o corpo, imaginando o que é que o Vassourinha estava aprontando, aparecendo na estância depois de tanto tempo sumido trazendo um advogado a tiracolo. E justo aquele advogado? Será que tinha alguma coisa a ver com o pesadelo da escritura das suas terras?
— Boa tarde, seu Coronel, desculpa atrapalhar, este é o doutor ad...
— Eu sei quem ele é! E o senhor, hein, seu Vassourinha, por onde é que andou? Esqueceu do serviço? Ganhou na loteria? Olha o campo, a desgraça que tá isso, como é que você faz uma coisa dessas e não avisa, nem dá satisfação?
Ignorou de propósito o advogado que, apesar da sua indelicadeza, cumprimentou-o, respeitoso:
— Boa tarde, seu Gumercindo. Não queremos incomodar demais o senhor, nossa conversa é rápida. O Sr. Vassourinha pediu minha ajuda para resol...
— Prá que você precisa de um advogado, Vassourinha? – interrompeu, ignorando de novo o advogado, que começou a se irritar.
— O Sr. Vassourinha – insistiu com firmeza – pediu minha ajuda para discutir a respeito dos direitos que acumulou durante todo o tempo em que trabalhou para o senhor, Sr. Gumercindo.
— Direitos? Mas de que direitos ele está falando, Vassourinha? Que história é essa?
— Hã... bom, coronel Arrudão, é que... bem, o senhor sabe, desde que... olha, coronel, na verdade foi o...
— Direitos trabalhistas, Sr. Gumercindo, direitos trabalhistas, por todo o tempo que o senhor forçou este pobre homem a um trabalho escravo. Isto é crime, e pelo que o seu peão relatou o senhor pode até perder sua estância como forma de indenização por tamanha exploração, Sr. Gumercindo.

O advogado falou firme, olhando ameaçadoramente o coronel, que percebeu naquele momento que tinha um problema sério para resolver. Um sério e bigodudo problema. O coronel era homem viajado, razoavelmente instruído e culto, de raciocínio rápido, ligado no mundo pelas antenas do seu inseparável Philco Transglobe de 9 bandas, e era conhecido na cidade e em toda região do Cajuru por duas marcantes características: uma irritante sovinice – faltava pouco para começar a lascar palito de fósforo ao meio para fazer dois, e uma habilidade incomum de convencer as pessoas sobre o que ele bem entendesse. Em outras palavras, além de avarento era mais liso que jundiá ensaboado!

— Trabalho escravo? Trabalho escravo?– repetiu o coronel, enquanto se dirigia quase correndo para a varanda, onde estavam o peão e o advogado molhando as tábuas enceradas com a água que escorria das roupas encharcadas – De onde tirou um absurdo desses? – e sem dar chance de ser interrompido, desandou a enumerar os incontáveis benefícios que o seu peão usufruía, a comida boa e bem feita, sem luxo mas sem carência, o teto e a cama de graça, o linimento e os curativos nos machucados, o elixir paregórico e os escalda-pés nos desarranjos e resfriados, o senhor e a dona Tetê sempre foram muito bons para mim coronel, e a vaca, Vassourinha, veja bem nunca lhe cobrei arrendo do campo nem a vacina da aftosa mas isso é fácil de se resolver, fico com a Quilemeio pelas despesas até hoje, está certo coronel parece justo, e o advogado não acreditava no que estava ouvindo, Vassourinha, veja bem você sempre foi tratado com sendo da família, a porta da casa nunca esteve fechada, você que sempre quis dormir no galpão e comer no banquinho de toco ali fora na calçada, é acho que sim seu coronel, se o senhor diz, e veja bem Vassourinha, nunca lhe cobrei a carona na carroceria da picape indo ou vindo da cidade, nem o uso das minhas ferramentas quando você arava e plantava o meu canteiro de arruda, nem as vassouras do campo e os caraguatás que você não arrancou, nem os dias parados por causa da chuva que você continuava comendo e dormindo de graça, nunca vou esquecer o que o senhor e a dona Tetê fizeram por mim coronel, e o advogado fechou a pasta e sapateava incrédulo não posso estar ouvindo isso, Vassourinha, veja bem, não quero que ninguém fique falando que eu não soube reconhecer sua dedicação, diga o que eu posso fazer por você como forma de compensar o trabalho de trazer o advogado até aqui prá nada, diga e eu vejo se posso atender, bem seu coronel eu sempre quis ter uma casinha só prá mim ali no meio do pomar, nem pensar Vassourinha, você andou bebendo daquela água, não seu coronel, pois então se atipe animal, então lá no fundo do campo seu coronel perto da cachoeira, esqueça Vassourinha o bostinha colafina chegou primeiro, então quem sabe uma meiágua de dois por dois lá na entrada do mato, piorou Vassourinha o arrumadinho de olho azul não vai deixar, ah! então não sei coronel, o advogado tentou falar o coronel levantou o dedo e fuzilou com o olhar, ele fechou a boca e engoliu em seco, assim é melhor se não ajuda não atrapalha, Vassourinha, veja bem, acho que não lhe devo prá tanto mas prá encerrar o assunto e você assinar aqui neste papel que está tudo bom e que não lhe devo nada, mas o papel está em branco coronel, eu sei Vassourinha depois eu preencho, veja bem prá que você não diga que sou ingrato eu lhe ofereço o cupinzeiro ali do pomar, obrigado seu coronel eu sempre gostei muito do pomar, mas não é o pomar sua anta é só o cupinzeiro, ah! é só o cupinzeiro coronel, tudo bem eu lhe agradeço muito assim mesmo, coronel, o senhor é um homem muito bom, ora Vassourinha, não precisa elogiar tanto, assine aqui, isso, assim mesmo, pronto o cupinzeiro é todo seu Vassourinha, obrigado, seu coronel muito obrigado.

Uma tentativa de aparte do advogado foi interrompida por outro olhar fuzilante do coronel Arrudão, e de novo engoliu sua incredulidade e indignação pela situação absurda que acabara de presenciar. Nunca havia passado por uma situação como aquela! Preferiu dar meia volta e sair pisando duro debaixo da chuva, em direção à porteira. A partir daquele momento, para o coronel ele deixou de ser aquele advogado que nunca perdeu uma causa...
— Tetê! – Arrudão chamou, enquanto guardava satisfeito o papel no bolso da camisa.
— Quifoi, amor? – perguntou a Tetê, sonolenta, da porta da varanda.
Acomodou-se na cadeira de balanço, suspirou fundo e pediu, olhando o peão:
— Traz uma xícara de café preto com bastante açúcar prá mim enquanto eu preparo outro palheiro, e uma água de privada bem fresquinha pro Vassourinha, pois temos muito a comemorar!

O Vassourinha dispensou o copo, e numa sentada bebeu no bico metade da jarra.
— Comemorar o que, amor, posso saber?
— Depois te conto, mulher, depois te conto...
Enquanto o coronel esticava as pernas cruzadas e acendia o palheiro, viu o seu peão Vassourinha, dedo em riste, troteando feliz da vida em direção ao cupinzeiro e chamando a multidão para que o acompanhasse na pregação da palavra divina. De hoje em diante, o cupinzeiro era seu, só seu.

10 novembro 2007

A Máquina, o Lobo do Homem?

Dissertação apresentada à disciplina Metodologia Científica do Curso de Ciência da Computação da FACIC – Faculdade de Ciência da Computação - Sociedade Lageana de Educação. Lages, SC, março 1999.
Desde muito antes da Revolução Industrial, a mecanização tem acompanhado a trajetória de glória e miséria do homem, e tornou-se, desde muito, objeto de pesquisas, estatísticas e estudos por parte das mais variadas entidades e correntes do pensamento teórico, de todas as partes do mundo industrializado. Ontem, a máquina, pura e simples; hoje, a máquina automatizada, informatizada. Mas, sempre uma máquina, a competir com o homem na atividade sustentáculo da economia: o trabalho produtivo. A máquina é o lobo do homem? A resposta a esta pergunta exige que identifiquemos exatamente quem responde, e em que contexto está inserido. Um claro exemplo desta afirmação serão as respostas do empresário que investe na automação de seus equipamentos e enxuga o quadro de pessoal, e do empregado preterido pelo equipamento automatizado. Enquanto este lamenta o seu infortúnio, creditando ao progresso, ao desenvolvimento de novas tecnologias e às leis predatórias do mercado competitivo a sua desgraça e a falta de perspectiva de encontrar novo trabalho, aquele contabiliza os lucros advindos do investimento na tecnologia enquanto disserta sobre as maravilhas do gênio criativo do homem e suas extraordinárias conquistas.
A máquina, que livra o homem de tarefas perigosas, insalubres, cansativas, repetitivas, falíveis, também pode tirar dele a garantia do trabalho, a segurança, o sustento, a auto-estima, a motivação. E assim é a lei de mercado: cruel, sádica, insensível, refratária às aspirações dos humildes, das minorias. Atropela-os, arrasa-os como aterradora avalanche, engolindo a tudo e a todos. Sem remorsos, sem lamentações. Quadros como este, que descrevem um sem número de situações cotidianas à nossa volta, e em todos os quadrantes do nosso planeta, preocupam-nos e, por vezes, atingem-nos em maior ou menor intensidade. E, como couraça protetora, escondemo-nos dentro de nós próprios, envoltos na ‘segurança’ de nossos empregos ou de nossa atividade profissional qualquer que seja - ainda ‘segura’, e seguimos engolindo a frustração, a ansiedade, até que uma nova avalanche aconteça e nos engula...
Esta atitude impede-nos de perceber, por detrás das ‘calamidades’ que acontecem quando empregos são extintos, quando profissões se tornam desnecessárias do dia para a noite, quando nossos produtos tornam-se obsoletos ou quando a exigência dos nossos clientes se nos parecem exageradas, que em tudo o que nos acontece é possível encontrarmos aspectos positivos que nos farão maiores, ou melhores. Muitas vezes, percebemos o benefício muito tempo depois do problema, ou ele se materializa após muito tempo de amarguras e ressentimentos. Mas nossa visão deve ser abrangente, temos que alargar nossa perspectiva, ir além do que sabemos e vivenciamos. Não é por acaso que o ideograma chinês que representa crise é formado pelos ideogramas problema + oportunidade. São nas adversidades que encontramos a oportunidade de crescermos, de melhorarmos. E assim ocorre com a humanidade desde que o mundo é mundo: de catástrofes em catástrofes, de obstáculos em obstáculos, a humanidade segue em frente, construindo a sua história e sua têmpera, evoluindo moral e materialmente, crescendo em todos os aspectos. Desnecessário dizer que muito mais vertiginoso é o crescimento horizontal, material, que o vertical, moral, e isto com certeza é, ou será, o fiel da balança.
Nesta linha de raciocínio, entendemos que por mais que a automação seja colocada na posição de pivô da crise do emprego (o problema), ela apenas faz parte do processo natural de evolução, e apresenta-se ao homem a oportunidade de criar alternativas, como, por exemplo, fomentar a prestação de serviços para acolher os postos de trabalho extintos, principalmente do processo produtivo, o que efetivamente já vem acontecendo. Ora, esta é uma solução que está funcionando e que, com certeza, não é a única, e o somatório de todas as alternativas dará os contornos da mudança de postura do homem do final do nosso século, frente ao redemoinho fantástico de culturas, conhecimentos e conquistas, dentro do qual turbilhonamos alucinadamente. Alvin Toffler nos dá uma idéia mais concreta quando diz que “O Futuro Chegou Hoje”:

“Se os últimos 50.000 anos de existência do homem fossem divididos em períodos de aproximadamente 62 anos cada um, terá havido aproximadamente 800 gerações. Dessas 800 gerações, 650 foram completamente passadas nas cavernas.
Apenas durante as últimas 70 gerações tem sido possível a comunicação efetiva de uma geração para outra, uma vez que a escrita possibilitou essa transposição. Apenas durante as últimas 6 gerações as massas humanas viram, pela primeira vez, a palavra impressa. Somente durante as últimas 4 gerações foi possível medir o tempo, com alguma precisão. Apenas nas 2 últimas pode alguém usar um motor elétrico. E a esmagadora maioria de todos os bens materiais que usamos cotidianamente, na nossa vida comum, desenvolveu-se dentro da presente geração, que é a de número 800.
Diante deste quadro, assombra-nos a idéia de que temos que mudar nossas atitudes, rever nosso enfoque da questão. Com certeza, em todas as grandes transformações da humanidade houve um estopim, um pivô, ou até um bode expiatório. E em todas elas o homem soube encontrar soluções. O diferencial do nosso século é a extraordinária rapidez com que as coisas acontecem, fazendo com que não nos demos conta do tanto que acontecem!

De todos os cientistas que já existiram no mundo, desde os princípios da civilização, apenas 7% viveram em gerações anteriores à nossa. Em outras palavras, 93% dos cientistas, desde que o mundo é mundo, vivem HOJE e estão produzindo HOJE novos conhecimentos científicos”.
Apesar de conhecer do homem a sua natureza irracional e a sua capacidade de destruição, acredito na sua imensa capacidade criativa, de adaptação, e de surpreender-se a si próprio. Ora, a máquina é criação do homem, e deve proporcionar, mais que riquezas a poucos, bem-estar e oportunidades a todos. Oportunidades de aprendizado, de novos conhecimentos, de lazer, de conquistas – individuais ou coletivas. Ela deve estar a nosso serviço – patrão e empregado. Deve prover, proteger, facilitar. Ao homem, cabe a tarefa de domesticá-la, impor limites à dependência cega de automatização, pois o progresso da humanidade não deve acontecer a qualquer preço. E aqui abordamos o desenvolvimento moral do homem, como peça chave, indispensável, à solução do caos do fim do século que passará, inevitavelmente, pelo refinamento das relações humanas, dos sentimentos e das atitudes – responsabilidade de cada um de nós. Se isto não acontece, não podemos responsabilizar a criação, e sim, o criador. Afinal, apesar da sua grandeza, o homem, e não a máquina, é o lobo do homem!