28 outubro 2007

4. A Benzedura do Coronel

(Esta é uma obra de pseudoficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto estava deitado de bruços no sofá da sala com o rosto virado cuidando da mulher sentada na cadeira ao seu lado, que se mexia agitada, visivelmente contrariada. Ela devia estar beirando os setenta, cabelos acinzentados, meio encardidos e ralos caindo soltos até metade das costas, e caminhava encurvada para frente carregando com dificuldade um imenso traseiro e gingando o corpo de um lado para outro, como uma gansa.
— Coroné, inté dô benzimento com o sinhô deitado ansim, mais esse gaião de arruda na zoreia tá fechano o corpo prás reza, tá sim, tem que tirá!
Arrudão tinha enrolada na cabeça uma faixa de pano ensopada com álcool e mastruço esmagado com sal, por causa de uma violenta chinelada na testa sofrida um dia antes. A perna direita da bombacha levantada na altura do joelho deixava ver o pé ainda enfaixado até a canela, como também estavam enfaixadas suas costelas, e nos quartos, na altura da sambiquira, tinha grudado um emplastro Sabiá. Um mar de pinceladas de iodo, uma para cada furo de espinho de caraguatá, quase escondia o que ainda dava prá ver do costado branquelo do coronel. Segundo Tetê, a bunda estava do mesmo jeito, toda pintada feito criança com catapora. Na mesa baixa em frente ao sofá, uma parafernália de jarra com água, copo, colher, um vidro de linimento de Sloan, analgésico, calmante, iodo, a tigela esmaltada para preparar compressa, pinça e rolos de gaze e esparadrapo, uma chaleira com água quente para os chás e infusões, e um prato fundo com canja de galinha já fria, que o coronel não havia tocado.
— Experimenta, véia!
— Amôor – acudiu a Tetê – foi você quem pediu benzimento, se ela diz que a arruda está atrapalhando então tira, qual é o problema?

Além dos pequenos acidentes sem importância que o haviam deixado no estado em que estava, de uns meses prá cá o coronel andava às voltas com roubos na estância, coisa que há muito tempo não acontecia mas que já estavam virando moda, pela quantidade de visitas e pela facilidade dos ladrões em abrir a casa e o galpão e escolher o que levar. A benzedeira era a última esperança do coronel porque a polícia não tinha resolvido nada. Se é que tinha tentado resolver, bem entendido.
— Não posso, mulher! – resmungou impaciente o coronel, cara enfiada no sofá – Se tirar, a coisa piora, é esta arruda que me protege.
— É, tô veno que potrege! – a velha ironizou e saiu rindo gingando gansamente em direção ao banheiro – Vô mijá.
— Ah, não acredito, a velha vai mijar! – o coronel esbravejou, já com meio corpo levantado no sofá – Já tô arrependido, vou é seguir os conselhos daqueles urubus, não consigo ficar parado esperando a boa vontade da polícia, me dá comichão só de pensar na incompetência desses pragas!
Tetê postou-se à sua frente, desafiante, uma mão na cintura, a outra com o dedo apontado para o coronel.
— Agora não entendi. Não foi você que se indignou com as sugestões que os seus amigos deram, que eram absurdas, que onde já se viu falarem tanta bobagem junta, se eles achavam que você tinha cara de trouxa, e nem sei mais o quê?

A cada visita dos ladrões choviam conselhos dos amigos, tantos quanto a variedade do que levavam. Alumínio e cobre eram o alvo, e assim os ladrões carregaram vários utensílios de cozinha, até o congelador de uma geladeira Steigleder azul calcinha com maçaneta do tipo de automóvel antigo, e por duas vezes levaram a fiação de luz. Para não desperdiçar a viagem, também levaram um forno elétrico e algumas ferramentas, mas só das pequenas. Outras coisas, como bujão de gás Liquinho e pratos até levavam, mas logo desistiam e deixavam largados pelo campo. As miudezas o coronel até tolerava como coisas da vida, dava-se jeito, mas a fiação de luz não. A energia elétrica na estância demorara muitas décadas para ser instalada, era o xodó do Arrudão, e ele não ia deixar por isso mesmo.

Para impedir novos furtos, o arrumadinho de olho azul sugeriu instalar uma fiação elétrica com armadilha, de modo que continuasse energizada mesmo depois de cortada, e assim os ladrões ficariam grudados nela. Foi logo descartada porque poderia causar mortes e também porque ninguém sabia como fazê-lo, apesar da sua administradora insistência que vários estudos demonstravam que era o melhor a ser feito. O bostinha cola fina, num arroubo de imaginação hollywoodiana, sugeriu a instalação de minas terrestres em locais estratégicos e sobre elas, servindo de isca, rolos inteiros de fios elétricos. Quando os ladrões os pegassem, bum! Esta sugestão nem foi considerada, pois ficou claro ser fruto de um espasmo disentérico, e apenas comprovou a sua vocação colafínica para sugestões abestadas. Muitos outros palpites pipocaram ali e acolá, do tipo deixar tábuas soltas no assoalho para que os ladrões se machucassem, ou instalar armas engatilhadas que disparariam ao abrirem a porta. Tudo bobagem!

O doutorzinho casca grossa, veja só como são as coisas, deu uma sugestão extremamente criativa e, na opinião dele, absurdamente simples. Bastava capturar um leão baio, deixá-lo sem comer por alguns dias, e depois trancá-lo dentro da sede da estância enrolado em fios elétricos, servindo de isca para os ladrões. A aceitação foi unânime, e só não foi implementada porque o fiscal do Ibama não deixou, aquele chato! Mas o supra sumo da originalidade e inteligência foram as sugestões dadas por aquele sabidinho que fala javanês, viajante de nascença, metido a entendedor de pesca com mosca e oxigenação de açudes, e fluente em idiomas indispensáveis como hotentote, aramaico, inuit, ou arikapu, que é falado por ele mais todos os seis índios da tribo Pitaguari. Primeiro, sugeriu que o coronel, em vez de ficar escondendo os utensílios domésticos e outras coisas pequenas pela casa, guardasse tudo isso numa galeota cada vez que se ausentassem, e aí a escondesse no mato perto da sede. Quando voltassem, era só buscar a galeota e recolher as coisas para seus devidos lugares. Isso realmente facilitaria tudo. Até para os ladrões, pois não teriam o menor trabalho para decidir o que levar, estaria tudo separado e empacotado, pronto para ser roubado. Arrudão não implementou porque é óbvio que foi uma brincadeira, todos se divertiram muito, o sabidinho realmente é muito divertido. Alguns meses depois, período no qual cortou relações com o Arrudão e os outros urubus, ele contatou o coronel reservadamente dizendo que, após pesquisar casos semelhantes ocorridos na região onde mora, encontrou ‘um jeito de solucionar de uma vez por todas o problema dos roubos’, e desta vez ele se superou porque ninguém acreditou que uma solução tão simples, barata e eficiente ainda não tivesse sido implementada. O coronel deveria pendurar na porteira da estância uma placa com os seguintes dizeres: “Propriedade particular. Entrada proibida”. Assim, escrito em português mesmo. E tudo resolvido!

Arrudão respirou fundo, tentando imaginar o que havia feito para merecer os amigos que tinha. Olhou a Tetê à sua frente, olhou a gansa, ou melhor, a velha voltando do banheiro, levantou hesitante o braço, tirou o pé de arruda preso à orelha esquerda e o depositou, resignado e trêmulo, no canto da mesinha ao seu lado, sentindo-se completamente nu e desprotegido. Há quem diga que nesta hora seus olhos estavam marejados de lágrimas, porém a Tetê não confirma. Ajeitou-se novamente no sofá e, tentando parecer que recobrava o controle, antes que a bruxa sequer fizesse o sinal da cruz, vociferou:
— Lavou as mãos, véia?
Para resolver o seu problema, até tirava a arruda. Mas submeter-se assim, docilmente, jamais. Não ele, o Arrudão! Mas báh!

6 comentários:

  1. Muito bom Alex, estou vendo futuro nisto.
    Claro que sou como aquele irmão que ganhou do pai uma lata com cocô de cavalo e perguntou eufórico... cade o cavalo? cade o cavalo?
    Continue. Quero ver este cavalo.
    Um abraço
    Beto

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  2. Quero agradecer ao Seu Nereu pela valiosa lembrança de uma regra de acentuação que diz que palavras oxítonas terminadas em "u" não são acentuadas. Já corrigi todas as palavras "Cajuru" dos textos. Obrigado pelo alerta, se achar mais algum erro, por favor grite que eu corrijo.

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  3. Arrudão é de lascar!!! Nem a Tetê pra conviver com uma agrura destas. Como personagem de ficção também me saio por paragens desvairadas. Não estou dizendo que digo o não dito, nem que disseste isto ou aquilo, mas firmo no pensamento que ao nada dizer sobre tudo posso instigar respostas criativas frente a realidade forçada a aparecer...

    Esta Saga é sagaz!!! Estou gostando. E não apenas dela, mas também da lata de cocô e do cavalo.

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  4. Bem, depende, somente as oxítonas terminadas em a, e & o são acentuadas, exceto se em ditongos orais crescentes e hiatos. Mas Cajuru não se encaixa aqui.

    Independende, os textos são muito bons. Diria que muito melhor que a grade maioria, ou seja, coisa pra dar continuidade. Por isso volto e me comovo, a cada texto. São brilhantes.

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  5. Pax, acho que continuam, sim. Hoje à noite (29/11/08) acontecerá a noite de autógrafos do lançamento de um livro de coletâneas, patrocinado pelo SESC, e os episódios 2 e 3 da Saga estarão publicados sob o título "Histórias de Um Coronel de Estância". Depois conto mais detalhes do evento.
    Será sempre bem vindo, um abraço!
    Alexandro.

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  6. Bom saber que os méritos estão chegando. Mais ainda da continuidade.

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