31 outubro 2007

Lages, Trânsito Sem Lei

Onde não há lei, não há ordem. A convivência em sociedade implica a existência de normas de conduta, que estabelecem procedimentos básicos para um relacionamento de respeito entre os indivíduos, e implica também a existência de leis, que regem as questões legais cíveis e criminais, as questões tributárias, administrativas, públicas, dentre um universo de aplicações.
Nenhuma novidade há nesta afirmativa. A questão é que para que indivíduos convivam em relativa harmonia e respeito é necessário que as normas de conduta sejam respeitadas e as leis sejam cumpridas. Sem essa condição básica, elementar, é inútil a existência de leis e dos órgãos públicos que deveriam zelar pela sua aplicação.
Um claro exemplo de leis que não são cumpridas é o trânsito de Lages. Por mais absurdo que possa parecer, uma das maiores cidades do estado não tem policiamento no trânsito. A situação, além de absurda, torna-se trágica, pois não há a menor preocupação entre os motoristas com relação a punição para qualquer atitude ilegal. Quando a lei é esquecida, esquece-se também o respeito, o senso crítico, a civilidade, a educação... Bem, na verdade, quando chega a este ponto é porque respeito e educação já foram esquecidos há muito tempo.
Os absurdos que acontecem não diferenciam motoristas de pedestres. Se você é motorista, terá que conviver com motoristas que bloqueiam a rua andando em velocidade irrisória, ou que ocupam as duas pistas das avenidas, motoristas que não sinalizam nem aos outros motoristas nem aos pedestres, motoristas que reagem tão lentamente ao sinal verde nos semáforos que poucas vezes passam mais que três carros por vez, motoristas que param em fila dupla em frente ao banco para que madames possam usar o caixa automático, como na Nereu Ramos em dias de chuva, motoristas que param seus carros ou ônibus em rua de pista única, como descendo a Frei Rogério sentido Centro–Pres. Vargas, para comprar jornal ‘bem rapidinho’, ou apanhar alunos em frente à escola, motoristas que conduzem veículos em frangalhos, sem a menor condição de segurança e trafegabilidade, colocando em risco sua própria integridade e dos demais motoristas e pedestres, motoristas que trafegam na contramão para não ter que dar a volta na quadra...
Se você é pedestre, terá que disputar espaço com carros ‘estacionados’ nas calçadas em frente às casas daqueles motoristas do parágrafo aí em cima, com carros atravessados em frente a estabelecimentos comerciais que usam a calçada como estacionamento para os clientes – experimente reclamar e será violentamente xingado como se o errado fosse você, com carros estacionados no que seria a calçada em postos de combustível, secando após a lavação enquanto aguardam seus proprietários vir buscá-los, com motos costurando entre os carros no trânsito, com bicicletas desviando das pessoas nas calçadas e calçadões e crianças e adolescentes em skates fazendo malabarismos, atropelando as pessoas e depredando prédios públicos e monumentos ao usá-los como rampas e obstáculos para sua diversão...
Isso tudo acontece sob o olhar complacente – e cúmplice por conseqüência – dos raros policiais que são vistos nas ruas. Quando a Polícia Militar era encarregada do policiamento do trânsito, alguns problemas e abusos também aconteciam, mas pelo menos havia a possibilidade dos transgressores serem punidos com multa ou apreensão do veículo, conforme o caso. Agora, nada é feito, nem pela Polícia Militar, nem pela Prefeitura, e essa omissão transforma o trânsito de Lages em terra de ninguém, e a cidade e seus cidadãos de bem permanecem reféns dos inescrupulosos e à mercê do acaso, e do descaso do Poder Público.

28 outubro 2007

4. A Benzedura do Coronel

(Esta é uma obra de pseudoficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto estava deitado de bruços no sofá da sala com o rosto virado cuidando da mulher sentada na cadeira ao seu lado, que se mexia agitada, visivelmente contrariada. Ela devia estar beirando os setenta, cabelos acinzentados, meio encardidos e ralos caindo soltos até metade das costas, e caminhava encurvada para frente carregando com dificuldade um imenso traseiro e gingando o corpo de um lado para outro, como uma gansa.
— Coroné, inté dô benzimento com o sinhô deitado ansim, mais esse gaião de arruda na zoreia tá fechano o corpo prás reza, tá sim, tem que tirá!
Arrudão tinha enrolada na cabeça uma faixa de pano ensopada com álcool e mastruço esmagado com sal, por causa de uma violenta chinelada na testa sofrida um dia antes. A perna direita da bombacha levantada na altura do joelho deixava ver o pé ainda enfaixado até a canela, como também estavam enfaixadas suas costelas, e nos quartos, na altura da sambiquira, tinha grudado um emplastro Sabiá. Um mar de pinceladas de iodo, uma para cada furo de espinho de caraguatá, quase escondia o que ainda dava prá ver do costado branquelo do coronel. Segundo Tetê, a bunda estava do mesmo jeito, toda pintada feito criança com catapora. Na mesa baixa em frente ao sofá, uma parafernália de jarra com água, copo, colher, um vidro de linimento de Sloan, analgésico, calmante, iodo, a tigela esmaltada para preparar compressa, pinça e rolos de gaze e esparadrapo, uma chaleira com água quente para os chás e infusões, e um prato fundo com canja de galinha já fria, que o coronel não havia tocado.
— Experimenta, véia!
— Amôor – acudiu a Tetê – foi você quem pediu benzimento, se ela diz que a arruda está atrapalhando então tira, qual é o problema?

Além dos pequenos acidentes sem importância que o haviam deixado no estado em que estava, de uns meses prá cá o coronel andava às voltas com roubos na estância, coisa que há muito tempo não acontecia mas que já estavam virando moda, pela quantidade de visitas e pela facilidade dos ladrões em abrir a casa e o galpão e escolher o que levar. A benzedeira era a última esperança do coronel porque a polícia não tinha resolvido nada. Se é que tinha tentado resolver, bem entendido.
— Não posso, mulher! – resmungou impaciente o coronel, cara enfiada no sofá – Se tirar, a coisa piora, é esta arruda que me protege.
— É, tô veno que potrege! – a velha ironizou e saiu rindo gingando gansamente em direção ao banheiro – Vô mijá.
— Ah, não acredito, a velha vai mijar! – o coronel esbravejou, já com meio corpo levantado no sofá – Já tô arrependido, vou é seguir os conselhos daqueles urubus, não consigo ficar parado esperando a boa vontade da polícia, me dá comichão só de pensar na incompetência desses pragas!
Tetê postou-se à sua frente, desafiante, uma mão na cintura, a outra com o dedo apontado para o coronel.
— Agora não entendi. Não foi você que se indignou com as sugestões que os seus amigos deram, que eram absurdas, que onde já se viu falarem tanta bobagem junta, se eles achavam que você tinha cara de trouxa, e nem sei mais o quê?

A cada visita dos ladrões choviam conselhos dos amigos, tantos quanto a variedade do que levavam. Alumínio e cobre eram o alvo, e assim os ladrões carregaram vários utensílios de cozinha, até o congelador de uma geladeira Steigleder azul calcinha com maçaneta do tipo de automóvel antigo, e por duas vezes levaram a fiação de luz. Para não desperdiçar a viagem, também levaram um forno elétrico e algumas ferramentas, mas só das pequenas. Outras coisas, como bujão de gás Liquinho e pratos até levavam, mas logo desistiam e deixavam largados pelo campo. As miudezas o coronel até tolerava como coisas da vida, dava-se jeito, mas a fiação de luz não. A energia elétrica na estância demorara muitas décadas para ser instalada, era o xodó do Arrudão, e ele não ia deixar por isso mesmo.

Para impedir novos furtos, o arrumadinho de olho azul sugeriu instalar uma fiação elétrica com armadilha, de modo que continuasse energizada mesmo depois de cortada, e assim os ladrões ficariam grudados nela. Foi logo descartada porque poderia causar mortes e também porque ninguém sabia como fazê-lo, apesar da sua administradora insistência que vários estudos demonstravam que era o melhor a ser feito. O bostinha cola fina, num arroubo de imaginação hollywoodiana, sugeriu a instalação de minas terrestres em locais estratégicos e sobre elas, servindo de isca, rolos inteiros de fios elétricos. Quando os ladrões os pegassem, bum! Esta sugestão nem foi considerada, pois ficou claro ser fruto de um espasmo disentérico, e apenas comprovou a sua vocação colafínica para sugestões abestadas. Muitos outros palpites pipocaram ali e acolá, do tipo deixar tábuas soltas no assoalho para que os ladrões se machucassem, ou instalar armas engatilhadas que disparariam ao abrirem a porta. Tudo bobagem!

O doutorzinho casca grossa, veja só como são as coisas, deu uma sugestão extremamente criativa e, na opinião dele, absurdamente simples. Bastava capturar um leão baio, deixá-lo sem comer por alguns dias, e depois trancá-lo dentro da sede da estância enrolado em fios elétricos, servindo de isca para os ladrões. A aceitação foi unânime, e só não foi implementada porque o fiscal do Ibama não deixou, aquele chato! Mas o supra sumo da originalidade e inteligência foram as sugestões dadas por aquele sabidinho que fala javanês, viajante de nascença, metido a entendedor de pesca com mosca e oxigenação de açudes, e fluente em idiomas indispensáveis como hotentote, aramaico, inuit, ou arikapu, que é falado por ele mais todos os seis índios da tribo Pitaguari. Primeiro, sugeriu que o coronel, em vez de ficar escondendo os utensílios domésticos e outras coisas pequenas pela casa, guardasse tudo isso numa galeota cada vez que se ausentassem, e aí a escondesse no mato perto da sede. Quando voltassem, era só buscar a galeota e recolher as coisas para seus devidos lugares. Isso realmente facilitaria tudo. Até para os ladrões, pois não teriam o menor trabalho para decidir o que levar, estaria tudo separado e empacotado, pronto para ser roubado. Arrudão não implementou porque é óbvio que foi uma brincadeira, todos se divertiram muito, o sabidinho realmente é muito divertido. Alguns meses depois, período no qual cortou relações com o Arrudão e os outros urubus, ele contatou o coronel reservadamente dizendo que, após pesquisar casos semelhantes ocorridos na região onde mora, encontrou ‘um jeito de solucionar de uma vez por todas o problema dos roubos’, e desta vez ele se superou porque ninguém acreditou que uma solução tão simples, barata e eficiente ainda não tivesse sido implementada. O coronel deveria pendurar na porteira da estância uma placa com os seguintes dizeres: “Propriedade particular. Entrada proibida”. Assim, escrito em português mesmo. E tudo resolvido!

Arrudão respirou fundo, tentando imaginar o que havia feito para merecer os amigos que tinha. Olhou a Tetê à sua frente, olhou a gansa, ou melhor, a velha voltando do banheiro, levantou hesitante o braço, tirou o pé de arruda preso à orelha esquerda e o depositou, resignado e trêmulo, no canto da mesinha ao seu lado, sentindo-se completamente nu e desprotegido. Há quem diga que nesta hora seus olhos estavam marejados de lágrimas, porém a Tetê não confirma. Ajeitou-se novamente no sofá e, tentando parecer que recobrava o controle, antes que a bruxa sequer fizesse o sinal da cruz, vociferou:
— Lavou as mãos, véia?
Para resolver o seu problema, até tirava a arruda. Mas submeter-se assim, docilmente, jamais. Não ele, o Arrudão! Mas báh!

13 outubro 2007

3. O Peão do Coronel

(Esta é uma obra de pseudoficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto arrastou devagar seu pé direito enfaixado até metade da canela, apoiado num pedaço de pelego com a lã virada para baixo, pelas tábuas enceradas da varanda da sede da estância. Alcançou claudicante a cadeira de balanço onde sentou-se meio de lado por causa da dor na sambiquira e de onde se pode ver à direita, um pouco abaixo do pomar, a lagoa formada pela água da chuva e seu quase fiel rosilho atolado até os joelhos mastigando o capim fresquinho que aflora na superfície. À sua frente o início do pinheiral um pouco além da lagoa, e numa descida, o capão que esconde a sanga que divide a sede do resto do campo que vai em direção à cachoeira. À esquerda o cocho de sal do gado coberto com eternite de cuja sombra seu totalmente traiçoeiro cachorro Traíra, sentado, olha-o desconfiado, tendo ao fundo a massa azulada dos pinheiros onde estardalhaçam gralhas quero-queros e papagaios, e virando um pouco mais o pescoço se pode ver a lavoura de milho um pouco à frente da canhada que vai dar na entrada do mato. Permeando tudo, de um extremo a outro, um mar de vassouras do campo e caraguatás como o coronel jamais havia visto tantos.
Passava um pouco das três da tarde. Arrudão já havia lavado a louça limpado a cozinha varrido a casa tirado o pó brilhado o chão cuidado prá não acordar a Tuinha que dormitava o cochilo da tarde, e ele agora pitava seu palheiro. A estância estava parada em um marasmo contagiante, o gado olhava desconfiado para o Traíra que continuava sentado à sombra do cocho do sal olhando desconfiado para o coronel que olhava embevecido o gado gordo e esquartejava o cão confiado, sentado na cadeira de balanço cutucando os vãos dos dedos do seu pé esquerdo apoiado na beirada do assento, com o indicador da mão esquerda que abraçava a perna levantada, enquanto tentava lembrar quando foi que tinha visto pela última vez o Vassourinha, seu fiel e submisso peão faz tudo, que deveria manter seu campo livre daquelas pragas.
O peão era um homem rijo, alto, magro e espadaúdo, grandes olhos escuros e face encovada emoldurados por longas melenas em desalinho, com um porte de modelo de funerária que certamente teria feito sucesso nas passarelas não fossem alguns hábitos estranhos, como cultivar com orgulho desmesurado um vasto bigode como se carregasse uma vassoura de piaçaba grudada no meio da cara, com as cerdas negras cobrindo desde o buço até metade do seu queixo másculo – daí o apelido – e também por gostar de beber água de privada. No tempo que a estância não dispunha de um banheiro e se usava a casinha a par do valo, trazia a água da cidade em um garrafão, sabe-se lá tirada de que privadas; depois do banheiro construído, de vez em quando enchia um meio copo e já no terceiro gole se transformava, e de cabisbundo e meditabaixo que era, desandava a falar em altos brados, encarapitado num imenso cupinzeiro, dedo em riste, pregando a palavra divina para multidões imaginárias. Uma tristeza!
Era bom na lida, e custava pouco. Na verdade, custava nada, pois nem carteira assinada tinha e trabalhava pela comida. Dormia no galpão, carpia a lavoura, virava a terra, abria valo em banhado e beira de estrada, fincava palanque, tratava, desverminava e despontava os animais, tirava o leite, rasqueava o rosilho, consertava telhado cerca e taipa, catava pinhão, lavava o Traíra com escova e creolina – era o único que conseguia – fazia queijo e sabão, roçava o campo, arrancava vassouras e caraguatás... O coronel deu uma cuspida e resmungou: — Mas quál... estes caraguatás já pagam imposto de tão grandes, nem o meu milharal é tão viçoso... Nessas alturas o Arrudão se incomodou com o campo sujo, com o sumiço do Vassourinha, com o Traíra olhando prá ele. Deu uns gritos para o cão sair de perto do cocho pras vacas poderem comer o sal, mas ele continuou sentado, impávido, olhando o coronel, que então calçou um chinelo de borracha que um dia havia sido uma bota Sete Léguas que teve seu cano cortado rente ao calcanhar com uma faca de serrinha. Foi quicando num pé só, desviando as vassouras, pulando os caraguatás em direção ao cão, que se ergueu e a cada pulo dava meio passo atrás e piscava os olhos, até que à distância de um cuspo disparou pros lados de onde estava o rosilho atolado na lagoa. O coronel apoiou-se no palanque de eucalipto que sustentava a cobertura do cocho para descansar o pé enfaixado e num instante foi cercado pelo gado que se espremia para alcançar o sal.
Coincidência ou não, bem ao seu lado estava a Quilemeio, uma beleza de vaca que pertencia ao Vassourinha, com pelo curto e brilhante malhado de branco e café com leite, com quase nada de berne e carrapato. Arrependeu-se de não ter cobrado do peão o arrendo do campo antes do seu sumiço. Paciência, ficava com a vaca pela despesa. Da casa ouviu a voz da Tuinha, que gritava com as mãos em concha na boca:
— O café tá pronto!
— Tetê! Ô, Tetê! – gritou, enquanto reiniciava o caminho de volta pulando num pé só.
— Quié? – gritou ela, voltando à porta da casa.
— Sabe do Vassourinha? O campo está um desastre. Não vi mais ele!
— Não, amor! – gritou ela. Arrudão deu impulso para pular um imenso caraguatá. — Mas na última vez que vi ele perguntou se eu conhecia um advogado, aí eu indiquei aquele que você disse que nunca perdeu um caso!
Todas as dúvidas do coronel dissiparam-se, a luz do entendimento brilhou alumiando as trevas do seu pesadelo fugaz, e clareou a estampa do Vassourinha recebendo a escritura das suas terras das mãos do juiz trabalhista, rindo sarcásticos e bebendo água de privada os dois, mais a horda de advogados que riam sarcásticos, todos com a mesma cara daquele advogado que nunca perdeu um caso, e que a Tuinha indicou...
Isso tudo se passou enquanto pulava a bromeliácea. Ao chegar do outro lado, os céus trovejaram, as trombetas soaram, o mundo desabou e o chão virou uma massa mole, verde e quente sob seu pé, que resvalou subindo em direção às nuvens e levando com ele o chinelo mais toda a bosta de vaca do Cajuru mais as outras três patas do coronel, que desabou de costas esparramado sobre o caraguatá espinhento! Antes que desse um gemido, um chinelo de borracha todo melecado descido dos céus esborrachou-se na sua testa e um dilúvio de estrume cobriu sua cara escondendo o narigão adunco.
Atordoado, deitado sobre um colchão de espinhos e ferido de morte em seu orgulho, o coronel ouviu um relincho e um uivo que lhe pareceram familiares. Há quem jure, e a Tuinha é uma delas, que nessa hora um cão e um cavalo bateram suas patas dianteiras direitas espalmadas, e saíram a rolar pelo capim rindo como só um quase fiel cavalo e um totalmente traiçoeiro cão sabem fazer...

07 outubro 2007

2. A Partilha das Terras do Coronel

(Esta é uma obra de pseudoficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto ajeitou o travesseiro de penas de ganso sobre o assento da cadeira de palha ao lado da mesa de tábuas antigas pintada de azul disfarçando as marcas do dia a dia da cozinha de estância por décadas a fio. Apoiou as nádegas e soltou o peso do corpo com cuidado e vagarosamente sobre o travesseiro, e gemeu com a dor na sambiquira, resquício de um acidente sem importância envolvendo o rosilho na manhã daquele dia. A bem da verdade, a dor maior era do ego, ferido no seu orgulho de peão da lida campeira, mas outras preocupações mereciam sua atenção com mais urgência. O rosilho podia esperar. Tirou do bolso da camisa um toco de fumo em rolo embrulhado em saco plástico, e da cinta um canivete Tramontina com um lado do cabo já sem a baquelita imitando marfim. Ajeitou-se no travesseiro, com as costas da mão limpou algumas migalhas de pão dormido do desjejum que acabara de tomar e começou a picar o fumo, usando a depressão na tábua no canto da mesa que se formou por anos e anos de preparo do palheiro matinal. Esticado no chão à sua frente seu cachorro Traíra, companheiro na lida mas traiçoeiro de primeira, olhava o coronel com olhar pidão. Tetê, sua companheira de muitos invernos, ainda ressonava embrulhada nas cobertas, e ele cuidava para não acordá-la.
Ela era uma mulher disposta, já nos cinquenta mas conservada e fornida, bem ao gosto do Arrudão. Acostumada com a rusticidade da estância, não tinha fricotes e tudo estava bem, desde que o coronel mantivesse a casa limpa, a louça lavada e o chão brilhando, por isso ele andava pela casa só de meias, arrastando dois pedaços de pelego com a lã virada para baixo. O que ela não gostava era do seu nome Tertulina, registrado para homenagear seu bisavô por parte de mãe, e fazia questão de ser chamada pelo apelido dos tempos de criança. O coronel, por sua vez, a tratava por Tuinha principalmente nos momentos de mais intimidade.
A primeira providência era traçar um plano de defesa de sua propriedade que acabasse de vez com as pretensões desse bando de corvos prestes a avançar crocitantes sobre a carniça. No caso, sobre as suas terras. A divisão já estava sendo feita assim, de boca, em tom de brincadeira, como se fosse piada, mas ele sentia que havia outras intenções além da troça. Aquele trecho de mato, por exemplo, a meio caminho entre a sede e a cachoeira, com a sanga e a ponte que ele fez com tanto esmero e mais adiante um açude natural, que um sabidinho que fala javanês astutamente transformou em um prolífero criadouro de peixes, já era arvorado como seu por um doutorzinho da cidade, casca grossa de nascença, metido a entendedor de anzocas e minhóis e latifundiário em outras plagas. O mato a sanga a ponte o açude e mais o pinheiral a par da sede, azul de tão fechado, que todo ano forra as bruacas do coronel com a venda do pinhão. Seu plano secreto é monopolizar a produção desta semente e de peixes na região do Cajuru.
Um bostinha da cidade, teimoso de nascença, metido a entendedor de sofituér e choque em fio de luz e nem um pouco chegado ao trabalho pesado – meio cola fina, dizem alguns – já se acha dono de todo o fundo do campo que margeia o rio Mansinho, com o capão e a cachoeira. A cachoeira e mais a sede com a casa, o galpão, a encerrinha, o pomar, tudo. Menos as ferramentas, é claro, pois não se ajeita muito bem com elas. Anda falando em instalar teleférico nos morros e lajotar a trilha da cachoeira. Já um outro arrumadinho da cidade, olho azul de nascença, metido a entendedor de ferretas e maçanolhos e mediador de discussão em reunião de condomínio, garante que já escriturou em seu nome a entrada do mato, com aquelas árvores esguias e a trilha coberta de folhas, especial para piqueniques e pileques. A entrada do mato e mais a canhada um pouco antes, quase a par da sede e à esquerda do pinheiral que – garantiu, administradoramente – ‘... vou transformar num volumoso e profundo lago e também prolífero criadouro de espécimes aquáticos sem causar nenhum dano ou prejuízo socioambiental e esta feliz iniciativa transformará a vida marginal e será opção de renda e garantia de desenvolvimento sustentado à toda uma população ribeirinha da região da recém criada Área de Preservação Ambiental do Cajuru, antigo anseio desta comunidade!’ Tem um trecho de mato, a meio caminho entre a entrada de mato do arrumadinho e o açude do doutorzinho, com uma pequena elevação numa clareira, circundada por um terreno mais baixo que o Mansinho alaga nas chuvaradas e que depois tudo fica coberto de musgo, o chão e os troncos e as pedras. Enquanto o dia passa, o sol subindo ou descendo faz um jogo de luz e sombra dum verde que não se acredita, e quando bate o sol a pino, um verde brilhante ofusca e extasia a alma de qualquer vivente que diante de tamanha beleza tira o chapéu por respeito. Puis, também já tem dono, é um esquentadinho da cidade, açucarado de nascença, metido a entendedor de tíbias perônios e voadoras, e colocador de azulejo em fundo de açude nas horas vagas. Diz que já tem projeto e licença ambiental para transformar aquele paraíso em área protegida para a prática de estudos transcendentais e exercícios aeróbicos pulmonares contínuos. Conta com a valiosa ajuda de um sócio, um enrugadinho da cidade, estudante transcendental de nascença, metido a entendedor de ervas daninhas e suas transcendências, e esforçado lanterninha em mostras de cinema e teatro, que associou-se à ele para poder dividir o trabalho porque, como o bostinha cola fina, não é muito afeito a qualquer esforço.
Ora... – resmungou, catando as últimas migalhas sobre a mesa — ... sobraram alguns corvos que não disputam nem um pedacinho da propriedade. E tem ainda aquela ‘questã’ da escritura na Junta... Respirou fundo e recostou-se na cadeira. — Muito estranho – mastigou o coronel. Absorto em seus pensamentos deu mais uma pitada e com um piparote bateu a cinza do palheiro que caiu, junto com algumas fagulhas, dentro do olho pidão do cão à sua frente. Lembrou tarde demais o motivo do nome do cachorro! O Traíra ganiu e, de um salto, abocanhou o seu pé direito com meia joanete pelego unha encravada e tudo! Deu umas nove mastigadas, e enquanto o coronel, incrédulo, segurava o pé e um grito de dor para não acordar a Tuinha, o cão ainda levantou a pata traseira, urinou na sua perna esquerda, latiu provocante e saiu porta afora, focinho erguido, vitorioso e devidamente vingado...

06 outubro 2007

1. O Pesadelo do Coronel

(Esta é uma obra de pseudoficção. Qualquer coincidência com personagens abstratos, fatos inventados e lugares imaginados não será mera semelhança!)

O coronel Gumercindo Neto apeou devagar do rosilho. Escorregou de leve o corpo pela sela e demorou a tirar a bota do estribo. Ao livrar-se do peso, o animal sacudiu a cabeça e a crina curta. O coronel – conhecido por Arrudão pelo hábito de carregar preso à orelha esquerda um galho de arruda imenso parecendo uma vassoura – correu os olhos em volta, cuidando detalhes, contando as folhas. O nariz adunco fazia sua expressão parecer mais sombria. Ele sabia que procurava o que não existia. Nunca cogitou doar nem arrendar, que dirá repartir, mas a visão de taipas, cercas e valetas dividindo as suas terras, que o assombrara durante toda a noite e tirara seu sono, estava mais viva em sua mente do que a trilha do mato e a ponte à sua frente. O sol baixo da manhã ainda não amornara o frio da madrugada, e o capim molhado e as gotas de orvalho nas teias dos arbustos, e os pássaros acordando e o cavalo imóvel pareciam entender seu desatino e se calavam solidários. Girou o corpo vagarosamente, agora contando os galhos e os troncos e as pedras para se certificar que não existia nenhuma divisão, nenhuma estaca de demarcação, nenhum buraco aberto esperando palanque.
O pesadelo era recorrente. Algumas vezes, varava a noite aloitando com cercas e taipas que surgiam do nada e se estendiam em todas as direções e ao mesmo tempo, como cobras sibilantes, loteando matos e coxilhas e apartando o gado, enquanto uma malta de engomadinhos fantasiados com botas sanfonadas, bombachas enfeitadas, chapéus e lenços no pescoço salivavam gulosamente e esfregavam as mãos enquanto repartiam os lotes, noutras vezes mãos imensas com garras afiadas no lugar dos dedos rasgavam os campos e vazavam os rios e sangas e arrancavam árvores inteiras pela raiz, comandadas por uma súcia de geófagos famintos que riam desbragadamente enquanto invernadas inteiras e pinheirais desapareciam, deixando em seu lugar buracos enormes que ele não via o fundo; em outras, tesouras cortavam campos e morros como pano verde ordinário, retalhando suas terras em incontáveis pedaços disformes pintados de todas as cores que eram montados sem qualquer rigor como um gigantesco quebra-cabeça absurdo, formando um mapa surreal com matos dentro de mangueiras que surgiam dentro de rios que subiam morros que se equilibravam em pinheirais que cobriam estradas que demarcavam divisas que escrituravam a posse entre os seres desprezíveis daquela caterva de dissimulados que riam entre dentes enquanto pilhavam. ‘O jeito, as armas e as aparências mudam' – ruminou o coronel, 'mas não mudam os algozes que se dizem amigos, e isso não admito e não muda o objetivo que é tomar o que me custa, e isso me apavora. ’ Este pensamento pareceu acordá-lo do pesadelo. Crispou os dedos e os músculos do rosto, apertou os dentes, puxou o chapéu para perto dos olhos, e ímpetos ruins fizeram estremecer seu corpo. De cabeça baixa, mão esquerda na cintura larga, o braço direito apoiado na sela, fitou suas botas por alguns segundos sem, no entanto, vê-las e depois, como que arrependido pelos maus pensamentos, ergueu a cabeça e, de olhos fechados, encheu os pulmões com o ar frio e úmido da manhã que ainda clareava e soltou-o pela boca, devagar, procurando com isso acalmar sua angústia.
Segurou a rédea e o cepilho com a mão esquerda, apoiou a bota no estribo, deu impulso e afundou nos pelegos presos sobre a sela. O coronel tinha estatura mediana, uma já visível barriga e um formato atarracado – meio socadinho, dizem alguns. O rosilho arqueou-se e reagiu bufando e baixando e levantando a cabeça. Cutucou de leve e conduziu o animal a passo pela ponte que ele, com orgulho, havia construído para a passagem do gado e da camionete, e por onde se alcança a cachoeira pela trilha que ladeia o mato que cobre as margens do rio Mansinho.
O animal continuava a passo e ele ainda ruminava as ideias para defender sua propriedade, quando saiu do mato e teve que acostumar os olhos ao brilho do dia no campo limpo. Um leve movimento de rédeas e o rosilho estacou. Arrudão lembrou-se de uma cena fugaz, intermitente, que permeava seus pesadelos. Nela, ele se via assinando a escritura de transferência de suas terras frente a um juiz trabalhista (como sabia deste detalhe?) que ria sarcástico e entregava a escritura a alguém postado ao seu lado dizendo: — Está tudo resolvido, as terras agora são suas! Neste momento, uma horda de advogados que riam sarcásticos o cercava, e ele não conseguia ver quem recebia a escritura de suas terras.
Como se o rosilho pudesse entendê-lo, vociferou em voz alta: — Nunca, nunca! Não entregaria um palmo de terra, uma pedra que fosse, um fiapo de capim, ora, se entregaria! Afoitamente, e com fome, imaginando beber um café forte com muito açúcar e pão dormido com manteiga enquanto arquitetasse um plano infalível de defesa, puxou as rédeas para a direita e cutucou o animal com vontade enquanto o açoite estalava na anca desprevenida. O rosilho bufou relinchou retesou os quartos empinou, e estabacou o coronel de bunda no capim úmido!
Não conseguiu falar nada. Ficou ali mesmo de boca aberta sentado no chão tentando entender o que havia acontecido, enquanto o rosilho relinchava balançando a cabeça provocante, e com uma leve empinada partia faceiro a trote largo rumo à sede...